Chácara da Água Fria em São Paulo, Fazenda São Geraldo, Usina Junqueira, Igarapava, Bebedouro, Pitangueiras, Ribeirão Preto… Rio de Janeiro. Mostrada assim, como uma sequência de lugares, a trajetória de Antonio Bivar até os 30 anos não dá pistas de sua formação cosmopolita.
Mundo Adentro Vida Afora, quarto volume de sua errática autobiografia, descreve cada uma dessas paradas com toda cor e sabor locais, mas também mostra o interesse precoce do menino de família pobre pela literatura e pelo cinema do mundo. O primeiro filme foi um deslumbre e o circo, uma epifania. Aos 6 anos já tinha lido Oscar Wilde, e no começo da adolescência descobriu o rockabilly.
Bivar, depois bastante identificado com os beatniks e o punk paulista, além de tradutor, romancista, jornalista e diretor de shows de Rita Lee, Maria Bethânia e até Leandro & Leonardo, ainda conta, no livro, dos tempos de entregador de encomendas, de trabalhador braçal em uma cervejaria, de mórmon e soldado raso, de estudante de Artes Cênicas no Rio, de perda da virgindade com uma guerrilheira e mais.
Suas aventuras e desventuras são tantas que, quando chegamos a seu primeiro trabalho no teatro como ator, no papel de Estragon, em Esperando Godot, a impressão é de que muitas vidas se passaram.
Os capítulos curtos de Mundo Adentro Vida Afora correm sob os olhos do leitor. As descrições do tempo da contracultura, a intimidade com talentosos e famosos (Norma Bengell, Leila Diniz, Maria Della Costa, Arnaldo Baptista, etc.), as loucuras nos palcos e fora dele, a censura do governo militar, a prisão com LSD, a escrita das primeiras peças, o sucesso estrondoso entre os descolados de Ipanema e São Paulo vão desfilando pelas páginas com elegância e bom humor.
Seu autorretrato – como todo bom autorretrato –, acaba sendo um excelente painel da época recortada pelo livro, de 1939, quando nasceu, a 1969, quando já era um premiado dramaturgo. Na conversa a seguir, ele fala mais dessa trajetória e comenta, com entusiasmo, o espetáculo Próxima Parada, montado a partir de textos seus e do amigo José Vicente (1945-2007), autor, entre outros, do cultuado Hoje é Dia de Rock. Com direção de Cesar Augusto, da Cia dos Atores, a peça, em cartaz no SESC Copacabana, Rio de Janeiro (até 22 de fevereiro), marca os 30 anos do fim da ditadura militar no Brasil.
Brasileiros – Antes de tudo, queria saber sobre o Próxima Parada.
Antonio Bivar – Esse projeto existe há quase dois anos, sob a supervisão do Cesar Augusto. Meu primeiro contato com o Cesar foi em dezembro do ano passado, em São Paulo. Quando eu soube que a “Próxima Parada” já estava em trânsito, saí feito bala para pegar uma carona. E fiquei maravilhado. Logo no primeiro ensaio a que assisti, com o roteiro praticamente pronto, fui às lágrimas de pura emoção com o resultado de um trabalho coletivo poucas vezes visto nos meus 50 anos de teatro. Como disse o diretor Cesar Augusto: “Minha nova direção inspirada nas histórias e personagens de Zé Vicente e Antonio Bivar. Uma festa”. Uma festa teatral. Em 1971, teve a revolução de Longe Daqui Aqui Mesmo e Hoje é dia de Rock. Em 2015, temos “Hoje é dia de Roxy”. Como diz Felipe Frazão, um dos dez atores em cena: “Não sei se gratidão é o bastante. Só sei que felicidade é isso”. Em Próxima Parada, o público poderá ver dados históricos e políticos, realidade e ficção, perseguição militar, censura, Minas Gerais e mundo, dramas e comédias, amizades sem fronteiras, citação de nomes que fizeram a loucura daqueles anos.
Aliás, é uma volta aos palcos depois de muito tempo afastado. O que fez nesse período e o que o levou a voltar?
Eu não fiquei tão afastado dos palcos. No ano passado, fui autor e acompanhei a montagem de Salém da Imaginação, com Luiz Salém e dirigido por Stella Miranda. Em 2007, tive Alzira Power, encenada na Casa da Gávea com Cristina Pereira. Em 2008, Cordélia Brasil com Maria Padilha e direção de Gilberto Gawronski. Fora a elaboração da minha biografia, que me deu muito trabalho e na qual falo muito de teatro.
Durante esse tempo, de muitas viagens pelo mundo, acompanhou o teatro feito no Brasil? Qual sua impressão? Gosta de algum diretor ou autor em particular?
Pouco acompanho o teatro feito no Brasil. Como autor de muita imaginação, gosto mesmo é quando me envolvem em algum projeto interessante. Aí meu entusiasmo é ilimitado, vou com tudo. Então, não devo aqui citar diretor ou autor. Sei que muitos são brilhantes. Vi alguma coisa de que gostei. Na verdade, quanto a isso, ando meio vagabundo. Nos últimos anos, nas minhas temporadas de estudo em Londres, o que mais vi foram musicais. Antes, eu não curtia musicais. Por ser um produto do rock, achava os musicais caretas demais para o meu temperamento. Mas tenho vibrado com eles. Deve ser coisa da idade (risos). Montagens teatrais deliciosas, de velhos musicais do cinema, como Singin’ in the Rain, Grease, Priscilla, A Gaiola das Loucas, A Chorus Line, The Book of Mormon. Vi todos e adorei! Tentei ver peças “sérias”, de texto, mas, além de muito compridas, achei-as chatas.
Pergunta óbvia, mas inevitável: o que despertou em você, depois de tanto tempo, o desejo de escrever um novo livro de memórias?
Sempre tive essa ideia de contar minha vida e a das pessoas, lugares e situações. Já havia feito um tanto disso com Verdes Vales do Fim do Mundo (1970/1971), Longe Daqui Aqui Mesmo (1972/1973) e mesmo o Bivar na Corte de Bloomsbury (1993/2004). E chegou a hora que precisei contar o que faltava a partir do começo. Então, escrevi Mundo Adentro Vida Afora, autobiografia do berço aos 30 anos. Para unir tudo até o na Corte de Bloomsbury, falta um volume de 1973 a 1983. É tudo um jogo, eu vou juntando as peças.
Parece haver hoje um número considerável de autores que utilizam suas vidas como material literário, seja em forma da chamada autoficção, como autobiografia explícita, como roman à clef ou na forma de memórias, crônicas, etc. Como vê esse movimento? Penso em Knausgärd, Emmanuel Carrère, Houellebecq, Ricardo Lísias, Antonio Prata…
Acho ótimo. Virginia Woolf já dizia que a melhor literatura é a autobiográfica. Dos que você cita, só li Knausgärd. Gostei. Li Boyhood Island e até me identifiquei. Mas acho a minha vida mais interessante que a dele. E o estilo dele, direto, sem divisão de capítulos, é um pouco exaustivo para o leitor comum. Gosto de capítulos, de preferência não muito longos. Mas em Knausgärd tem muita coisa que fica na cabeça do leitor, ao menos na minha ficaram muitas. E ouço falarem muito bem de Antonio Prata. Dele, só li crônicas.
Logo na primeira peça, Cordélia Brasil, há uma questão de idade, um certo enaltecimento da juventude eterna, que se vê também nas peças seguintes. Mas naquela época, fim dos anos 1960, você coloca como coroa e decadente uma mulher de 28 anos. Mudaria suas peças hoje? E como, olhando para trás, encara a passagem do tempo?
Mudaria algumas, outras não. Mas manteria a ação acontecendo na época em que originalmente ocorrem as peças. Já são peças de época. Estou falando no condicional. As melhoraria com a cancha que os anos dão. Embora possa acontecer que a emenda seja pior que o soneto (risos). A questão de idade em Cordélia Brasil, como você bem coloca, era uma coisa que eu captei ouvindo um garoto tratar como “coroa” uma atriz mal chegada aos 30. Aquilo me impactou a ponto de eu querer impactar o público, colocando a fala de Rico, personagem adolescente de Cordélia: “Pra mim, passou dos 20, é coroa”. Hoje, a pessoa é adolescente até os 50 e Caetano, em uma entrevista recente, disse: “Estou na infância da velhice”. Gênio! Um pouco assim que me sinto, embora odeie a palavra velhice. Sobre a passagem do tempo, ontem e hoje, antes não tinha tanto. Hoje, temos tudo. Sem precisar largar o smartphone. Por isso, o tempo passa mais rápido. Antigamente, também não tinha tantos carecas. Os cabelos duravam mais (risos).
Como você escrevia suas peças e quais suas influências na época?
A maioria dos autores faz uma escaleta de como suas peças começam, terminam e o que deve acontecer durante. Eu nunca fiz isso. Eu sempre escrevi a partir de um começo, de um ou mais personagens em uma situação sem saber aonde irão chegar. É uma aventura! Os personagens tomam conta e eu fico à disposição do que eles aprontam. Sobre influências, penso que tive uma identificação maior com Samuel Beckett, por ter ensaiado seis meses como ator o Estragon, em Esperando Godot, 1963, em uma produção amadora universitária da Faculdade de Engenharia da Universidade do Rio de Janeiro. Decorando e esmiuçando Beckett, escrever para teatro me pareceu a coisa mais fácil do mundo (risos). Quanto à influência e identificações, eu boto Nelson Rodrigues em primeiro lugar entre os brasileiros. E Harold Pinter, Joe Orton, John Osborne, os angry young men, que também me liberaram para assanhar. Mas o grosso da coisa, acho que vem de mim mesmo. E também por ter sido aluno do Conservatório Nacional de Teatro e ter de estudar todos os autores do currículo. Acredito ter aprendido muito com eles, inclusive com os clássicos. E, entre os modernos, desde os do Teatro do Absurdo até Tennessee Williams, Edward Albee, etc.
Você, que viveu o desbunde, o punk e o hedonismo dark dos anos 1980, como vê a juventude de hoje?
De dois jeitos: 1- formal, escolarmente bem educada (ao menos, a da classe média), preparada, mas pouco ousada; 2- ousadíssima, inteligente, vivaz, difícil de você inculcar história nela, mas quando dá liga, ela é até mais esperta que a juventude de quando eu tinha essa idade. Desde que fiquei com mais idade, em 1982 com os punks e, em 1997, com os adolescentes hippies da escola Rudolf Steiner ou, em 2001 com a turma das favelas cariocas Pavão Pavãozinho, Cantagalo e Vidigal, todos me fizeram orgulhoso de suas existências. Isso porque estavam fazendo um teatro do qual eu era participante convidado, como está sendo agora em 2015 com a patota de Próxima Parada.
E a política? Suas memórias apontam para um anarquista libertário que, no entanto, tinha vínculos com a esquerda, mesmo que afetivos (penso em Carmen). Como vê a Comissão da Verdade, as revoltas do ano passado, os Black blocs, o pessoal do Passe Livre?
Sou anarquista-utopista. Em Londres, em 1970, morei na Old Church Street, rua que tem esse nome porque nela Thomas Morus escreveu Utopia. Na época, eu ignorava isso. Anos depois, quando descobri, passei a visitá-la com reverência. Dividíamos um quarto, eu e o José Vicente. Sob o nosso andar, tinha um banco. Hoje tem um restaurante da cadeia Byron. Você vê: na minha vida, tudo tem a ver com literatura. No tempo em que todo mundo era da esquerda, contra os da direita, eu não me identificava nem com um nem com outro. Minha natureza era pop e eu curtia, digamos, o glamour da contracultura. E ainda sou meio assim, até hoje. Daí não posso responder nada sobre a Comissão da Verdade. Mesmo porque esse nome soa meio ditatorial, “fascistinha”. Mas, por ignorar e, ainda assim, imaginar do que a comissão é incumbida, não preciso falar dela. Ela mesmo faz isso. As revoltas do ano passado, em princípio, me pareceram decentes. Mas como tudo acaba em baderna, o que veio a seguir – Black blocks, vandalismo –, achei desagradável e desnecessário. Não adianta quebrar banco. Os bancos gastam na reforma e descontam nos clientes. O pessoal do Passe Livre, acho ótimo! Eu mesmo, por causa da idade, tenho passe livre. Tão livre que, por terra, posso viajar de graça, ida e volta, até o Oiapoque e, o mesmo tanto, até o Chuí – mesmo que eu não cometa essa loucura!
Ainda que seja mais conhecido e reconhecido como dramaturgo, você tem uma produção bastante diversificada, que inclui romance, contos, artigos de jornal, biografia, roteiro e memória. O processo de escrita muda substancialmente quando você passa de um registro para outro?
Às vezes não. Outras vezes, é forçado a mudar. Depende do veículo e do assunto. Sobre algumas coisas sei até demais. Sobre outras, sou obrigado a pesquisar. É por isso que prefiro a autobiografia. Sai com mais facilidade. Se bem que escrevi um livro de contos (Contos Atrevidos, 2009, Editora Prumo) porque fui acometido de um surto em que eles se impunham com tamanha facilidade que não fiz outra coisa naquele ano. Mas escrever uma coisa nova, própria, pessoal, é algo que quando vem você larga o resto e vai com tudo.
Pensa em voltar a escrever ficção?
Não tenho tempo de pensar em escrever ficção. Escrevi aquele livro de contos e já publiquei contos em revistas que encomendaram. E um romance, Chic-A-Boom. É cômico e erótico. Foi escrito numa época em que eu mesmo andava muito erotizado. Em dez anos, teve duas edições (em 1991, pela Editora Siciliano, e, em 2005, pela A Girafa). Na segunda edição, mudei o sexo de uma personagem de mulher para hermafrodita. Da primeira edição, o crítico Leo Gilson Ribeiro disse tratar-se da coisa mais camp da literatura brasileira desde Oswald de Andrade.
Já que tocamos nesse assunto, é inevitável falar nos beats e na Virginia Woolf. Continua tendo uma relação forte com eles? Como foi o período em que participou do grupo de estudos da turma de Bloomsbury?
Com os beats, não muito mais. “Beat” é um rito de passagem literário juvenil. Com Virginia Woolf, vida e arte, sim. Em 2014, teve uma exposição fabulosa do universo de Woolf na National Portrait Gallery. Estive na abertura, onde encontrei muita gente envolvida nesse universo. De 1993 a 2004, foram anos “magicizados”. Como convertido ao grupo de Bloomsbury, como disse Anne Olivier Bell: “You’re a convert”. E ela sabe o que diz, foi a editora dos cinco volumes dos diários de Woolf, que era tia de seu marido. Olivier, como é tratada, foi também pedida em casamento por George Orwell – está nas biografias do autor de 1984. E Olivier é a última sobrevivente dos ingleses que salvaram as obras de arte do arrocho nazista na Segunda Guerra, escondendo-as numa mina de sal na Bulgária. Olivier é minha amiga desde aqueles felizes anos até hoje. Ela está com 98 anos. Fui visitá-la no campo onde vive, em agosto do ano passado. De modo que me sinto em casa no meu relacionamento com membros descendentes do grupo original desses modernistas ingleses, grupo formado em 1904. Mas, como eu disse, de repente meu rumo é mudado e mergulho nele.
Acompanha a literatura atual? O que tem chamado sua atenção?
Estou lendo biografias, como The Adventures of Henry Thoreau, por Michael Sims. Muito boa! Thoreau é sempre um universo explorável. No Brasil, duas biografias são ótimas: a de Chateaubriand, de Fernando Moraes, e a de Nelson Rodrigues, por Ruy Castro. E a que escrevi, de Yolanda Penteado, que foi best-seller, em 2004 (A Girafa).
O atentado ao Charlie Hebdo despertou muita discussão, entre outros temas, sobre a liberdade de expressão. Queria que você contasse um pouco de suas várias batalhas com a censura.
Nos anos em que estive na moda como dramaturgo, eu e meus colegas da chamada “nova dramaturgia” – Plínio Marcos, José Vicente, Leilah Assumpção, Consuelo de Castro, Isabel Câmara –, éramos sempre pegos pela censura federal da ditadura. Mas nem por isso parávamos de criar obras de impacto para a época. Ao contrário, quanto mais a censura pegava no pé, mais ousados e atrevidos nós éramos. A censura, na verdade, nos instigava, nos insuflava à criatividade e, mais importante, nos empurrava para o “Bye bye Brasil” em fugas para o exterior. Aí sim, fugas hedonistas, porque era um barato poder ir para o exílio forçado ou voluntário sem culpa. E curtir o exílio num misto de romantismo com sei lá o quê. Franciscanamente falando, eu estava curtindo a vida adoidado, mas sempre, como García Márquez, viver para contar. E é isso que faço.
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