Um furacão chamado Vanda

Sempre sorridente, ela fala rápido, gesticula muito e não hesita em transformar ideias em ações. Nascida no bairro paulistano do Tatuapé, Vanda Pignato se apaixonou pela política ainda garota. Nos primórdios do PT, ajudou a criar a Secretaria de Relações Internacionais do partido, que só deixou de representar na América Central quando o marido se candidatou à presidência. Radicada em El Salvador desde o começo dos anos 1990, Vanda trabalhava como diretora do Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em San Salvador quando foi convidada a opinar sobre uma compra de telenovelas a ser feita pelo canal 12. Na sede da emissora, entre um trecho de Barriga de Aluguel e outro de O Dono do Mundo, ela também fez sugestões para as entrevistas do principal âncora do país, a quem acabara de ser apresentada. “Marcamos para tomar um café e nunca mais nos separamos”, lembra Vanda, quase 20 anos depois. Quando Mauricio Funes trocou o jornalismo pela disputa eleitoral, como candidato de um partido originário da guerrilha, ela tinha mais experiência em militância política do que o marido. E acompanhava de perto a trajetória de El Salvador. Um pouco menor do que o Estado de Sergipe, o país havia sido devastado por uma guerra civil que durou 12 anos e deixou cerca de 75 mil mortos. O conflito entre o Exército e a guerrilha de esquerda terminou em janeiro de 1992, mas até hoje influencia o cotidiano da antiga colônia espanhola. Dos sete milhões de salvadorenhos, mais de dois milhões vivem fora do país, a maioria nos Estados Unidos. As remessas de dinheiro que enviam para El Salvador são uma das principais fontes de recursos do país, ao lado do café e do açúcar. Outra herança dos tempos da guerra civil é o antagonismo entre a direita e a esquerda na política. Vanda sentiu o problema na pele. Em plena campanha eleitoral, ela teve o seu primeiro e único filho, mas precisou retirar o bebê de El Salvador quando a violência imperou na campanha. Foi também durante a campanha que Vanda decidiu investir no combate à violência contra as mulheres. Por causa do projeto que criou, o Cidade Mulher, ela já ganhou diversos prêmios internacionais, entre eles o Américas 2011, concedido pelas Organizações das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americanos (OEA). Advogada por formação, aos 48 anos, Vanda se divide entre os papéis de primeira-dama e de secretária de inclusão social. “Respeito as mulheres que decidem ter só o papel protocolar de primeira-dama. Decidi ter um papel mais ativo para colocar em prática sonhos que idealizei durante toda a vida”, diz Vanda. “Mas ainda sou mãe e esposa, trabalhos muito intensos e não remunerados.”

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Brasileiros – Qual a origem do projeto Cidade Mulher?
Vanda  Pignato –
Fui mãe pela primeira vez aos 45 anos, em plena campanha eleitoral. Meu olhar ficou mais sensível aos problemas das mulheres. O Cidade Mulher nasceu por isso. Ao visitar os municípios, percebi que elas sofriam discriminação idêntica, tanto da área rural quanto da urbana. Por outro lado, eu também era vítima de discriminação. Durante a campanha, eu não tinha identidade. Ninguém me convidava para discutir programa de governo, nada, nada.

Brasileiros – Você era vista como um objeto?
Vanda –
Eu era um objeto. Fazia parte da campanha, como um adorno. Era a esposa do candidato. Depois, a esposa do presidente. Decidi então romper com esse estigma terrível, ainda mais doloroso para mim quando vem da esquerda, que tem o discurso da equidade de gênero.

Brasileiros – Como é na prática?
Vanda –
Em El Salvador, as mulheres são 54% da população. Elas são o centro da comunidade, mas não estavam presentes nas políticas públicas. Perto das eleições, os políticos ficam doidos para ganhar o voto delas. Fechadas as urnas, elas voltam a ficar invisíveis. Criei um espaço para tornar visíveis mulheres que estavam invisíveis.

Brasileiros – De que forma funciona?
Vanda –
A ideia é simples e inovadora. Em uma mesma infraestrutura estão serviços que já existiam no país, mas estavam dispersos. Antes, a mulher vítima de violência percorria uma via crucis para denunciar a agressão. No meio do caminho, ela desistia. Agora, quando chega no Cidade Mulher, ela recebe primeiro orientação psicológica, para estar bem e tomar as melhores decisões. Depois, vai até o corredor contra a violência de gênero e encontra os serviços da polícia, do ministério público, de medicina legal. Em outro corredor, fica o atendimento à saúde. Enquanto isso, os filhos são atendidos em outra sala.

Brasileiros – E depois?
Vanda –
O maior inimigo da mulher está dentro da própria casa. Para se livrar do agressor, ela precisa ter autonomia econômica. No Cidade Mulher tem um espaço voltado para a atividade profissional, que eu chamo de corredor da revolução. Lá estão instalados serviços de formação profissional, de montagem de microempresa, de promoção do cooperativismo. Tem um banco de fomento agropecuário, para obter crédito na banca tradicional. Criei ainda uma banca alternativa, para pequenos empréstimos, de cem, duzentos dólares.

Brasileiros – O projeto também atende mulheres que não são vítimas de violência?
Vanda –
Sim, pois elas necessitam de autonomia econômica. Mas é basicamente um programa para mulheres vítimas de violência.

Brasileiros – Por quê?
Vanda –
É uma das regiões mais violentas do mundo contra a mulher. É tão grave que recentemente o presidente entrou em cadeia nacional de rádio e tevê para discutir o problema. O país estava chocado com a morte, seguida de esquartejamento, de uma jovem atleta, uma lutadora olímpica. Havia ainda um escândalo envolvendo um deputado acusado de espancar a mulher.

Brasileiros – Existe uma estimativa sobre este tipo de violência?
Vanda –
Apenas nos primeiros cinco meses do ano, 207 salvadorenhas foram assassinadas. No ano passado, foram 626 mortes violentas de mulheres. E El Salvador não é o país mais violento da América Central. O mais violento contra as mulheres é a Guatemala, onde as instituições do Estado estão tomadas pelo crime organizado. Em El Salvador isso ainda não acontece.

Brasileiros – Corre o risco de acontecer?
Vanda –
Claro. Enquanto o crime organizado, principalmente o mexicano, tentar ultrapassar as fronteiras, é possível.

Brasileiros – Seu plano era criar 14 unidades do Cidade Mulher. Com três anos de governo, quantas unidades estão funcionando?
Vanda –
Recebemos uma informação equivocada, de forma proposital, sobre as finanças públicas. E o país estava quebrado. Como se não bastasse, no primeiro ano teve o furacão Ida. Todo o dinheiro foi usado nas emergências. No segundo ano, nós conseguimos um empréstimo com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento). Das 14 que prometemos, só vamos construir sete até o final do governo. Temos uma em funcionamento e três a serem inauguradas ainda em setembro. Por causa dessa primeira unidade, o BID já elegeu o Cidade Mulher como modelo para o desenvolvimento na América Latina. Em um ano, atendemos mais de 40 mil mulheres.

Brasileiros – Essa unidade foi inaugurada por Michelle Obama?
Vanda –
Ela veio antes da inauguração. E doou equipamentos médicos.

Brasileiros – Há muitas parcerias com os Estados Unidos?
Vanda –
Em El Salvador é impossível pensar em desenvolvimento sem uma boa relação com o governo americano. Um terço dos salvadorenhos vive nos Estados Unidos. A economia depende dos salvadorenhos que enviam dinheiro para suas famílias. São as chamadas remessas. Sem essas remessas, a economia iria para o chão. Além disso, os presidentes Obama e Mauricio têm muitas coisas em comum.

Brasileiros – O que eles têm em comum?
Vanda –
Os dois representaram mudanças. Mauricio vem depois de 20 anos de governos de um mesmo partido, de direita. Na história de El Salvador, algumas iniciativas do presidente eram impensáveis há 20 anos.

Brasileiros – Que tipo de iniciativa?
Vanda –
Pedir perdão às vítimas da guerra civil. Pedir perdão à sociedade e à igreja católica pelo assassinato do monsenhor Romero (o arcebispo Óscar Romero, morto a tiros enquanto celebrava uma missa, em março de 1980). Outra iniciativa importante foi pagar pensão aos ex-combatentes do Exército e da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN).

Brasileiros – Como se deu a aproximação entre os governos Obama e Funes?
Vanda –
Durante a guerra e no pós-guerra, não havia eleições independentes. As diferentes administrações americanas eram protagonistas do processo eleitoral. Obama abandonou esse estilo. Disse que respeitaria o candidato que ganhasse. Com base nessa mudança, vários acordos foram feitos. Como El Salvador é muito vulnerável a acidentes naturais, os Estados Unidos estão nos ajudando a modernizar portos, aeroportos e estradas.

Brasileiros – Há 20 anos, El Salvador teve uma Comissão da Verdade, iniciativa que o Brasil começa agora a viver. Como foi esse processo?
Vanda –
Era uma comissão ad doc (nomeada para um fim específico), que preparou um documento chamado De la Locura a la Esperanza. Assim que a comissão ofereceu esse documento à sociedade, veio a anistia. E assim ficou.

Brasileiros – O conflito terminou com 75 mil mortos.
Vanda –
Mexer nessas feridas é muito complicado. Em todas as famílias existe um morto de um lado ou de outro. O presidente criou uma Comissão de Reparação, da qual eu fui presidente. Foram medidas de reparação moral e simbólica. O Estado não tem condições de promover reparação financeira.

Brasileiros – Como é essa reparação?
Vanda –
Foi o que o presidente fez em El Mozote, onde ocorreu o maior massacre de civis da história contemporânea da América Latina, em dezembro de 1981. Quase 400 crianças, metade das vítimas, foram mortas. Os governos anteriores diziam que não tinha acontecido nada. Mas havia sobreviventes. E médicos forenses argentinos encontraram as ossadas. O presidente foi até El Mozote e reconheceu que as Forças Armadas promoveram o massacre. Ele deu o nome dos comandantes envolvidos no massacre e pediu perdão às vítimas. As vítimas e suas famílias precisam conhecer a verdade para fechar esse ciclo tão doloroso.

Brasileiros – Falando em violência, o que são as ‘maras’?
Vanda –
São jovens em conflito com a lei. Vinte anos atrás, seus pais foram para os Estados Unidos fugindo da repressão política. Terminada a guerra, os diferentes governos não promoveram políticas públicas para que eles voltassem. E os filhos daqueles que foram para o exterior ficaram nas mãos dos avós, dos idosos, muitos deles em pobreza extrema.

Brasileiros – Como eles viviam?
Vanda –
Os pais mandavam remessas de 100, 150, 200 dólares por mês. Ninguém trabalhava na família. As crianças não iam à escola. Quando cresceram, começaram a se organizar por meio da delinquência. Os governos anteriores adotaram os programas “mão dura” e “mão superdura”. O que necessitava era “mão inteligente”. Quando meu esposo assumiu, a situação estava insustentável.

Brasileiros – Mas em edição recente, a The Economist (revista britânica) disse que a violência estava diminuindo em El Salvador.
Vanda –
É que não havia nenhum tipo de diálogo com esses jovens. Eram 15 mortes por dia. Agora, a igreja católica abriu um diálogo com os grupos mais violentos. O governo respalda e facilita esse diálogo. Baixamos em 50% os homicídios no país. Hoje, as crianças recebem material escolar, uniforme e sapatos. Isso ajudou a combater a evasão escolar.

Brasileiros – É uma espécie de Bolsa Família?
Vanda –
São vários programas. Tem o Comunidade Solidária Urbana e o Rural. Tem um programa que ajuda mães solteiras, que já existia no governo anterior, mas só na área rural. Também temos um programa de ajuda aos idosos com mais de 70 anos. Damos US$ 50 mensais.

Brasileiros – Sua trajetória está ligada à do PT desde 1981. Como isso influencia sua atuação?
Vanda –
Durante a formação da Secretaria de Relações Internacionais do PT, me especializei em América Central. Conheci El Salvador na guerra e na paz pós-guerra. Quando meu marido foi eleito presidente, eu já estava muito familiarizada com El Salvador.

Brasileiros – Equipes de El Salvador visitam o Brasil com frequência. Como é esse intercâmbio?
Vanda –
O Brasil é uma grande inspiração. Dou um exemplo. Quando trabalhava na embaixada do Brasil em El Salvador, conheci o programa Pintando a Liberdade, do governo Lula. Ele ajuda a reincorporar o preso à sociedade por meio da fabricação de material esportivo. Mostrei o programa para o ministro do Interior, René Figueroa, mas ele não se interessou.

Brasileiros – E ficou por isso mesmo?
Vanda –
Isso foi no governo anterior. No governo Funes, dois funcionários foram ao Brasil conhecer o projeto. E estamos prestes a abrir o primeiro Pintando a Liberdade em El Salvador. E tem programa em outras áreas também.

Brasileiros – Em quais?
Vanda –
São muitos os convênios. Temos o Cozinha Brasil, que é do SESC e ensina a produzir alimentos com produtos que iam para o lixo, como casca de melancia, de abacaxi. E temos vários projetos na área da agricultura, com a Embrapa.

Brasileiros – Curiosa essa aproximação com o Brasil. Os adversários de Funes diziam que ele transformaria o país em um satélite da Venezuela.
Vanda –
A direita dizia que, se o Mauricio ganhasse, quem mandaria seria o Chávez (o presidente da Venezuela, Hugo Chávez). Um absurdo. O Mauricio sempre falou que a grande referência dele era o governo Lula.

Brasileiros – Funes já planejava concorrer à Presidência em 1996 quando conheceu Lula?
Vanda –
Não. Ele era jornalista. Muito destacado. Foi correspondente da CNN (emissora de tevê a cabo americana). Recebeu vários prêmios internacionais. Tinha um programa no Canal 12, de El Salvador. Nunca pensou em buscar uma alternativa político-eleitoral. Buscou porque o governo não colocava publicidade no programa dele e impedia que empresários colocassem. Todas as possibilidades de ele seguir exercendo um jornalismo livre e independente se fecharam.

Brasileiros – Como você o conheceu?
Vanda –
Quando era diretora do Centro de Estudos Brasileiros, fui procurada por uma funcionária do Canal 12. Ela queria minha opinião para comprar telenovelas brasileiras. Na lista estavam O Dono do Mundo e Barriga de Aluguel. Fui assistir aos resumos das telenovelas na sede da emissora, onde ela me apresentou o Mauricio. Comentei que gostava muito das entrevistas que ele fazia, mas que ele precisava latino-americanizar mais os temas. Ele disse: “Ah, que interessante. Você tem algumas ideias?”. Eu respondi que tinha. Marcamos para tomar um café e nunca mais nos separamos.

Brasileiros – Você também enfrenta problemas ao lado dele. Na campanha, por exemplo, seu filho teve de ser retirado do país. Como foi isso?
Vanda –
Eu ainda estava amamentando o Gabriel. Era perseguida por carros com elementos armados. Chegou uma hora que senti que a vida dele estava em perigo. Nos últimos dois meses da campanha, quando a loucura imperou, mandei o meu filho para São Paulo, para ficar com os meus pais. Essa separação foi um grande sacrifício para ele e para nós também.

Brasileiros – O fato de você ser brasileira também foi alvo de críticas?
Vanda –
Existiu uma campanha suja, tratando de denegrir minha imagem, mas isso foi irrelevante.

Brasileiros – Por ter sido representante do PT para a América Central?
Vanda –
Não. Nessa época diziam que eu era chavista, não lulista. Diziam algumas coisas feias em relação a mim, porque o estigma de ser mulher brasileira não é fácil. Avançamos muito, mas ainda enfrentamos preconceitos. Pequenos grupos fizeram uma campanha anônima, pela internet. Mas eu estava preparada para a batalha. Essa campanha suja não me afetou. O que me afetou foi separar do meu filho.

Brasileiros – Quando começou o seu ativismo político?
Vanda –
Sou apaixonada pela política desde os 11, 12 anos. Meus pais achavam que era perigoso. Com o tempo, fui mostrando que a única alternativa para mudar a realidade era a atividade política. Amadurecemos juntos nessa trajetória. Tive o privilégio de viver toda essa transição, da criação do PT à transformação de Lula nessa grande referência que ele se tornou.

Brasileiros – E a presidenta Dilma?
Vanda –
Estivemos na posse, temos um grande carinho e admiração por ela. O presidente tem contato com a presidenta Dilma, inclusive tiveram uma reunião bilateral na Rio+20. Queremos fortalecer ainda mais a relação entre os governos durante a gestão dela.

Brasileiros – Você se naturalizou salvadorenha?
Vanda –
Dois anos antes da eleição.  Eu já me sentia salvadorenha. Foi só uma legalização desse sentimento. Tenho dupla nacionalidade. Sinto muita falta da minha família, dos meus amigos, do meu país. Mas quando estou no Brasil, sinto que preciso voltar para casa. E minha casa é em El Salvador.

Brasileiros – Em El Salvador não tem reeleição para presidente. O mandato de Funes acaba em 2014. Qual o seu próximo passo em política?
Vanda –
O meu? A minha gestão como secretária de Inclusão Social acaba em 2014 e depois eu vou buscar outro projeto. Vou trabalhar. Tenho um filho para sustentar. Mas ainda não pensei nisso.


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