Fui ao Danilo Miranda descobrir o segredo da boa gestão. Seu próprio currículo oficial diz que ele é “especialista em ação cultural”. Na direção regional do SESC paulista desde 1984, conquistou uma legião de admiradores, entre produtores, agentes, artistas, intelectuais e o público mais informado. O povão, claro, não sabe nem quer saber quem é ele: a maioria dos mais de 17 milhões de pessoas (Portugal e Suíça somados) que frequentou as 33 unidades do SESC no Estado, em 2011, só quis saber de fluir atrações artísticas, curtir piscinas, quadras e aproveitar os diversos serviços de saúde, nutrição, educação ambiental. E é para ser assim mesmo: “Nós somos uma instituição educativa que trabalha na perspectiva da formação do indivíduo”, diz o professor, como os funcionários do SESC o chamam, “através da cultura, da atividade física, do lazer, da orientação adequada para a vida sobre alimentação e saúde… A cultura tem peso, mas também a busca de um bem-estar pessoal e social faz parte do processo”, complementa, ele que sempre lutou para que as atividades artísticas tivessem um peso maior na estrutura da instituição.
Esse é um dos segredos do SESC. A atividade cultural – o teatro, a dança, a música, o cinema, o debate, a exposição – se dá no mesmo espaço em que outras dimensões da vida são contempladas, como a atividade física, a prática esportiva, o lazer, a brincadeira, o jogo, o tratamento odontológico, a nutrição. O viver artístico não fica isolado e se torna tão natural como ir a uma das comedorias e pedir um prato balanceado. Essa integração foi mencionada em reportagem publicada na primeira página do The New York Times, em 27 de março passado, por Larry Rohter – aquele correspondente americano que, em 2004, escreveu no mesmo jornal que o presidente Lula bebia demais e quase foi expulso do País. Mas, dessa vez, o que ele destacou foi a inveja que Danilo Miranda está provocando em seus colegas de instituições culturais americanas e europeias. Enquanto nesses países eles são obrigados a seguir a cartilha liberal de cortar gastos nas crises cíclicas do capitalismo (como a atual, que vem de 2008), o SESC-SP tem aumentado seus recursos em mais de 10% ao ano na última década.
“Isso vale para a economia brasileira”, explica Danilo Miranda, e, referindo-se à percepção que se tem do Brasil lá fora atualmente, complementa: “Eles aplicaram ao SESC o que têm pensado do desenvolvimento brasileiro, do desemprego brasileiro, que é menor, da situação de investimento no Brasil. De fato, somos mantidos por uma arrecadação proveniente das empresas e dos empregados. Acontece que nos últimos anos não só tem crescido a economia, como tem aumentado em proporção maior o número de empregos com carteira assinada. Muita gente tem deixado o mercado informal”.
Quando a conversa chega ao dinheiro, Danilo relaxa, sorri e comenta: “Parece que estamos nadando em dinheiro, não é? Mas, por mais que a gente faça, ainda é pouco, e por mais que tenha recursos, em comparação com o que tinha antes, ainda é pouco em comparação com o que necessitamos. Por isso, procuro passar para todo mundo a administração da permanente escassez, minha cobrança é essa”. Será esse o segredo da gestão cultural de Danilo Miranda? O SESC arrecada 1,5% da folha de pagamento das empresas dos ramos de comércio, serviço e turismo. Relativamente, é muito dinheiro. Neste ano, deve chegar a R$ 1,5 bilhão, mais que o orçamento, maior que os orçamentos diretos da secretaria estadual de cultura (R$ 1 bilhão) e do Ministério da Cultura (R$ 800 milhões, mais R$ 2 bilhões indiretos, da renúncia fiscal).
Danilo Miranda é irônico quando toca no assunto: “O que nós fazemos é essencial, não é supérfluo. Às vezes, ouço alguém menosprezar essa coisa das artes, do lazer fora do trabalho, do tempo livre. Ora, o século 19 tinha razão, era supérfluo tirar férias, descansar sábado e domingo… Essa visão do trabalhador explorado ao extremo gerou reflexões, sobretudo a reflexão liderada pelo velho barbudo chamado Karl Marx”. Danilo fica sério, se transforma quase em um pregador, quando aborda a missão do SESC. “De lá para cá, nossa sociedade, nossa civilização, nosso pensamento, nossa cultura se tornou mais elaborada, mais capaz de entender a realidade. Hoje em dia, se tem muito claro uma coisa: para render efetivamente, você precisa estar preparado, informado, ter seu equilíbrio pessoal e uma visão clara do mundo à sua volta, ter educação – e cultura e educação, para mim, são facetas de uma mesma realidade. Nós não podemos pensar em uma educação funcionalista apenas. Por isso, o que fazemos é essencial. Trabalhamos num processo de educação informal, educação complementar, continuada e permanente.”
Talvez, por conhecer essas ideias e vivenciá-las na prática que um grupo de artistas resolveu fazer um abaixo-assinado sugerindo que Danilo Miranda fosse o novo ministro da cultura, no caso de saída da atual titular, Ana de Hollanda, muito combatida por uma parte dos militantes da área. Entre os notáveis signatários, Fernanda Montenegro, Regina Duarte, Lázaro Ramos. Danilo diz que aceitaria discutir novos desafios, claro, mas que não recebeu nenhum convite. “Fiquei quieto no meu canto.” Quanto à gestão da ministra Ana de Hollanda, simplesmente diz que: “É difícil analisar à distância, vejo que há uma insatisfação muito forte por parte de alguns setores e se essa insatisfação significa apenas um desejo de fazer mais, tudo bem. Às vezes, parece que nada está acontecendo em alguns lugares. Eu realmente não tenho muitos elementos para fazer um julgamento detalhado”.
Danilo Miranda me recebeu na sede do SESC-SP, ao lado da unidade do Belenzinho, inaugurada em dezembro de 2010. Antes era na Avenida Paulista. Belenzinho é um desses lugares de São Paulo que parecem longe para as pessoas que moram no quadrilátero “sofisticado”, formado pelos bairros dos Jardins, Higienópolis, Perdizes, Pacaembu, Pinheiros, Vila Madalena e Butantã. Por que a mudança? Aos 69 anos, formado em Filosofia e Ciências Sociais, com especialização no IMEDE – Management Development Institute, em Lausane, na Suíça, um homem que venceu o provincianismo, um cosmopolita, Danilo Miranda se permite brincar com o assunto: “Que absurdo, sair da principal avenida da cidade, da principal cidade do País, do principal País da América do Sul – da principal avenida abaixo do Equador! – e se instalar no Belenzinho, que no início alguns jornalistas chamavam de bem longinho…”.
Ele se diverte com os seus amigos dos bairros considerados nobres que são obrigados a se abalar até o Belenzinho para ver, por exemplo, o diretor teatral americano Bob Wilson (leia mais na página 78) ou a cultuada francesa Ariane Mnouchkine, do Théâtre du Soleil. “Adoro vê-los na ZL, como a Zona Leste é carinhosamente chamada por seus moradores. Isso, para mim, é um ganho, uma vitória, é como ganhar uma taça.”
Pois a ZL – que vai abrigar a abertura da Copa do Mundo do Brasil, no estádio do Corinthians em 2014 –, continua na mira de Danilo Miranda. “Trazer nossa sede para o Belenzinho é uma sinalização importante do ponto de vista do interesse da instituição na democratização do acesso aos bens culturais. Outro dia, fui ao Itaim Paulista para ver um terreno na Avenida Marechal Tito. A gente está pensando em se expandir para lá, nessa direção mais extremada da Zona Leste.” O professor conhece muito bem o lugar que escolheu para viver e suas antenas estão viradas para os rincões pulsantes da cidade. Já são 13 as unidades na capital e a promessa é que esse número aumente. E no interior também, afinal, o SESC usa um quarto da sua verba para conservação, restauração e ampliação da rede.
O SESC Belenzinho foi construído na antiga fábrica de tecelagem Moinhos Santista S/A, ao lado do Cemitério da Quarta Parada (“São nossos melhores vizinhos; nós não os perturbamos nem eles a nós”), repetindo assim o modelo do SESC Pompeia, inaugurado em 1982. Para quem era jovem nos anos 1980, foi um impacto. A arquitetura porosa, orgânica e despojada de Lina Bo Bardi, a programação cultural moderna, arejada e contestadora, naqueles tempos de abertura política carente de um empurrãozinho – tudo isso marcou essa geração. Danilo Miranda assumiu a direção do SESC-SP em 1984, aprofundando a proposta e levando a outras partes da cidade.
O SESC nasceu em 1946, ao mesmo tempo do SENAC, SENAI, SESI, entre outras instituições que formam o chamado Sistema S. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a queda de Getulio Vargas do Estado Novo, o País se democratizava. O Partido Comunista Brasileiro tinha sido legalizado e aparecia como uma força política importante, com milhares de militantes entre trabalhadores e intelectuais. O comunismo no Leste Europeu avançava, bem como no Oriente. No Brasil, a miséria e a explor
ação era um terreno fértil para a pregação revolucionária. Foi nesse contexto que lideranças empresariais do comércio, indústria e agricultura se reuniram em Teresópolis na Primeira Conferência das Classes Produtoras e nela elaboraram a Carta da Paz Social, que propunha diretrizes para uma nova relação capital/trabalho, nas quais incluía a criação de instituições de apoio ao trabalhador, como o Serviço Social do Comércio, o SESC.
Em 1964, aparentemente indiferente ao turbilhão político que o País atravessava, um jovem católico entrou no seminário jesuíta de Nova Friburgo. Ele havia estudado em colégio jesuíta desde pequeno e tudo o que queria ser na vida era um padre jesuíta. No final de 1967, esse jovem, Danilo Santos Miranda, deixou o noviciado e prestou um concurso público para trabalhar no SESC. Era o fatídico ano de 1968 quando ele entrou no SESC para não mais sair. Agregador, articulado e cuidadoso, sua carreira deslanchou na instituição.
O ocupante da direção regional do SESC é escolhido pelo presidente da Fecomércio de São Paulo, Abram Szajman, que desde os anos 1980 o tem reconduzido ao cargo para um mandato de quatro anos. A estabilidade e a continuidade é uma das razões de seu sucesso, além de ficar imune às interferências políticas. Danilo Miranda é um modernizador das estruturas do SESC e o faz de uma forma caseira, usando ele também as pratas da casa, como um Barcelona paulista (o professor torce para o Fluminense). Ele tem uma equipe de técnicos formados no SESC, com quem traça as diretrizes e discute os próximos passos. “A gente tem sempre muitas pessoas nos ajudando, refletindo e propondo. Por exemplo, Edgar Morin, filósofo com presença importante na cultura francesa, tive a oportunidade certa de trazê-lo para um treinamento com todos os meus técnicos aqui. Passou uma semana com a gente em um hotel fechado conversando. Então, estamos sempre debatendo. Uma ideia que surge é resultado de alguma forma de todo um processo que procura levantar questões, de propor, aprofundar.” Além disso, o SESC está aberto o ano todo para receber projetos artísticos, que, após análise criteriosa pelo time de Danilo, serão aceitos ou rejeitados. Diferentemente do MinC ou do ProAC, o SESC não trabalha com editais, essa espécie de concurso para receber verbas públicas. Se os editais são uma forma republicana de apoiar a cultura, com supervisão pública e prestação de contas, o jeito do SESC é mais direto e permite maior direcionamento.
Casado há 40 anos, pai de duas filhas, Danilo Miranda se sente realizado e com o dever cumprido. Simpático, conversador, didático, brincalhão, aparenta ser um homem feliz, talvez aquele do poema de Maiakóvski: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”. Pergunto se uma vida dedicada ao SESC não foi a forma que ele encontrou para cumprir a missão que sonhara quando jovem, de ser jesuíta: “Olha, talvez eu tenha algum elemento, algum vírus colocado na minha personalidade voltado para a prestação de serviços no SESC. Pode ser, não sei… Uma coisa meio religiosa, meio cristã, que tenham jogado lá dentro em mim… Eu me encaro aqui cumprindo um papel, sim, e acho que todo mundo tem uma missão na vida, ninguém veio só de passagem. Se posso contribuir para a melhora da vida das pessoas, tenho isso como um elemento absolutamente primordial na minha vida. Se isso me traz uma satisfação pessoal ou não é um fato a ser considerado. Se isso me remunera materialmente adequadamente, aí é uma coisa que me importa menos. Talvez eu encare isso, quem sabe, como uma extensão daquela missão que eu jovem imaginava ter”. Silêncio obsequioso.
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