Talvez pela sina, o goleiro é tema de escritores, poetas e anônimos. Por exemplo, um desconhecido postou na internet que: “Ser goleiro é ser herói e vilão. É querer evitar o inevitável, sempre achando, lá no fundo, que dá para defender o mais indefensável dos chutes. É jogar um jogo coletivo de forma quase individual e depois de uma grande defesa, ainda que não lhe agradeçam, saber que é tão importante quanto o atacante. E saber dizer que falhas fazem parte, pois só quem joga lá sob as traves, sabe o quanto defesas que parecem fáceis podem ser bem mais difíceis do que se espera”. Dá a impressão de que esse anônimo que tão bem analisou um goleiro, o fez pensando em Rodolfo Rodríguez. Ele foi um dos melhores goleiros do mundo, autor da maior sequência de defesas da história do futebol, titular durante 11 anos da Seleção Uruguaia, na qual foi campeão do Mundialito de 81 e da Copa América em 1983. Pelo Nacional, foi tricampeão uruguaio e venceu a Libertadores. No Brasil, sagrou-se ídolo do Santos, onde jogou durante cinco anos, eleito pela torcida como jogador-símbolo na década de 1980. Com a camisa do Peixe, conquistou o título de campeão paulista (1984) e foi o primeiro goleiro homenageado por um clube por sua performance. Ganhou a Defesa de Placa. A láurea está em destaque na Vila Belmiro, ao lado de placas comemorativas de gols de atacantes como Pelé. Que bela companhia!
Rodolfo jogou até os 38 anos, defendendo ainda o Sporting, de Lisboa, Portuguesa e Bahia (bicampeão estadual). Mas, como sentenciou seu patrício, o escritor Eduardo Galeano, o goleiro “carrega nas costas o número um. Primeiro a receber, primeiro a pagar. O goleiro sempre tem culpa. E, se não tem, paga do mesmo jeito”. E, pelo menos uma vez, realmente ele foi considerado culpado, quando o ainda esquálido Ronaldo, um projeto de fenômeno – e que projeto -, jogava pelo Cruzeiro e meteu cinco dos seis gols no Bahia. No final do jogo, cansado de tomar gols, Rodolfo fez um defesa, se ajoelhou e deixou a bola ao seu lado, para ganhar tempo. Mas não contava com a rapidez do garoto Ronaldo, que veio por trás, pegou a bola e fez o sexto gol. Triste sina de um goleiro, mesmo sendo Rodolfo Rodríguez, rotulado pelo atacante Tarcísio, ex-Grêmio e um dos jogadores que tiveram o chute barrado por sua histórica sequência de defesas, como maior do que as traves.
[nggallery id=14833]
Em uma de suas inúmeras visitas a São Paulo, Rodolfaço conversou com a Brasileiros. A coragem demonstrada debaixo das traves é a mesma com que responde a todas as perguntas e com a qual torceu e antecipou a vitória do Santos como campeão da Libertadores contra o Peñarol, em junho deste ano. Afirma que fez o prognóstico, em primeiro lugar por lógica, pois jogadores do Santos são superiores aos uruguaios. “O Santos tem jogadores como o Ganso e o Neymar, que desequilibram, tem uma zaga boa, um técnico muito bom. Além disso, fica a parte sentimental: o carinho que eu tenho pelo clube, pelo povo da Baixada, fez com que eu acreditasse no Santos e torcesse para ser campeão.”
Sobre críticas que teria recebido no Uruguai, por torcer por um time brasileiro contra um clube de seu país, Rodolfo rebateu, como se buscasse com naturalidade uma bola difícil no ângulo: “Não devo nada para ninguém, tudo que eu consegui no futebol foi por mérito próprio, nada de presente. Eu já manifestei que sou amigo pessoal do Diego Aguirre (treinador do Peñarol), de quem gosto muito, até moramos juntos, mas eu seria muito cínico se falasse que iria torcer para o Peñarol, sendo que joguei oito anos pelo Nacional e cinco pelo Santos. E, então, seria muito mais cínico se dissesse ‘que ganhe o melhor’. Quando me perguntavam quem que eu achava que iria ganhar, eu dizia que era o Santos, e quando me perguntavam quem eu queria que ganhasse, eu dizia o Santos. Se fosse contra o Inter ou contra o São Paulo, eu até torceria para o time do Uruguai, mas como foi contra o Santos, eu torci para o Santos”.
Fã do goleiro Manga, que jogou no Botafogo, no Internacional e no Nacional, Rodolfo atribui ao glorioso “Manguita” o fato de entrar para o futebol, no gol: “Jamais pensava em ser goleiro, mas, quando tomei consciência do que queria na vida, me espelhei no Manga. Um goleiro excepcional”.
De uma geração para outra, Rodolfo fala do futuro de Rafael, do Santos: “O goleiro, primeiramente, tem de passar segurança e tranquilidade a seus colegas. Se faz uma defesa fácil parecer difícil, dá moral para o adversário. E o Rafael é jovem, já foi campeão Paulista e da Libertadores, tem um bom físico e faz isso. Acho que o Brasil tem um goleiro de futuro nele”.
Eduardo Galeano afirmou que o Uruguai só entrou no mapa-múndi por causa do futebol, principalmente depois da Copa de 1950, quando derrotou o Brasil. Rodolfo faz uma defesa parcial do que falou o grande escritor de As Veias Abertas da América Latina: “Considerando o mundo como era nessa época, concordo com Galeano. Em relação à transcendência que o futebol tem, não tenho dúvida. E, em 1950, pelo fato de ter sido onde foi, da forma que foi, teve um destaque maior ainda. Mas o Uruguai foi campeão em Olimpíadas (1924 e 1928) e em outra Copa do Mundo (1930) e tem muita coisa boa: boas praias, um centro turístico como Punta Del Este, uma carne muito boa (o goleiro é fazendeiro, voltado para gado de corte)…”
Mas o ex-goleiro reconhece que o futebol é responsável por levantar o ânimo do povo uruguaio, principalmente dos jovens: “Eu vibrei com o Uruguai em 1970, quando fomos quarto lugar no México. É bom para a nova geração viver esse tipo de experiência. O Uruguai fez a coisa certa na última Copa. Teve jogadores importantes que desequilibraram, como Diego Forlán, defensivamente foi correto, não cometeu grandes erros, foi inteligente e consciente de suas limitações. Acho que nem mesmo os jogadores acreditaram que poderiam chegar na semifinal”.
Logo Rodolfo volta a falar da posição que abraçou como profissional: “Futebol é gol. A vida do goleiro está cada vez mais difícil, a bola está mais rápida, muda-se o regulamento, porque, no fundo, o futebol quer mais é alegria, e o gol muda o espírito de quem fez e de quem levou o gol, muda a cultura”.
Mas isso não impede que se lembre com alegria do fato de ter impedido inúmeros gols. Rodolfo recorda, emocionado, da placa que conquistou pelas cinco defesas que fez pelo Santos contra o América de Rio Preto, em 1984: “Foi superlegal a homenagem, não é comum esse tipo de coisa. Acho que foi a primeira vez no mundo. Fiquei muito feliz com a sequência de defesas. Nem eu vi coisa igual. Eu só não queria que a bola entrasse”. Quando fala isso, Rodolfo olha para o dedo mindinho esquerdo, torto. “Quebrei durante as defesas que fiz naquele dia, mas continuei em campo. Foi a única fratura que eu tive na minha vida. Eu joguei muitas vezes contundido, primeiro porque eu gostava de jogar e, segundo, porque você tem de aproveitar todas as oportunidades. Você não sabe quando vai ter outra chance.”
Não dá para deixar de pedir a opinião sobre a “roubada” de bola de Ronaldo, no fatídico (para Rodolfo e os torcedores do Bahia) gol em 1993. “A gente já estava perdendo e muito mal. Aproveitei uma defesa para dar uma esfriada no Cruzeiro. Deixei a bola do meu lado para fazer cera, mas não vi que o Ronaldo estava ali. Pegou a bola e fez o gol. Mas, como eu estava dizendo anteriormente, o que interessa é o gol e não a defesa. O goleiro está lá para acabar com a festa. O goleiro faz uma boa defesa, mas o que a torcida quer é o grito de gol, então acaba se sentindo um pouco como o vilão do futebol.”
E vai entender goleiro… Com todos os problemas que a posição enseja, o grande escritor Albert Camus, Prêmio Nobel de Literatura, deixou escrito: “Nada me ensinou mais na vida do que o fato de ter sido goleiro“. Rodolfo diz que se pudesse voltar a ser jogador, seria… goleiro. “Ser goleiro forma uma personalidade diferente. Está sempre sozinho, observando, esperando o que vai acontecer. É complicado sobreviver nessa posição. Mas goleiro tem tempo para observar e analisar o que está acontecendo, tem panorama geral. E isso pode ser levado para a vida fora do campo.”
E a vida fora do campo é uma partida que a maioria dos jogadores perde. Muitos, de goleada. A estrutura emocional e financeira é que vai contar para que o futuro também seja de vitórias. De acordo com Rodolfo, um plano de aposentadoria para atletas é, para ele, muito importante: “Não tenho dúvidas da importância de um plano desses. Eu mesmo conheci a desgraça de muitos colegas, anteriores e posteriores, que não souberam administrar o futuro. Naquela época, não existia tanto dinheiro em volta, tanto interesse pela publicidade e eles acabaram se dando mal por falta de preparo. A vida útil de um jogador começa aos 16, 17 anos, e tem um monte já em fim de carreira aos 29, 30. Enquanto um médico, um engenheiro está apenas começando a carreira, o jogador está terminando. E ele se encontra em um mundo para o qual não está preparado. Se fez dinheiro e foi uma pessoa que soube guardar e investir, ótimo. Alguns conseguem, mas é a minoria. Então, o jogador tem de começar a pensar no futuro aos 18 anos. Eu tive a sorte de jogar futebol por 22 anos, bem acima da média, mas ainda assim você só produz dinheiro durante, no máximo, sete anos. Com muita sorte, se não tiver cabeça para pensar no futuro… Conheço jogador que se aposentou por volta dos 30, hoje já está com mais de 45, nunca fez outra coisa na vida e passa dificuldade por isso.”
Para Rodolfo, no Uruguai a situação é mais complicada devido à defasagem salarial: “No meu país, os salários são bem mais baixos e o jogador, como no Brasil, se acostuma com um padrão de vida, se aposenta e quer manter esse mesmo padrão sem poder. Conheço poucos que, quando pararam de jogar, tiveram respaldo ou segurança para fazer outra coisa e continuar tendo uma vida boa. Sempre tive consciência, enquanto jogava, de que um dia aquilo iria acabar e sabia que, quando parasse, poderia ter mais anos pela frente do que tive como jogador de futebol. Nunca pensei que chegaria a jogar até os 38 anos, mas acreditava que poderia ter mais uns 50 pela frente. Quando decidi parar de jogar, meus filhos já estavam mais crescidos, perdi um pouco da adolescência deles, mas valeu a pena, foi a decisão certa, não me arrependo de nada. Sempre fui um pai presente, ligava para eles todos os dias”.
Citando uma frase do doutor Sócrates, de que “pior do que dar autógrafo é parar de dar“, Rodolfo afirma que, mesmo consciente, é duro encarar a vida longe das traves. “Para mim, foi muito difícil. E tem jogador que nunca deixa de ser jogador. Para este, é bem pior. Você tem uma vida repleta de viagens, é reconhecido, recebe muitos convites, tem todo o tipo de facilidade, mas daí quando para, tudo isso acaba. Se você não tem cabeça para poder assumir e assimilar sua nova situação, pode ser uma coisa complicada. Complicado também para os jogadores que querem ser técnicos só para continuar no futebol. Mas aí depende de muita coisa, primeiramente, ter consciência de que ele não é mais jogador e não pode mais pensar como jogador. Quando você joga, é responsável por você; quando é técnico, tem de pensar por 25 e isso é muito complicado.”
Mesmo se preparando muito para parar, Rodolfo se lembra do contraste de quando o atleta deixa de ser profissional: “Quando parei, continuei brincando com os amigos que acabou aquele luxo que tinha antes. Me trocava debaixo de árvore, quando tinha árvore. Eu me preparei dois anos para parar. Em 1990, aos 34 anos, quando saí do Sporting de Lisboa, achei que estava preparado para isso, mas o fato de ter ido depois de um ano para a Portuguesa e depois Bahia, me mostrou que eu não estava, caso contrário não teria voltado. Não me arrependo, pois foi uma ótima fase na minha vida. Quando parei pela primeira vez, voltei para o Uruguai, onde fiquei quase um ano, e iniciei o curso de Direito. Depois, voltei para São Paulo e fiquei mais quatro anos no futebol. Eu tinha 35 anos e joguei até os 38, quando parei definitivamente e concluí o Direito”.
Rodolfo tem dois filhos e uma filha. Os rapazes com 26 e 24 anos e a moça com 25. Ninguém partiu para o esporte, mas os três torcem para o Santos e o Nacional. Ele se casou no Brasil com Solange quando jogava pelo Santos, mas ela estava terminando os estudos no Uruguai, com os filhos nascendo lá. Os primeiros passos dos filhos, no entanto, foram dados no Brasil. Quando voltaram ao Uruguai, o menor tinha três anos.
E na bagagem, a família Rodríguez levou a saudade de amigos e da hospitalidade brasileira: “Levei o melhor comigo, porque o Santos foi o primeiro clube onde eu joguei no exterior. Saí do Uruguai com 27 anos, já havia sido campeão da Libertadores e do Mundialito, já jogava na seleção, mas o medo de sair estava presente em mim. Quando cheguei em Santos, todos abriram as portas de suas casas. A gratidão que tenho pelo clube é infinita. Até hoje, os diretores me tratam da mesma forma de quando eu jogava lá. Chega um momento em que, como jogador, você para dentro de campo, mas lá fora a vida continua. Não adianta você ser bom jogador em campo e mau caráter fora dele. Eu tenho as portas abertas, não só no Santos mas também no Nacional, no Bahia”.
Sobre o fato de a torcida tê-lo escolhido como jogador-símbolo na década de 1980, quando pelo Santos passaram grandes ídolos, como Pita, Ailton Lira, Juary, João Paulo e Serginho Chulapa, o ex-goleiro diz: “Torcedor não é bobo e sabe quando o jogador joga pela camisa. Conseguir transmitir isso à torcida é muito bacana. Sou do tempo em que o jogador ficava, no mínimo, cinco anos em um clube e não tinha vontade de sair. Hoje, jogam seis meses em cada clube. Ninguém os identifica com um time. No Uruguai, se um jogador sai do Peñarol para ir jogar no Nacional, ele perde o respeito do torcedor do Peñarol e jamais conquista o respeito do torcedor do Nacional. Então, dinheiro não é tudo.”
Deixe um comentário