Um golpe do destino vira poesia

Contador de histórias – e dos bons -, o jornalista Ricardo Viveiros acostumou os filhos e, depois, os netos a dormirem no embalo das aventuras que ele inventava a cada noite. Mas o registro desse ritual ficou só na lembrança da família, pois ele nunca se preocupou em colocar as histórias no papel. “Escrever para crianças não fazia parte dos meus planos”, diz Ricardo, autor de 23 livros sobre os mais diversos temas – de biografias a crônicas, passando por arte e poesia -, publicados ao longo dos anos em que trabalhou em jornais, revistas, emissoras de rádio e TV, no Brasil e exterior.

Em contato permanente com a realidade, em reportagens que o conduziram por mais de cem países como correspondente de guerra ou entrevistando personalidades, o jornalista não imaginava que, um dia, voltaria ao mundo do faz de conta, levado por um trágico episódio – a perda de um filho e de uma neta em um acidente de carro, há 15 anos. Sob o impacto do sofrimento, Ricardo buscou refúgio nas palavras e acabou criando uma fábula que o ajudaria a lidar com a dor. “Escrevi em menos de uma hora. O texto estava pronto e saiu com a naturalidade de um desabafo. Foi uma espécie de tábua de salvação e, por isso, não mostrei para ninguém. Assim que terminei de escrever, dobrei o papel e guardei em uma gaveta.”
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O que veio depois, segundo ele, é mistério: do mesmo jeito quase mágico como havia surgido a história, ela desapareceu. “Depois de um tempo, eu mesmo já não me lembrava do texto, muito menos do lugar onde poderia estar. Acho que a história entrou no pacote de coisas que simplesmente apaguei – a data, o nome do sujeito que bateu no carro do meu filho, o pronto-socorro, a missa… Não foi um processo consciente, mas hoje percebo que só quis guardar as boas lembranças do meu querido Ricardo e da pequena Mariana.”

No início deste ano, ao reencontrar aqueles papéis dentro de uma caixa qualquer, em meio a uma reforma geral na casa, Ricardo se pegou lendo o próprio texto com estranheza, como se aquilo tivesse sido escrito por outra pessoa. “Quando fui me dando conta do que se tratava, não consegui controlar a emoção. Revivi toda a tristeza daquele dia e chorei tudo de novo.” Ao mesmo tempo, ficou surpreso por não encontrar ali nenhum vestígio de mágoa, ressentimento ou revolta. Não era um texto trágico, como seria de se esperar: naquela pequena fábula sobre a perda, o tom maior era o da delicadeza. “Só então percebi como aquela história tinha me ajudado a entender e, principalmente, a superar minhas perdas.”

Ricardo voltou a guardar o texto, desta vez em um arquivo que não ficaria esquecido. Não tinha a intenção de mostrá-lo a ninguém, até que, meses depois, o assunto “crianças e perdas” apareceu, de repente, no meio de uma entrevista que ele fazia com o artista plástico Rubens Matuck. “Por causa de uma notícia qualquer no jornal, comentamos que era um equívoco achar que crianças e adolescentes não tivessem de lidar com perdas. Apesar de quase sempre estarem vivendo uma fase de conquistas, perdem sim. Às vezes, é só o bichinho de estimação ou o amigo que muda de escola, mas também perdem pessoas próximas.”

Ele, então, acabou dando o exemplo de sua própria família: “Contei que meu filho, hoje com 18 anos, havia perdido o irmão quando tinha 3 e minha neta, de 22, perdera o pai aos 7… Papo vai, papo vem, falei da história que tinha escrito naquela época e que tratava justamente disso”. Matuck, que também é ilustrador e autor de dezenas de livros infantis, quis ler o texto e, sem que Ricardo soubesse, criou imagens a partir daquela história. Mas o artista foi além: quando o autor viu as ilustrações pela primeira vez, Matuck já havia mostrado o trabalho para a editora Eny Maia, da Biruta, que já estava à espera de Ricardo para assinar o contrato de O Poeta e o Passarinho.

O primeiro infanto-juvenil de Ricardo chega às livrarias com um prefácio emocionado de Ziraldo, em uma edição bem cuidada pelo projeto gráfico de César Landucci. Na prosa poética do autor, as palavras “tristeza” e “beleza” não aparecem nenhuma vez, mas essa rima soa forte nas entrelinhas, contando que “um dia, o destino muda tudo, porque perder e ganhar faz parte da vida”.

Em linguagem que crianças entendem e aos adultos, encanta, Ricardo confessa estar gostando cada vez mais dessa nova escrita. Animado, ele se prepara para publicar um segundo livro infantil, em 2012 – agora o assunto será “saudade”, mas o título ainda é segredo. A única coisa que o autor garante é que, dessa vez, o texto não vai ficar esquecido em uma gaveta.

SERVIÇO
O Poeta e o Passarinho, Ricardo Viveiros, Editora Biruta, 30 páginas


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