Um guerrilheiro gentleman

4. Imprisonment in Sao Paulo 1950

Professor de Filosofia e Estudos Religiosos Comparados nas universidades McGill, no Canadá, e Oxford, na Inglaterra, Carlos Fraenkel discorre sobre seu avô materno, Joaquim Câmara Ferreira, um dos principais líderes da resistência à ditadura no Brasil. Fraenkel ainda estava na barriga de sua mãe, Denise, na Alemanha, quando o avô foi morto sob tortura, em outubro de 1970. No ensaio, publicado originalmente na revista americana The Nation, Fraenkel revela como o aristocrático jornalista Câmara Ferreira trocou a maquina de escrever pela metralhadora

Gentleman não é propriamente o primeiro atributo que nos vem à mente quando pensamos em revolucionários latino-americanos, de Simón Bolívar a Fidel Castro. No entanto, é assim que parentes, amigos e companheiros políticos descrevem o meu avô, Joaquim Câmara Ferreira. Junto com Carlos Marighella e Carlos Lamarca, ele foi um dos protagonistas mais destacados da luta armada contra a ditadura militar instalada no Brasil de 1964 a 1985. Ele é conhecido, em particular, como o estrategista político do golpe mais espetacular do movimento de guerrilha brasileiro: o sequestro, em setembro de 1969, do embaixador americano Burke Elbrick, que, tendo ficado detido três dias, foi colocado em liberdade em troca de 15 presos políticos. Essa ação fez com que meu avô se tornasse um dos principais inimigos do Estado. Meu tio lembra-se de uma noite, quando jogava bilhar em um bar: “De repente, um amigo me perguntou ‘Esse não é seu pai?’. Quando olhei para cima, vi sua foto em um cartaz de ‘Terroristas Procurados’ ao lado do balcão”. Menos de um ano depois, o regime o prendeu, torturou e matou.

Um guerrilheiro gentleman? Muitos dos que o conheceram até hoje tentam entender essa aparente contradição. Lembram-se dele como pessoa afável, tolerante e despretensiosa. Durante décadas, foi um dos líderes do Partido Comunista Brasileiro, responsável, em particular, pelas ações do partido na imprensa (sobretudo em jornais). E por que ele, tendo já ultrapassado com folga os 50 anos, decidira trocar a máquina de escrever pela metralhadora? A transição não fora fácil. “Começar um treinamento militar na minha idade!”, disse ele não sem autoironia a um amigo em Cuba, onde brasileiros da organização de resistência que ele ajudara a fundar preparavam o combate guerrilheiro. Não obstante, ele participou das aulas de tiro todos os dias.

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Minha mãe estava grávida de mim quando meu avô morreu. A última carta escrita por ele foi endereçada a meus pais, que haviam se estabelecido na Alemanha Ocidental como refugiados políticos. “Será que realmente tenho idade para ser avô?”, ele brincou, e perguntou se eles iriam honrar “nosso grande País” mediante a escolha de meu nome: Rosa, de Rosa Luxemburgo, se fosse uma menina, e Carlos, de Carlos Marighella, se fosse um menino.

A vida do meu avô esteve ligada à de Marighella por décadas de militância no Partido Comunista Brasileiro. Mas a decisão mais radical que tomaram juntos foi a de deixar o partido em 1967 para fundar a Ação Libertadora Nacional (ALN), que se tornou a maior e mais importante organização de luta armada no Brasil. Em 1969, Marighella escreveu o Mini-Manual do Guerrilheiro Urbano, em que falava da experiência de adaptar às grandes cidades brasileiras a tática de guerrilha desenvolvida por Che Guevara e outros para o meio camponês de Cuba. O Mini-Manual passou a ser leitura obrigatória para os movimentos militantes no mundo inteiro, desde as Brigate Rosse, na Itália, até a Symbionese Liberation Army, nos Estados Unidos, sem mencionar os grupos revolucionários na América Latina. No exílio, também meus pais se depararam com o Mini-Manual quando a Rote Armee Fraktion (RAF) o utilizou para instalar o terror na Alemanha Ocidental durante o governo social-democrático. A República Federal da Alemanha, pretendia a RAF, nada mais era do que um fascismo camuflado. Meus pais, que defendiam uma linha política de centro-esquerda, não compraram a ideia. Em uma foto minha, com 2 anos de idade, eu vestia um anoraque com um autocolante que dizia “Willy wählen” (“Vote em Willy”), uma referência a Willy Brandt, o líder do Partido Social-Democrata da Alemanha naquela altura.

Ainda que eu jamais tivesse encontrado meu avô pessoalmente, consegui conhecê-lo bastante bem por meio de uma biografia política escrita pelo historiador brasileiro Luiz Henrique de Castro Silva, lançada em 2010, por ocasião de uma cerimônia em homenagem ao meu avô no Memorial da Resistência em São Paulo. O memorial está localizado em um lugar emblemático, o antigo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), um dos instrumentos da ditadura para aniquilar a oposição política. No auditório lotado, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça pediu solenemente desculpas pelos crimes cometidos pelo Estado brasileiro contra o meu avô. Ele foi declarado “herói do povo brasileiro” e cidadão honorário de São Paulo.

Esse reconhecimento póstumo é parte de uma ampla reavaliação do período da ditadura militar, processo que teve início em 1995 com a Lei dos Desaparecidos e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e adquiriu vigor quando o Partido dos Trabalhadores (PT), liderado por Luiz Inácio Lula da Silva, venceu as eleições em 2002. Os esforços culminaram na Comissão Nacional da Verdade, criada pela sucessora de Lula, Dilma Rousseff, que havia participado da resistência armada como estudante e fora detida em 1970, sendo torturada e ficando presa durante três anos. Uma boa amiga de minha mãe dividiu uma cela com ela. O mandato da Comissão consiste em trazer à luz as violações de direitos humanos cometidas pelo Estado brasileiro entre 1946 e 1988, com enfoque especial sobre o período da ditadura militar. Esse projeto é tão controverso quanto importante: o que está em jogo é nada menos do que a memória histórica do Brasil. Qual o cenário em que ela se insere? Quem tem o direito de fazer parte dela e qual o papel que lhe é atribuído? Era o meu avô um terrorista e bandido ou um lutador pela liberdade e pela justiça? Foram os seus torturadores carrascos de um regime tirânico ou defensores de uma ordem política justa?

O carismático Marighella foi a face pública da ALN, enquanto meu avô preferia atuar nos bastidores. Assassinado pela ditadura em 1969, um ano antes do meu avô, Marighella transformou-se, no Brasil, em um ícone cultural. Consta que, nos últimos cortejos de Carnaval, foi possível desfilar, em várias cidades, em um bloco Marighella. As lendárias proezas de Marighella foram contadas em verso e rima na Literatura de Cordel, a poesia popular do Nordeste. Em 2012, dois dos mais renomados músicos do Brasil – Caetano Veloso, líder do movimento renovador na arte dos anos 1960, o Tropicalismo, e Mano Brown, o rapper número um do País – celebraram Marighella na sua música (o tributo hip hop que Mano Brown lhe prestou foi escolhido como a melhor música brasileira de 2012 pela revista Rolling Stone). No mesmo ano, foi realizado um novo documentário sobre Marighella e lançada uma biografia pelo jornalista Mário Magalhães. Com 784 páginas (que incluem mais de cem páginas de notas), o livro revelou-se um peculiar best-seller, amplamente recomendado pela imprensa convencional como presente de Natal. Comprei-o na Livraria Cultura, a maior de São Paulo, onde dúzias de exemplares sobrepostos formavam uma árvore de Natal. Não sei como Marighella teria reagido a esse gesto, mas ele indica a extraordinária mudança na maneira de ver um homem que, no final dos anos 1960, havia sido declarado o “inimigo número um” do Estado.IMG_0201

Apesar de o meu avô jamais ter gostado de se colocar em cena, tenho certeza de que ele teria gostado do seu biógrafo. Filho de um metalúrgico de Volta Redonda, o berço da indústria siderúrgica do Brasil, Luiz Henrique também trabalhou 18 anos como metalúrgico. Como cristão assumido, sua militância política está enraizada no Movimento Católico dos Trabalhadores e na Teologia da Libertação (as quatro páginas de agradecimentos da biografia começam agradecendo “a Deus, fonte geradora de toda vida em plenitude”). Meu avô, em contrapartida, tinha sido expulso da escola por se recusar a assistir à missa. Mas Marx e o Evangelho muitas vezes eram estudados em paralelo na América Latina. Entre os mais leais apoiadores da ALN estava um grupo de frades dominicanos. “Não podemos amar nosso próximo”, argumentavam eles, “se estamos competindo com ele em uma sociedade capitalista”. Um deles, frei Betto, ajudou meu avô a atravessar a fronteira para o Uruguai, depois do sequestro do embaixador americano Burke Elbrick (ele chegou ao Colégio Dominicano no Rio Grande do Sul disfarçado como professor de Teologia – o “professor Cavalcanti” – vestido de terno cinza com colarinho clerical e uma cruz presa à lapela). Outro dominicano, frei Oswaldo, depois da morte do meu avô, escreveu, em nome da ALN, uma carta de condolência para a minha mãe. Ele descreve o meu avô como um “mártir” semelhante a Che Guevara e Carlos Marighella, mas também o compara a Camillo Torres, o padre católico que aderiu à luta armada na Colômbia, afirmando que “se Jesus estivesse vivo hoje, ele seria um guerrilheiro”.

“Por que meu avô?”, perguntei a Luiz Henrique. Ele me contou como começara a investigar o destino de presos políticos em Volta Redonda durante a ditadura. “Deparei-me na literatura com o nome de seu avô o tempo todo, mas não encontrava nada escrito sobre ele. Então, eu quis saber mais. Quanto mais eu descobria, mais me apaixonava por ele.” Luiz Henrique, na altura já com mais de 30 anos, manteve essa paixão durante os seis anos em que escreveu a biografia que ele apresentou primeiramente como tese acadêmica e depois transformou em livro. Durante esse período, ele também trabalhava diariamente como professor, em uma escola secundária, para manter os quatro membros da sua família. Ele fez dezenas de entrevistas e analisou pilhas de documentos, especialmente nos arquivos da polícia, esse depósito de obscuras histórias sobre percursos de pessoas como o meu avô, que viveu muitos anos na clandestinidade. Durante o século 20, o lado feio da política brasileira – incluindo duas ditaduras – era justificado apontando o espectro do comunismo. Mesmo durante períodos democráticos, o Partido Comunista raramente teve estatuto legal. “Eu não queria que ele desaparecesse”, afirma Luiz Henrique. Sem ele, dificilmente teriam restado traços do meu avô.

O título da biografia, O Revolucionário da Convicção, alude ao fato de que as duas decisões-chave tomadas por meu avô na vida – a de aderir ao Partido Comunista, em 1933, aos 20 anos de idade, e a de deixar o partido para liderar a ALN, com Marighella, em 1967 – não foram o resultado de um processo fácil. “Foram decisões morais, voltadas contra a lógica da sua educação e de seu itinerário político”, sustenta Luiz Henrique. Meu avô nasceu em uma ilustre família de proprietários de plantações de café em Jaboticabal, uma cidade do Estado de São Paulo que seu trisavô, João  Pinto Ferreira, havia fundado em 1828. João Pinto veio de Portugal, provavelmente como militar agregado à corte de Dom João VI, que decidira transferir, em 1807, a família real e a corte portuguesa para o Rio de Janeiro, enquanto as tropas de Napoleão avançavam sobre Lisboa. Como prefeito de Jaboticabal, o pai do meu avô, Joaquim Batista Ferreira, esteve ligado à oligarquia dos barões do café, os governantes de facto do País durante a “República Velha”, que substituiu a monarquia, em 1889. Como engenheiro e diretor do departamento de construção de rodovias de São Paulo, porém, ele também fazia parte da emergente classe capitalista e industrial do País, construindo uma nova rede viária para transporte de mercadorias em franca expansão.

Meu avô, por sua vez, interrompeu o curso de Engenharia na Escola Politécnica de São Paulo (que garantia, na altura, como ainda hoje garante, o ingresso na elite brasileira), para se tornar um comunista em tempo integral. Ele deve ter visto o liberalismo da República Velha, representada por seu pai, como aquilo que ele era: a justificação do poder dos barões do café (os poucos cidadãos que votavam, votavam no candidato predileto dos coronéis – os patrões políticos e econômicos – em troca de favores ou para evitar punições). Nas plantações de café de sua família, ele podia assistir de perto à exploração dos trabalhadores rurais, e, como estudante de Engenharia em São Paulo, também à dos operários nas fábricas, uma vez que, já na época, São Paulo era o principal centro industrial do Brasil. No início dos anos 1930, ele começou a estabelecer contato com comunistas, como, por exemplo, Fosco Mazzoncini, um dos fundadores do Partido Comunista Italiano, que se refugiara no Brasil escapando de Mussolini. Ofereceram a ele uma teoria que explicava as razões de uma distribuição tão injusta da riqueza e do poder no Brasil e o que era necessário fazer para acabar com essa situação.

“O comunismo, o comunismo dá alegria”, disse meu avô a Sara Mello, sua amiga de longa data, quando ela perguntou o porquê de ele sorrir tanto. “Foi a maior sensação na vida do Câmara, o dia em que ele se tornou membro do Partido Comunista do Brasil”, ela lembra. Sua devoção ao comunismo era semelhante à dos primeiros cristãos, prontos a morrer por sua religião. Quando, em 1937, Getúlio Vargas usurpou o poder por meio de um golpe militar e implantou a ditadura do Estado Novo, ele reprimiu brutalmente os comunistas, “as forças do mal e do ódio” e o “inimigo mais perigoso da civilização cristã”. Em 1940, meu avô caiu nas mãos da polícia chefiada por Filinto Müller, um simpatizante dos nazistas que havia visitado a Alemanha a convite de Heinrich Himmler. Como meu avô era responsável pelos contatos secretos do Partido Comunista no setor militar e pela imprensa clandestina em São Paulo, a polícia tentou, durante dias, extorquir dele informações sobre a situação. Entre as surras que lhe deram, ele ficou pendurado de cabeça para baixo no pau de arara. Quando ele se recusou a falar, martelaram farpas de bambu embaixo de suas unhas. Como a dor se tornou insuportável, ele quebrou uma janela, cortou os pulsos e acabou na enfermaria. Ele passou cinco anos na prisão, a segunda metade dos quais na Ilha Grande, uma ilha para prisioneiros políticos, que acabou se transformando no improvável cenário de seu namoro com o amor da sua vida, minha avó Leonora. Antes de tomarem a decisão de casar, ele pediu que ela avaliasse bem as dificuldades de uma vida com um comunista. “Eu não acho que eu vou morrer na cama”, disse a ela.

Ele estava em Paris quando Carlos Marighella foi morto, em novembro de 1969, e decidiu imediatamente voltar para o Brasil, a fim de assumir o comando da ALN. Muitos tentaram dissuadi-lo, porque sabiam que suas chances de sobreviver eram mínimas. Ele insistiu que não poderia abandonar seus companheiros. Antes de partir para o Brasil, encontrou-se com Aloysio Nunes Ferreira, o contato da ALN em Paris, que lembra como caminharam juntos até a Gare d’Austerlitz:

“Passamos ao lado da praça do Panthéon e tinha lá um hotel chamado […] L’Hôtel des Grands Hommes […]. Aí eu disse: ‘Ô Câmara, quando você voltar aqui, você vai ficar nesse hotel’. Aí ele disse: ‘Não, Aloysio! Acho que o que me espera é aquilo lá’. E me apontou uma funerária.”

Menos de um ano depois, José da Silva Tavares, um jovem militante da ALN que havia sido capturado pela polícia, entrou em acordo com o mais notório torturador da época, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, líder do esquadrão da morte de São Paulo, o mesmo que, no ano anterior, havia montado a emboscada a Marighella. Para salvar sua própria pele, Tavares concordou em atrair meu avô para uma armadilha. Infelizmente, meu avô não teve tempo de engolir a cápsula de cianureto que trazia no bolso. Fleury e seus homens levaram-no para um sítio clandestino fora de São Paulo, onde já se encontravam presas duas pessoas que militavam na ALN. Uma delas, Maria de Lourdes, que havia trabalhado em estreita colaboração com meu avô, testemunhou sua morte. Ela conta que a única coisa que ele pediu foi que não a matassem. Depois de amarrá-lo no pau de arara, perguntaram a ele qual era sua pressão arterial. “Baixa”, mentiu, reprimindo a dor em seu peito. Ele mentiu, sabendo que aumentariam a voltagem da corrente elétrica. “Ele deu um sorrisinho para mim, eu dei um para ele”, conta Lourdes. “Ele armou, queria se suicidar.” Para desgosto de Fleury, meu avô morreu de um ataque cardíaco, antes mesmo de o interrogatório começar.

O escritor Jorge Amado, que, no final da década de 1940, editou com meu avô o jornal comunista Hoje, o descreveu como “o oposto” do estalinista sectário: “Ele não exigia que os demais fossem de aço nem xingava os companheiros de pequeno-burgueses, fazendo a praça de bolchevique”. A longa amizade que manteve durante sua vida com o político conservador Lucas Nogueira Garcez, ex-colega de sala, comprova isso. Seus pais tinham sido amigos desde que fizeram juntos o curso de Engenharia na Escola Politécnica. Quando meu avô deixou Jaboticabal para viver em São Paulo, onde frequentava o colegial, ele foi viver com a família ultracatólica dos Garcez. Conta-se que uma das irmãs mais novas de Garcez apaixonou-se por ele; os pais descobriram o romance adolescente e mandaram a garota para um convento de Carmelitas, onde ela passou o resto da vida como freira. Quando Lucas Garcez foi governador de São Paulo, entre 1951 e 1955, meu avô lutou resolutamente contra a sua política. Ele desempenhou um papel importante na “Greve dos 300.000”, que paralisou São Paulo em 1953. No entanto, a amizade deles perdurou. Durante a ditadura, Garcez tornou-se o presidente do partido que apoiava o regime militar. Mas quando meu tio foi rejeitado em um emprego do Estado por ser filho do meu avô, Garcez ligou para o presidente Garrastazu Médici e disse que iria renunciar ao cargo, a menos que a decisão fosse revogada. Até a sua morte, em 1982, Garcez sempre depositava flores no túmulo do amigo, no Cemitério da Consolação, em São Paulo.

Câmara Ferreira (primeiro à esquerda) no casamento de Renato e Denise pais de Fraenkel. Leonora, mulher do líder da ANL, é a primeira à direita.
Câmara Ferreira (primeiro à esquerda) no casamento de Renato e Denise pais de Fraenkel. Leonora, mulher do líder da ANL, é a primeira à direita.

Como é que o gentleman se transformou em guerrilheiro? Deixar o partido comunista depois de mais de 30 anos não deve ter sido fácil para o meu avô, que nutria grande consideração por seu líder de longa data, Luís Carlos Prestes. Mas eu não creio que exista aí um paradoxo. Embora certamente não tenha sido um homem violento por natureza, ele não hesitava quando julgava a violência necessária. Em 1948, por exemplo, ele resistiu de arma na mão à tentativa da polícia de fechar, sem um mandado, o jornal comunista Hoje. Durante o tiroteio, que durou a noite toda, ele ligou para o gabinete do governador de São Paulo, Adhemar de Barros. “Somos 47 homens dispostos a lutar para defender o jornal”, gritou. “Se alguma tragédia ocorrer, a responsabilidade cairá sobre a cabeça do governador.” Uma testemunha do incidente comentou mais tarde: “Esse Câmara, com aquele jeito de intelectual, pode ser uma fera!”.

Desde o final da década de 1950, o Partido Comunista tinha se distanciado da abordagem de que o único caminho para o socialismo seria a guerra de classes, que culminaria em uma revolução. O mesmo objetivo, alegava agora, também poderia ser alcançado por meio de um processo democrático. Meu avô explicou essa mudança de política em um relatório: a União Soviética dispunha de poder militar suficiente para evitar a eclosão de uma guerra imperialista. Assim, de agora em diante, o comunismo e o capitalismo poderiam competir em paz. Se a União Soviética mostrasse que estava em condições para garantir melhor o bem-estar dos trabalhadores, ela se tornaria um modelo que os trabalhadores do mundo inteiro tentariam imitar. Em países democráticos, eles poderiam fazê-lo elegendo partidos socialistas.

Durante um tempo, o otimismo do meu avô quanto a um caminho democrático para o socialismo parecia justificado. No início dos anos 1960, o Brasil passou, tanto no campo como nas cidades, por um período de grande efervescência social, que o presidente João Goulart conseguiu canalizar com sucesso, para apoiar sua agenda de “reformas de base”. Aclamada pelo Partido Comunista como a “antessala” da revolução socialista, a agenda de Goulart continua sendo o programa de reformas socioeconômicas mais audacioso jamais lançado por um governo brasileiro. (As reformas dos governos PT de Lula e de Dilma Rousseff tornam-se pálidas em comparação.) Visando tanto modernizar o País como combater a desigualdade social, Goulart propôs a reforma agrária, a reforma do sistema educacional e uma maior interferência do Estado na economia. Goulart queria transformar áreas agrícolas desaproveitadas em terra produtiva, tirando-as dos latifundiários e redistribuindo-as para as massas de trabalhadores sem terra. Um investimento em larga escala no sistema escolar público e campanhas de alfabetização segundo o método Paulo Freire, autor da famosa Pedagogia do Oprimido, visavam formar a mão de obra qualificada necessária a uma economia moderna, mas também dariam maior igualdade de oportunidades a todos os brasileiros. (Até o dia de hoje, um péssimo ensino público e escolas privadas boas, mas caras, perpetuam a segregação social no Brasil.) E Goulart queria impor limites para os lucros que companhias americanas e outras empresas multinacionais estrangeiras pudessem transferir para fora do Brasil. Em 1963, realizou um referendo sobre a restauração do poder presidencial (que havia sido restringido por opositores, sob um acordo parlamentar temporário), para implementar essas reformas de base. O resultado: 64% compareceram às urnas, dos quais 80% votaram a favor – uma maioria formidável. Um ano mais tarde, Goulart foi deposto pelo golpe militar.

O grau de envolvimento dos Estados Unidos no golpe é uma questão a debater. Lincoln Gordon, o embaixador americano, havia enviado telegramas alarmantes para Washington, avisando que o Brasil poderia se tornar “a China da década de 1960” e que Goulart estava conspirando para “tomar o poder ditatorial” com o apoio dos comunistas. Ele saudou o golpe como “a vitória mais decisiva para a liberdade em meados do século 20”. Enquanto isso, a CIA estivera envolvida em operações clandestinas para desestabilizar o governo: desde o treinamento de oficiais do Exército brasileiro até a mobilização de protestos nas ruas. O presidente Lyndon Johnson autorizou a “Operation Brother Sam”, para ajudar a derrubar Goulart. Os americanos enviaram um porta-aviões para a região; tornaram armas, combustível e outros suprimentos militares acessíveis para o Exército brasileiro; e estiveram prontos a abrir ataques aéreos e a desembarcar marines em São Paulo. (Entre os oficiais encarregados da logística esteve Paul Tibbets, o piloto do avião que largou a bomba atômica sobre Hiroshima.) No final, porém, os americanos não precisaram sujar suas mãos: os generais brasileiros conseguiram destruir a democracia em seu País por conta própria. Depois do golpe, um agente da CIA previu claramente “um clima muitíssimo melhor para investimentos estrangeiros”.

A ditadura impôs um fim violento ao processo pacífico de transformação democrática do Brasil. Para o meu avô, Carlos Marighella e muitos outros, os generais fizeram valer os interesses políticos e econômicos dos donos da terra e dos manda-chuvas da indústria, bem como os de seus aliados americanos, contra a vontade do povo brasileiro, que apoiara inequivocamente a agenda de reformas de Goulart no referendo de 1963. Ao longo do tempo, a violência aumentou. Sob os dois primeiros presidentes – o general Castelo Branco (1964-1967) e o general Costa e Silva (1967-1969) – o curso do regime parecia ainda não estar definido. Em 1968, no entanto, ele enfrentou uma série de graves desafios: uma onda de greves em São Paulo e Minas Gerais ameaçou paralisar os centros industriais do País; depois de a polícia matar um estudante em uma manifestação, 50 mil pessoas apareceram no funeral para expressar a sua indignação. As tensões culminaram com a “Passeata dos 100 Mil”, no Rio de Janeiro, onde muitos artistas, escritores e intelectuais juntaram suas vozes para exigir o fim da ditadura. Enquanto isso, a resistência armada iniciou uma campanha de “expropriações”, principalmente assaltos a bancos, para financiar suas atividades. A resposta do regime veio em dezembro, na figura do Ato Institucional no 5 (AI-5). O decreto levou ao fechamento do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas dos Estados por tempo indeterminado, impôs uma estrita censura e suspendeu o direito a habeas corpus. A partir desse momento, a polícia pôde prender e torturar, sem procedimento legal, qualquer cidadão suspeito de se opor ao governo. O AI-5 preparou o terreno para aquilo que o historiador Elio Gaspari chamou de “ditadura escancarada”: o regime abertamente autoritário, sob o general Garrastazu Médici. De 1969 a 1974, ele desencadeou o aparelho repressivo instituído em anos anteriores, a fim de esmagar o “inimigo” interno. Durante esses “anos de chumbo”, centenas de pessoas foram assassinadas ou “desapareceram”, milhares perderam seus empregos no curso de expurgos anticomunistas, foram presos e torturados ou fugiram para o exílio.

Câmara Ferreira ao microfone, com o dirigente Luís Carlos Prestes ao seu lado direito, em campanha do Partido Comunista.
Câmara Ferreira ao microfone, com o dirigente Luís Carlos Prestes ao seu lado direito, em campanha do Partido Comunista.

Para o meu avô, os Estados Unidos eram o inimigo supremo, ou seja, o poder imperialista que permitia que o sistema de opressão e exploração no Brasil continuasse. Já em 1952, quando Dean Acheson, secretário de Estado do presidente Truman, visitou o Brasil, ele incendiou uma bandeira americana na Praça da Sé em São Paulo – enquanto Acheson estava à mesa com o presidente Getúlio Vargas, comendo “caviar, foie gras, faisão e pontas de espargos, seguidos de profundos e rebuscados brindes regados a Pommery 1945”. Em 1969, ele ficou entusiasmado com o plano de sequestrar Burke Elbrick, o embaixador americano. Curiosamente, foi Elbrick – entre todos – aquele que o levou a uma visão mais matizada dos Estados Unidos. Quando eles se conheceram no esconderijo, no Rio de Janeiro, meu avô descobriu que o embaixador não só era um crítico do apoio americano a regimes não democráticos em países em desenvolvimento, mas também portava um arquivo secreto com dados biográficos de brasileiros proeminentes dos quais os americanos esperavam que pudessem restaurar um governo civil. Um deles era o bispo católico Dom Hélder Câmara, o teólogo da libertação e defensor dos direitos humanos, denunciado como o “bispo vermelho” pelo regime militar, por repudiar os abusos do mesmo. Tão grande foi a surpresa do meu avô de saber que o inimigo poderia ser um aliado, que ele decidiu gravar uma conversa com Elbrick, a ser transmitida em uma estação de rádio ocupada, embora a fita tenha se perdido nos dias tumultuosos após o sequestro. Para proteger seus sequestradores, mais tarde Elbrick mentiu, dizendo que não tinha visto seus rostos.

Se o objetivo do sequestro era provar que o inimigo podia ser derrotado, como o manifesto dos sequestradores dizia, o efeito obtido foi o contrário: ao longo dos anos seguintes, o regime humilhado esmagou a resistência armada. O objetivo político imediato do meu avô foi o de unir a oposição fracionada. É por isso que a lista de presos políticos a serem trocados pelo embaixador incluiu membros de vários grupos – de José Ibrahim, um líder sindical, até Gregório Bezerra, um veterano do Partido Comunista, que fez questão de se distanciar da luta armada depois de sua libertação. Um dos prisioneiros era conhecido somente por seu nome de guerra, “Chuchu”. Meu avô insistiu que eles não poderiam deixar um lutador de tal excelência para trás. “Mas como eles vão identificá-lo se não temos o nome?”, perguntaram outros.

“Ah meus amigos, isso a repressão descobre. Se o localizou aqui fora e o prendeu, agora ela vai ter de localizá-lo dentro da cadeia e soltá-lo.

E como é que se escreve esse “Chuchu”?

Vamos dar trabalho para eles. Escrevam assim: esse, agá, u, hífen, esse, agá, u. Shu-Shu. Vão pensar que é um perigosíssimo quadro chinês, um vietcong adestrado, um coreano secreto…

Mas Toledo…”

Enquanto o Partido Comunista continuava a sustentar a hipótese de que o socialismo poderia ser alcançado por meio de um processo pacífico e democrático, o meu avô não deixava dúvidas de que, a seu ver, a violência era uma forma legítima para lutar contra a ditadura. Em 1969, ele escreveu:

“Somos aberta e conscientemente partidários da utilização da violência e do terror contra os que esmagam – com violência e terror – as liberdades e os direitos do povo: contra os homens da ditadura e seus lacaios; contra aqueles que roubam… O produto do trabalho da população trabalhadora; contra os imperialistas norte-americanos e seus agentes.”

Mas nem tudo girava em torno da violência no final da vida de meu avô. Ele nunca se encaixou completamente na imagem descrita no Mini-Manual da Guerrilha Urbana, do lutador heroico que eliminava todos os apegos pessoais. Carlos Eugênio Paz, um militante da ALN que muitas vezes levava meu avô de automóvel a pontos de encontro, conta esta fascinante história:

“Aí, ele chegava para mim e falava assim: ‘Vamos lá ver a minha velha!’. Eu já sabia […] o que era essa mania dele. Aí, eu pegava o carro e ia de carro com ele lá na Vila Madalena, onde morava a mulher dele […]. Eu parava o carro lá no alto da rua, na hora em que ela (ele sabia os horários dela) saía para comprar o pão da manhã. A gente parava o carro lá em cima. Ele ficava longe, de dentro do carro, olhando a velha dele passar para comprar o pão na ida e na volta. […] Um homem que na época era o mais procurado do Brasil […]. Esse homem nunca perdeu a ternura. Esse homem, a poucos dias da prisão, e eu estava levando ele para ver a velha dele que saía para comprar o pão.”

Dentro do contexto histórico dado, terá sido moralmente errado usar a violência? Terá sido um erro estratégico? Ou o fim visado, isto é, uma sociedade comunista, terá sido o erro? A condenação universal da violência como um meio de resistência parece difícil de defender. Poucos sustentarão que as tentativas de assassinar Hitler foram um erro moral – ou a resistência contra a ocupação nazista da Europa, ou contra as ditaduras fascistas de Mussolini e Franco, ou contra os poderes coloniais europeus, ou contra o regime do apartheid na África do Sul… Existem bons argumentos que indicam que a luta armada contra as ditaduras militares na América Latina, inclusive no Brasil, também era legítima. Seja como for, meu avô considerou-a sua “obrigação moral”. Ao mesmo tempo, a ALN ressaltou que nenhuma pessoa inocente deveria sofrer: “Os atos terroristas revolucionários e a sabotagem não visam inquietar, amedrontar ou matar o povo”. Muitos artistas, escritores e intelectuais de destaque no Brasil e no estrangeiro manifestaram simpatia pela resistência armada e, por vezes, a apoiaram ativamente. Caetano Veloso escreve como ele e Gilberto Gil, seu companheiro na área musical, desenvolveram, durante seu exílio em Londres, “uma identificação (…) de caráter romântico” com “o heroísmo dos guerrilheiros como única resposta radical à perpetuação da ditadura”. Entre os simpatizantes também se encontravam Glauber Rocha, o pioneiro do Cinema Novo, e Augusto Boal, o criador do Teatro do Oprimido, que foi uma figura central no teatro contemporâneo. Jean-Paul Sartre publicou uma série de textos programáticos da ALN em tradução francesa na revista Les Temps Modernes. Jean-Luc Godard, que naquela época celebrava o maoismo em seus filmes, doou dinheiro; e o pintor catalão Joan Miró enviou desenhos.

Tampouco é óbvio que a escolha do meu avô tenha sido um erro estratégico. A Revolução Cubana e a Guerra do Vietnã provaram que as chances de Davi na luta contra Golias ultrapassavam largamente o arremesso de uma pedra. E a onda dos protestos estudantis em nível mundial indicava que a geração mais jovem se insurgia contra o mundo dos pais. (A maior parte dos membros da resistência armada no Brasil provinha da ala radical do movimento estudantil.) Talvez o apoio popular aos guerrilheiros tivesse sido maior se o Brasil não tivesse saído vitorioso na Copa do Mundo de 1970 ao mesmo tempo que começou o desenvolvimento econômico – depois de os pobres pagarem o preço das drásticas medidas de estabilização.

Deixando essas especulações de lado, a questão central que se coloca é se um regime do estilo Fidel Castro poderia ter contado com muito apoio, se os guerrilheiros tivessem tido sucesso. Em uma entrevista sobre Carlos Marighella, o ex-presidente Lula imagina-o olhando do céu para o Brasil: “Ele diria ‘valeu a pena morrer’ porque nós agora estamos colhendo o que ele e seus companheiros semearam”. Para Lula, Marighella foi um “herói nacional”, que lutou para restabelecer a democracia. Palavras semelhantes foram ditas em relação ao meu avô, quando ele foi homenageado no Memorial da Resistência em São Paulo, em 2010. Mas será que a resistência armada se enquadra em uma narrativa que culmina no governo do PT? Afinal de contas, o projeto de vida de pessoas como meu avô e Marighella visava a uma revolução socialista. É certo que vários antigos guerrilheiros – entre eles Dilma Rousseff, a mais renomada – engrossaram as fileiras do PT e, quem sabe, também meu avô e Marighella teriam feito parte daqueles que, no início dos anos 1980, foram seus membros fundadores. Aliás, o primeiro cartão de filiado do partido foi entregue a Apolônio de Carvalho, cuja biografia política é muito semelhante à do meu avô: ele foi admitido ao Partido Comunista nos anos 1930, tornando-se um dos líderes do grupo comunista do Rio, depois de ter lutado contra Franco nas Brigadas Internacionales, na Espanha, e contra os nazis, na Résistence Française. Durante a ditadura brasileira, ele também aderiu à resistência armada, foi capturado, preso, torturado e posteriormente, em 1970, libertado em troca do embaixador alemão Ehrenfried von Holleben – a segunda ação de sequestro em que a ALN teve um papel-chave.

A despeito de suas raízes nos sindicatos de trabalhadores, o PT cedo se transformou em uma cúpula que abarcava uma gama de grupos progressistas: de ambientalistas e antigos comunistas até católicos adeptos da Teologia da Libertação. Quando a Guerra Fria perdeu gradualmente força, muitos membros da esquerda sentiram que não deveriam continuar a optar seja pelos Estados Unidos seja pela União Soviética ou a China. O socialismo democrático advogado pelo PT começou a aparecer como uma alternativa atraente. A grande surpresa aconteceu quando, após três investidas malogradas, Lula foi finalmente eleito presidente, em 2002. Em vez de seguir uma agenda política socialista, porém, ele deu continuidade às políticas neoliberais do seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso, que pôs o Brasil na rota do crescimento econômico. Ao mesmo tempo, ele redistribuiu uma parte da receita do País a milhões de famílias pobres por meio de seu programa de bem-estar social, o Bolsa Família. Famílias que preenchessem os requisitos estabelecidos receberiam pequenas quantias de dinheiro na condição de vacinarem seus filhos e os enviarem para a escola. Uma vez que economizar dinheiro não é possível quando se sobe do nada para o quase nada, o Bolsa Família serviu indiretamente para impulsionar a economia por meio do consumo. Para satisfação de seus ricos proprietários, muitas empresas cresceram. Os patrões, em contrapartida, geraram empregos novos, tornando possível que muitos brasileiros pobres passassem à classe C, a baixa classe média, que atualmente engloba 50% da população. Porque a classe C gasta o dinheiro em vez de guardá-lo (finalmente, as pessoas podem comprar o tênis Nike, a bolsa, o televisor com monitor de tela plana ou o carro há tanto tempo sonhados), o que provoca um estímulo econômico adicional. No final, todos acabaram mais felizes, o que explica a popularidade astronômica de Lula (com aprovação de mais de 80%) no final do seu segundo mandato, em 2010. Muitos dos adeptos da ala esquerda do PT, não obstante, rasgaram seus cartões de membros do partido: Lula, eles sentiam, tinha traído os ideais do seu partido. A desigualdade social no Brasil continuava a ser uma dos maiores do mundo; as escolas públicas e o sistema de saúde permaneciam em estado precário; e da reforma agrária já não havia o mais remoto vestígio na agenda. Em suma, Lula não havia mudado a estrutura injusta da sociedade brasileira.

Estarão, pois, meu avô e Marighella aplaudindo o PT a partir de uma nuvem no céu ou, revoltados, revirando-se em seus túmulos? É importante ter em mente que o PT nunca teve a maioria no Congresso Nacional; também não está claro se teria sido possível seguir um programa de reformas mais ambicioso. (O mensalão, o grande escândalo da corrupção que, em 2005, poderia ter custado o cargo presidencial de Lula, foi uma tentativa inveterada de comprar votos de deputados do Congresso.) As recentes manifestações que agitaram as ruas nas cidades brasileiras podem ser consideradas uma expressão de descontentamento em relação aos recordes atingidos pelo PT. Mas também podem ser vistas como resultado das mudanças sociais engendradas pelo programa Bolsa Família de Lula: uma nova classe média, autoconfiante e com uma melhor educação está se levantando para defender seus interesses. A resposta positiva de Dilma Rousseff aos protestos talvez indique sua esperança em transformá-los em alavanca política para angariar o apoio do Congresso a reformas sociais mais radicais.

Eu não sei se meu avô e Marighella seriam partidários dessa interpretação otimista. Assim como Apolônio de Carvalho, eles provavelmente não continuariam a colocar um sinal de igualdade entre a justiça e o modelo comunista soviético ou chinês. Mas seguramente eles insistiriam que o Brasil de hoje ainda está muito longe de ser uma sociedade justa. Será que eles veriam a política do PT como a melhor via de gradualmente impor essa justiça? Ou argumentariam que a justiça só pode ser conquistada por meio de uma mudança radical nas instituições políticas, econômicas e sociais do Brasil? Em vez de retratá-los simplesmente como heróis do PT, a melhor forma de homenagear tanto a eles como aos ideais que viveram e pelos quais morreram será a de manter acesas estas questões no discurso público do Brasil.


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