O chanceler mais longevo da história da República do Brasil acaba de chegar ao Rio de Janeiro. Ex-ministro da Defesa de Dilma Rousseff e ex-ministro das Relações Exteriores de Luis Inácio Lula da Silva, Celso Amorim se despediu de Brasília e agora vive em um amplo apartamento em Copacabana, vizinho do lendário hotel Copacabana Palace, com vista para o mar. As paredes da sala são praticamente cobertas de objetos decorativos e obras de arte que ele adquiriu em viagens ao redor do mundo.
O ex-ministro foi artífice de uma política externa ambiciosa que, naturalmente, rendeu não só admiradores, mas também críticos. A gestão de Amorim buscou protagonismo no debate internacional e liderou o movimento que deu voz aos países em desenvolvimento na diplomacia mundial. Fez da América do Sul a prioridade do Itamaraty, além de apostar na ampliação de relações com países africanos.
Em entrevista à Brasileiros, Amorim fala sobre temas de seu novo livro, Teerã, Ramalá e Doha – Memórias da Política Externa Ativa e Altiva (Editora Benvirá), no qual relata a tentativa de mediação do Brasil e da Turquia na negociação do programa nuclear iraniano, em 2010, de outras experiências diplomáticas no Oriente Médio e a participação do Brasil na Rodada de Doha. Também comenta o acordo internacional sobre o programa nuclear do Irã, que deve ser selado este ano, a rotina como ministro da Defesa ao longo da realização da Comissão da Verdade e faz críticas à cobertura da imprensa brasileira, que prefere viver “à sombra da dependência” aos Estados Unidos. Confira trechos da entrevista.
O acordo com o Irã
Tem um ditado que diz ser privilégio das grandes potências a incoerência. É o caso dos Estados Unidos. Eles rejeitaram o acordo que conseguimos em 2010 e agora resolveram se reaproximar do Irã. Hoje, cada vez que os EUA falam no acordo, dizem que as sanções fizeram o Irã mudar de posição. Não é verdade, porque o país já tinha concordado com as condições no acordo intermediado pelo Brasil. Acho que o Irã queria realmente cooperar com o Ocidente porque sabe das restrições que sofre. Na reunião final de negociação, em 2010, que durou 17 horas, havia o ministro do Exterior, o secretário de Segurança e o diretor da agência atômica iraniana, que me pareceu mais interessado no acordo porque sentia as limitações no trabalho dele. Com a evolução da política no Oriente Médio, também ficou evidente que o Irã é um ator indispensável para haver alguma estabilidade na região, independentemente de gostar ou não do regime do país. Essa negociação começou antes da eclosão do Estado Islâmico, mas o Irã se tornou fundamental para que se tenha uma ação real contra ele. (O Irã, de governo xiita, tem denunciado os crimes do Estado Islâmico, que é sunita.) Apesar da força que tem o lobby de Israel nos EUA, acho que começa a haver certa irritação dos americanos com essa pressão. De Barack Obama certamente. O lobby de Israel se aproveita politicamente, mas não creio que seja decisivo.
A negociação no Brasil
Não me sinto frustrado pelo Brasil ter ficado de fora da negociação. Acho que nossa tentativa ajudou para que o acordo acontecesse. O que eu ouvia na época era que não se podia confiar no Irã, que seríamos enganados. Mas aquela tentativa, que na época me deixou frustrado, se mostrou acertada. Sergey Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, disse quando veio ao Brasil: “Teríamos ganhado três ou quatro anos se tivéssemos aprovado o acordo que vocês conseguiram”.
A elite e a imprensa
No Brasil, elite e imprensa requerem análise sociológica. De modo geral, têm grande preocupação em manter uma relação confortável de dependência dos Estados Unidos. É preferível, na visão de alguns, ser o filho que fica em casa, ainda que no quarto menor e com regras a seguir, do que sair na rua e enfrentar o mundo, com mais oportunidades e riscos. Na minha opinião, o tamanho do Brasil impõe uma política dessa natureza, aberta e plural. Tínhamos alto nível de confiança com os EUA. Às vésperas do referendo revogatório na Venezuela, eu disse que estava preocupado porque o Roger Noriega (ex-secretário assistente de Estado, EUA) iria fazer um discurso no Senado e, dependendo do tom, poderia inflamar o discurso de Hugo Chávez e complicar as coisas. Aí, Colin Powell (secretário de Estado, EUA) pediu para Noriega mandar o discurso para nosso subsecretário para a América do Sul, Macedo Soares. Mas, para a mídia brasileira, qualquer gesto era hostil. É uma coisa da psicologia nacional, mas certamente responde a interesses de pessoas e grupos que vivem à sombra dessa dependência.
A espionagem americana
Eu era ministro da Defesa na época, mas acho que o Brasil agiu corretamente com o cancelamento da visita que Dilma faria aos Estados Unidos. Precisa ficar clara a nossa relação: se somos aliados ou não – porque aí decidimos nos relacionar com quem temos confiança. Os Estados Unidos são um cliente importantíssimo para manufaturas e investimentos brasileiros. Mas não tem cabimento o Brasil ficar de joelhos – aí entra a mídia mais uma vez, dizendo que o Brasil tem de recompor as relações com os Estados Unidos. Desculpe, mas quem precisa recompor as relações são os Estados Unidos. Eles precisam garantir que isso não vai acontecer de novo. Não tem cabimento algum ter a presidente e sua companhia de petróleo espionados, como aparentemente foram.
O País e o mundo
O Brasil é um país do sul, em desenvolvimento e democrático. Por isso demos importância a fóruns como o IBAS (Índia, Brasil e África do Sul), que junta três países democráticos, multiculturais. Mas não quer dizer que só vamos nos relacionar com países com regimes ideais. Os países que mais estão aproveitando a relativa abertura do Irã após as sanções serem baixadas são os europeus. Isso por que o regime do Irã mudou? Não. A abordagem em relação a esses temas tem de ser mais complexa. A abordagem pseudomoralista é hipócrita porque só é usada quando interessa. E não funciona. Quanto mais se isola o país, mais ele toma uma atitude de autocomplacência que agrava a situação. Criando pontes, pode haver uma contaminação positiva com o passar do tempo.
O Mercosul
Com a aproximação da Argentina com a China e a perda de espaço do Brasil, devemos repensar o Mercosul, mas para fortalecê-lo, não para nos afastarmos. Os industriais brasileiros reclamavam que dávamos atenção demais à Argentina. Agora dizem que devemos dar mais. O Brasil é forte, mas em termos de grandes blocos econômicos não tem o peso que tem a China, os Estados Unidos ou a União Europeia. A América do Sul, para nós, é fundamental. Se conseguimos fazer um banco dos BRICS, porque não conseguimos fazer um banco dos países da América do Sul?
Como mediador
O Brasil é visto como bom mediador porque dialoga com todo mundo, pela sua posição marginal estratégica, por não ter se envolvido em conflitos e também por ser um país grande. Agora, para dizer por que o Brasil é bem visto lá fora, tenho de responder como fiz com quem me perguntou por que fui eleito, em 2009, o melhor chanceler do mundo por um jornalista da revista americana Foreign Policy. Porque eles estão mal informados, não leem os jornais brasileiros, que só me criticam. Deixar o Itamaraty perder espaço seria um erro grande. Se isso continuar por muito tempo, pode ser irreversível. O Brasil vive uma situação difícil do ponto de vista econômico. Recuperar a projeção em um momento de maior dificuldade não é tão simples. As pessoas pensam que prestígio é uma coisa e interesse econômico, outra. Mas essas coisas se ligam com o tempo.
Peso diplomático
A empatia entre chefes de estado e ministros tem algum peso nas negociações diplomáticas. Não vai decidir uma situação, mas sem dúvida, no caso de Lula, o carisma, o que ele representa, um líder operário que aprendeu a ler com 10 anos, causava uma impressão forte. E ele aprendeu a capitalizar isso. Programas como o combate à fome no mundo deram ao Brasil um grande triunfo em termos de política internacional. Lula já era uma pessoa viajada como líder sindical, não surgiu para a política internacional quando se tornou presidente. Na questão do Irã, ele tinha uma predisposição para uma boa relação por ser a favor de uma política universalista. Eu propus abrir uma embaixada no Afeganistão – o Brasil não pode ser membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e não estar em um dos maiores focos de tensão no mundo. Essas coisas, Lula percebia. Ele tem um entendimento rápido das coisas e das atitudes humanas. Percebe como a pessoa age. Ele me dizia: “Olha, Celso, com esse cara não adianta”.
O Exército e a verdade
Tive de lidar com uma questão complexa e difícil: a Comissão da Verdade. Não foi perfeito, mas fiz o melhor que pude. Tinha de reconhecer a necessidade de resgatar a memória e preservar a moral das Forças Armadas. Tinha de ir devagar, na humildade.
Achei positivo o trabalho da Comissão. Em termos de acesso à informação, visitou vários locais onde houve tortura. O funcionário da Defesa que foi acompanhar me disse: “Eu não podia imaginar isso acontecendo. Estamos aqui visitando locais onde houve tortura, acompanhados das vítimas e na presença do general que é comandante do local”. É um avanço extraordinário. Quando foram dadas as honras militares a Jango, as Forças Armadas foram e cumpriram o dever institucional. Isso é o que interessa.
Lei da Anistia
A revisão da Lei da Anistia é uma questão complexa. A maior condenação é o opróbrio da opinião pública. Botar na cadeia agora um velhinho de 85 anos em uma cadeira de rodas é capaz até de despertar comiseração. É importante encontrar a memória. Compreendo perfeitamente o sofrimento das vítimas que querem reparo. Mas o País tem de andar para frente, não pode ficar obcecado por isso. O golpe de 1964 foi militar, mas inicialmente as Forças Armadas foram instrumento da elite brasileira. Pensar que o golpe foi só militar é um erro. Uma vez no poder, os militares cometeram distorções. Mas quem deve desculpas é o Estado como um todo, o que já fez com a Comissão de Mortos e Desaparecidos, com a Comissão de Anistia. O possível de se obter nesse momento histórico foi que as Forças Armadas não negassem isso.
De cineasta a diplomata
Fui assistente de direção de Ruy Guerra em Os Cafajestes e de um dos episódios de Cinco Vezes Favela. Eu tinha 19 anos quando surgiu a oportunidade de dirigir um filme, mas achei que não estava preparado e recusei a proposta, queria estudar mais. Fui trabalhar de copydesk no jornal Tribuna da Imprensa. Depois, prestei concurso para o Itamaraty, em 1962. Eu me formei em 1964 e a partir do golpe foi muito difícil.
A vida
Na pior época da ditadura, saí do Brasil. Eu já era diplomata e fui para Londres porque também queria estudar. Achava ainda que eu poderia ter de sair do País. Passou por lá uma Comissão Parlamentar de Inquérito e fiquei preocupado. Investigava-se a imagem do Brasil no exterior e fui ouvido como testemunha. Não sabia o que poderia vir. Com certas pessoas, mesmo na Embaixada, não dava para falar o que pensava. Algumas vezes ajudei a passar notícias de violações de direitos humanos no Brasil para conhecidos que trabalhavam em jornais estrangeiros. Sempre agi dentro dos limites. Na volta ao Brasil, me tornei presidente da Embrafilme e aprovei o filme ABC da Greve, de Leon Hirszman, sobre a greve do ABC, na época em que o Lula foi preso. Culminou com o Pra Frente Brasil, de Roberto Farias, que trata de tortura. Aí, fui convidado a pedir demissão.
Carreira política
Quando me filiei ao PT, em 2009, considerava a possibilidade de me candidatar. O governo Lula ia acabar e eu não ia voltar para o serviço diplomático. Tenho afinidade pelo PT, mas resolvi entrar para o partido pelo Lula. Fui convidado para ser candidato a deputado pelo Rio de Janeiro, mas, para mim, bastava brigar com americano, europeu, a imprensa brasileira. Hoje estou velho para isso. Ainda tenho contato com Lula, mas já fiz o que podia fazer. Fui ministro por quase 13 anos, nenhum outro ministro da República ficou tanto tempo. Não cansei porque não cansei da vida.
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