Humberto Werneck assombrou várias redações, ao longo de quase duas décadas, com uma criatura espectral de quem ninguém jamais ouvira falar. Atribuía a ela histórias com tal sabor, pontilhadas de tamanha ironia e tamanha inteligência que, conhecendo-se Humberto Werneck como a gente conhecia, não era difícil perceber nele o mérito de ter concebido um personagem deliciosamente ficcional – e laboriosamente verossímil.
Causeur da estirpe de um Otto Lara Resende – aliás, um de seus diletos personagens em O Desatino da Rapaziada (Cia. das Letras, 1992) – e frasista afiado, desses de fazerem inveja à lingüinha venenosa de Oscar Wilde, Humberto Werneck, por modéstia ou por picardia, tem teimado em emprestar aos outros o requinte de uma oralidade que sempre descortinou, nele, o prenúncio da melhor literatura.
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Na faina braçal do jornalismo, Werneck aproveitava para desconversar, mineiramente: literatura é para os outros. No turbilhão dos que se beneficiaram dos empréstimos verbais de Werneck, diplomado ourives de palavras, vira e mexe ressurgia o nunca assaz citado Jayme Ovalle. Aquele, dizia-se, de quem os maiores talentos – admiradores incondicionais – queriam estar próximos. Gênio sem obra. Ou então, na espreita perigosa do clichê: gênio cuja obra foi a própria vida.
Humberto Werneck compartilhou com esse seu Jayme Ovalle as peripécias do que parecia ser um prolongado, indissolúvel paralelismo, num labirinto de mistérios e alegorias que só tornava ainda mais indistinta, do criador, a enigmática criatura.
No entanto, quando menos se esperava, Werneck quebrou o pacto e se desgarrou dele. Paradoxalmente, ao botar no papel uma biografia de alguém que parecia condenado ao limbo de uma estranha fantasmagoria. Biografia é um documento que confere materialidade. Jayme Ovalle existiu, mostra Werneck. Até fotos desse Jayme Ovalle existem. Não, Jayme Ovalle não é a invenção de amigos devotos da fábula, em homenagem reiterada em letras e imagens, prosa e verso, crônica e romance.
Manuel Bandeira, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Emiliano Di Cavalcanti, Heitor Villa-Lobos… Os amigos, vários deles,
reiterando o paralelismo, também amigos de Humberto Werneck. Todos cúmplices nesse segredo das catacumbas, confrades no culto a um artista sem obra, ou quase sem (33 canções e alguns rabiscos, computou o minucioso biógrafo). “Ele provou que a arte pode realizar-se sem se formalizar”, defende Humberto Werneck.
O Santo Sujo A Vida de Jayme Ovalle (Cosac Naify, 398 páginas, R$ 55) é guiado pela curiosidade de quem, um dia, descobriu que o Germano de Encontro Marcado foi inspirado nesse Jayme Ovalle. Fernando Sabino lhe confirmou: sim, Jayme Ovalle, “um homem estranhíssimo”. Humberto Werneck nasceu
em Belo Horizonte e, assim como toda aquela nossa geração, sofria acessos de taquicardia toda vez que trafegava pelas páginas primordiais de Fernando Sabino. Germano/Ovalle – o ectoplasma começou a assumir lenta, lentíssima realidade. Humberto Werneck que nos perdoe, assim como os fiéis da igreja ovalianna, mas o fascínio de O Santo Sujo emana menos do biografado, que continua “estranhíssimo”, e mais da própria peregrinação do biógrafo, em meio às armadilhas feiticeiras da parábola. Jayme Ovalle
deixou sua obscuridade quase fictícia, Humberto Werneck libertou-se de sua sombra obsessiva. Ovalle não é, como se chegou a pensar, um brilhante heterônimo de Werneck. De mais a mais, Humberto Werneck, ele sim, tem uma obra. Maior do que a vida.
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