Com os olhos esbugalhados, a voz de brigadeiro, os modos afetados que escondiam segundas intenções, José Lewgoy, para as novas gerações, reinou em novelas da Globo. O dúbio, o velho bonzinho, o vilão disfarçado. O vilão. Quem o conhecia do cinema via mais o vilão. Foram cem filmes, por baixo, muitos deles feitos fora do Brasil, em que Lewgoy marcou época como vilão. Um ator com uma filmografia mais extensa e o mesmo ar ofídico característico dos grandes vilões é Wilson Grey (1923-1993). Mas Lewgoy é único. Eu Eu Eu José Lewgoy, documentário dirigido por Cláudio Kahns, com estreia prevista para novembro nas principais capitais, revela para o público um homem/personagem multifacetado e riquíssimo. O cara da piada: “Estou cansado de falar de mim. Vamos falar de você. O que você acha de mim?”. Daí o título.

Kahns é da safra da chamada Vanguarda Paulista, da virada dos anos 1980. A Tatu Filmes, por exemplo, que começou com vários sócios e hoje é só dele, é responsável, ao lado do teatro Lira Paulistana, por transformar a Vila Madalena nessa mistura de Quartier Latin com Greenwich Village que habita o imaginário de muita gente. Era só atravessar a rua, a Wisard, e lá estava o Empanadas. Na esquina, o Sujinho. O pessoal passava mais tempo debruçado no balcão do que na moviola – alguém se lembra do que é moviola?
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Kahns dirigiu poucos filmes, entre eles Santo e Jesus, Metalúrgicos (1984) e o recente Mamonas para Sempre (2011). Concentrou-se na produção, e a Tatu Filmes é responsável por títulos emblemáticos, como Janete, Vera, Marvada Carne e Feliz Ano Velho, todos realizados nos anos 1980. Foi com O Judeu (1986), de Jom Tob Azulay, que se aproximou de Lewgoy a quem conhecia superficialmente. Como cinéfilo, Kahns sabia de sua importância e logo decidiram que o ator seria um bom tema para filme. As negociações para o financiamento foram interrompidas com a morte do ator, em 2003, aos 82 anos. Como se não bastasse, governos mudaram. Porém, os compromissos foram honrados e Kahns pôde realizar Eu Eu Eu José Lewgoy.

E é uma história e tanto por si só. Nascido no Rio Grande do Sul em 1920, em Alfredo Chaves, atualmente Veranópolis, Lewgoy foi com 15 anos para Porto Alegre. Envolveu-se com teatro e ficou amigo de Erico Verissimo e Mario Quintana. Em depoimento no filme, o ator gaúcho Walmor Chagas lembra-se da comoção em sua família para assistir às peças em cartaz. Para que se tenha uma ideia do talento do menino, em 1947, Lewgoy traduziu, criou os cenários, dirigiu e interpretou O Viajante sem Bagagem, de Jean Anouilh. Não é à toa que Verissimo e Quintana tenham mexido os pauzinhos e conseguido uma bolsa para que ele fosse estudar teatro na Universidade de Yale, nos Estados Unidos.

De volta ao Brasil, do que se arrependeria a vida toda, o Zé, como ficou conhecido, entrou de cabeça no cinema. Era o apogeu da Atlântida. Sua estreia foi em Carnaval no Fogo (1949), cujo lançamento foi adiado e o público acabou conhecendo-o primeiro com Perdida Pela Paixão (1950), ao lado de Tônia Carrero. Uma das primeiras imagens de Eu Eu Eu é Kanhs exibindo uma cópia desse filme para uma atônita Tônia, que destaca o preparo de Lewgoy como ator.

Como não tivesse o physique du rôle para interpretar galãs, Zé foi mau. Ao lado da nata do cinema brasileiro da época, Eliana Macedo, Oscarito, Grande Otelo, Anselmo Duarte, Colé, Cyll Farney e o onipresente Wilson Grey, Lewgoy tramou, mentiu, conspirou até se encher. Em 1954, depois de participar do Festival de Cannes, fixou residência na França e só voltou depois de dez anos. Em Paris, filmou com Jean Marais, vendeu desenhos às margens do Sena ao lado de nada menos que o pintor cearense Antonio Bandeira, passou fome – Kahns ouviu isso da família de Lewgoy, em Veranópolis.

Quando voltou em 1964, além da ditadura, Lewgoy se viu diante de um cinema exaurido. Mas ele era de circo mesmo sem ser. Ao mesmo tempo que foi atraído pelo furacão Glauber Rocha, fazendo Terra em Transe (1967), participou do nascimento das neochanchadas, futuras pornochanchadas. Em Roberto Carlos em Ritmo de Aventura, o diretor Roberto Farias o fez um vilão metalinguístico. Uma voz em off pergunta: “E o que um vilão deseja?”. Lewgoy responde: “Queria, em pelo menos um filme, matar o mocinho”. Logo mergulhou no gênero e foi atraído pelas novelas da Globo, enquanto flanava com a turma do emblemático jornal da época, O Pasquim – o filme traz depoimentos de Sérgio Augusto, Chico Caruso e Millôr Fernandes, que se confessam admiradores do trabalho e da pessoa. Consagrado por novelas como O Rebu, Dancin’Days e Água Viva, José Lewgoy foi convidado por Werner Herzog para filmar Fitzcarraldo, em 1982. A convivência entre os dois, a milhares de quilômetros de um mísero telefone sequer, cimentou uma amizade.

A participação de Herzog no filme de Kanhs é um dos pontos altos do documentário. O brasileiro, com o orçamento apertado, já havia filmado nos Estados Unidos, no Rio, no Sul, encarregou um amigo de registrar o depoimento do alemão. Herzog, que passaria o Natal com a família nos Alpes, respondeu: “Meu filho também é cineasta, posso fazer alguma coisa com ele e mandar?”. O resultado é um depoimento comovente em que o diretor alemão confessa que contou com a colaboração de Lewgoy para domar o irascível ator Klaus Kinski. Em contrapartida, em Londres ocorreu o inverso. Ivan Lessa, outro colaborador do Pasquim, de cuja mãe, Elsie Lessa, Lewgoy era íntimo, recusou-se a repetir sua fala depois de uma falha técnica. Expulsou o diretor e a equipe aos berros “no Bananão (Brasil, segundo Ivan) nada dá certo. Eu sabia!”.

O filme, feito sobre as pesquisas de Marta Nehring e Mauro Alencar, fotografado por Ricardo Stein e montado por Mirella Martinelli, é uma delícia e deixa claro que Lewgoy, em qualquer outro país, seria um Alec Guinness, no mínimo, dada a sua versatilidade. Segundo Zé: “Aprendi a construir o personagem de fora para dentro. Se fizesse o contrário, correria o risco de me repetir”. Divertido e imprevisível, como atestam o dramaturgo Gilberto Braga e o cineasta Guilherme de Almeida Prado, Zé se definia como uma mistura entre o gato Cheshire, de Alice no País das Maravilhas, e Mersault, personagem de O Estrangeiro, de Marcel Camus. Tônia Carrero, ao receber um telefonema de um Lewgoy deprimido, aconselhou-o a ir ao Aeroporto do Galeão, ficar andando, se exibindo, dar um monte de autógrafos e posar para fotos. Lewgoy responderia mais tarde: “Eu fui. E gostei!”.

Eu Eu Eu é ele.


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