Há um cinema diferente por aí. Ele não depende de estúdios, nem de muito dinheiro para acontecer, mas não chega a ser feito de uma maneira espartana. O cinema-processo – como é chamado pelos seus idealizadores – é um movimento de cinema livre, onde tudo pode mudar e se adaptar. O filme é realizado com os recursos que a equipe de produção encontra no local, sejam financeiros ou humanos. Nascido da parceria do cineasta potiguar Buca Dantas com o roteirista Geraldo Cavalcanti, e da necessidade de se criar algo novo, o cinema-processo é uma metodologia de trabalho que pressupõe a economia solidária e o protagonismo local. “É o compromisso de contar histórias com as pessoas dos lugares, com os saberes dessas pessoas. É a gente juntar o nosso saber técnico com o saber lúdico delas. Oferecemos a oportunidade delas tornarem-se atores de si mesmas”, simplifica Buca. Com esse idealismo, o diretor fez em 2006 Viva o cinema brasileiro, o primeiro filme sob o signo do cinema-processo. Para produzi-lo, ele e sua trupe mudaram-se de mala e cuia para o “interior do interior” do Rio Grande do Norte. “Quando chegávamos às comunidades, a primeira reação era de estranheza”, lembra. Falar de cinema num lugar onde a maioria das pessoas sequer pisou numa sala de exibição não foi tarefa fácil. “Tivemos de convencer as pessoas de que aquela proposta era verossímil, mesmo sem ter nada que provasse que ali seria realizado um filme”, diz.
Numa época de seca intensa e de temperatura elevada, a equipe percorreu três comunidades da região do semiárido do Rio Grande do Norte: Serra da Tapuia, Barro Preto e Bom Sucesso, onde foi gravada a maior parte do filme. Com cerca de 800 habitantes, Bom Sucesso é um distrito da cidade de Santa Cruz, onde o lazer se resume em colocar as cadeiras para fora de casa e bater papo com a vizinhança. Quando eles aportaram por lá, a comunidade não via chuva há pelo menos nove meses e tal visita atiçou o imaginário popular. “As pessoas passaram a ver nossa chegada como um sinal de que iria chover em breve”, recorda a atriz Quitéria Kelly, protagonista do filme. “O sertanejo é desconfiado por natureza. Mas, no momento em que se estabelece uma empatia, aí a casa dele passa a ser a sua”, diz Buca.
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O segundo filme, Perdição, ainda inédito, foi realizado na cidade de Janduís, no médio-oeste potiguar, e teve uma maior aproximação com o cinema clássico. Ao contrário do primeiro filme, esse teve roteiro, preparação de atores e planejamento prévio, mas sem deixar de lado as marcas costumeiras da linguagem pensada pela dupla. “Havia uma flexibilidade que permitiu mudanças de última hora e criação ao vivo. Uma cena podia ser modificada na fotografia ou no jogo dos atores, sem interferir na continuidade do roteiro, além de contar com atores e técnicos locais”, explica Mathieu Duvignaud, diretor de fotografia dos filmes-processo. O filme Perdição é uma livre-adaptação de uma peça chamada O fuxiqueiro, escrita por Lindenberg Bezerra, natural do município. Ele conta a história de amor entre uma mulher casada com um homem simples e um mochileiro argentino. Ela engravida do rapaz, que vai embora e só aparece depois de 15 anos. “É um filme sobre mudança, sobre a decisão de permanecer ou ficar, violência, temas que são universais”, define Duvignaud. Durante as gravações, além das surpresas que a linguagem pressupõe, aconteceu o inusitado. “Um ator morreu no meio das filmagens. Não havíamos terminado as cenas com ele e precisamos mudar a história. Eu filmei o enterro real do Dedé Capoeira, que era um ator local, e usei no filme. Foi uma homenagem. Nessa variável, está a riqueza do cinema que criamos, por que nós podemos nos adaptar a qualquer situação”, explica Buca.
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O cinema-processo não é um cinema endêmico, representante apenas da estética sertaneja e das temáticas que ela pressupõe, como o estereótipo da seca. É, sobretudo, um cinema universal. “Surge a ideia do filme, surgem as necessidades e nós vamos buscar os parceiros que possam supri-las. Aí é que está a diferença, pois fazemos isso com as filmagens já em andamento. Não podemos prescindir do dinheiro, mas podemos minimizar ao máximo a sua ingerência na decisão de se realizar um filme, o que não significa fazer de qualquer jeito”, defende o cineasta. Bebendo da fonte do Cinema Novo, do Cinema-Verdade e do Neorrealismo, o cinema-processo pretende romper fronteiras e realizar filmes com temáticas urbanas, desde que se respeitem as tradições locais e as histórias que as pessoas têm para contar. “O nosso objetivo é realizar cinema em qualquer lugar do mundo, é dar voz à massa”, diz o cineasta. O cinema-processo deve mudar o português para a língua francesa por algum tempo. A trupe foi convidada a participar do 12º Cinéluso Nantes, festival de cinema que acontece anualmente em Nantes, na França, com o objetivo de debater e provocar intercâmbios de produções cinematográficas de países de língua portuguesa. Eles desembarcam em junho no país de origem do diretor de fotografia Mathieu Duvignaud e, além de produzir 20 microdocumentários, devem realizar um longa-metragem dentro da filosofia do cinema-processo. “O roteiro já está concluído. A ideia é abordar aspectos de pessoas que nasceram em outros países e, por motivos diversos, foram parar na França. Vamos contar as histórias que eles quiserem contar. Essa é a nossa linguagem”, reforça Buca.
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