Um novo round contra os juros altos

Com mais de 20 anos de experiência como bancária, dona de uma aposentadoria que, com o complemento do fundo de pensão privado, é mais que suficiente para suas despesas, Yoshiko Toma Serehi não imaginava que, aos 64 anos de idade, fosse passar por um sufoco financeiro. Mas confessa ter se deixado levar pela tentação dos gordos limites oferecidos, tanto no cheque especial – ela mantinha contas correntes em três bancos – quanto nos quatro cartões de crédito de que dispunha. Gastou mais do que ganhava e, em questão de poucos meses, só o pagamento dos juros já abocanhava metade da renda da aposentada. A dívida total cresceu como uma bola de neve e chegou a beirar R$ 100 mil. “A conta ficou impagável. O mínimo exigido pelo cartão era o máximo que eu podia pagar”, recorda Yoshiko.

A salvação veio de uma operação bancária ainda pouco conhecida, mas que tem se tornado um instrumento poderoso nas mãos dos correntistas brasileiros: a portabilidade de crédito. Orientada pela gerente da Caixa Econômica Federal, onde também mantinha conta corrente, Yoshiko levou para a instituição todas as dívidas que detinha. Em seguida, usou seu imóvel como garantia para levantar um empréstimo a taxas mais baixas. Com os recursos, trocou todas as taxas e tarifas que corroíam seus ganhos por uma única parcela – inferior a 30% da sua renda total, como pregam as cartilhas de finanças pessoais.

A negociação feita com Yoshiko faz parte de uma ofensiva iniciada no primeiro semestre pela Caixa e pelo Banco do Brasil, os dois maiores bancos públicos do País, a pedido do governo, com o objetivo explícito de forçar, por meio da competição, a queda dos custos do sistema financeiro para os clientes. “Ainda ganhei um ano de isenção na tarifa de manutenção da conta”, acrescenta a aposentada, satisfeita. O bônus concedido à cliente mostra que a briga entre os bancos pode extrapolar a arena dos juros e resultar em melhor atendimento, além de maior oferta em serviços e promoções.

“Este é o ano inicial de um processo movido pelo amadurecimento do consumidor brasileiro. Quando o correntista começa a comparar taxas, percebe os custos absurdos existentes na sua conta, se sente incomodado e tende a mudar para outro banco”, diz o professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto (FEA-RP) da USP, Alberto Borges Matias. “Esse processo foi insuflado pelo governo e agora não tem mais retorno.”

Com o aval da presidenta Dilma Rousseff, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, tem sido o principal porta-voz das críticas ao sistema financeiro nacional – já culpou o custo do crédito pelo baixo nível de crescimento da economia, classificou como “escorchantes” as cobranças do cartão de crédito e, mais recentemente, garantiu ainda haver espaço para cortar “pela metade” os juros bancários.

O apoio à cruzada de Dilma e Mantega contra os juros vem de setores e interlocutores dos mais inesperados. Desde centrais sindicais, como a União Geral dos Trabalhadores (UGT), que lançou uma campanha pela redução dos juros dos cartões, até o banqueiro e ex-presidente do Banco Central Fernão Bracher, vice-presidente do Conselho de Administração do Itaú BBA, que declarou, em entrevista recente ao jornal O Estado de S. Paulo, que faltava “alguém para dar esse empurrão” nas instituições financeiras. “A presidenta Dilma deu o empurrão para a queda dos juros pagos pelo Tesouro e pela queda dos juros cobrados pelo sistema bancário. Ela deu esse empurrão com firmeza, mas dentro dos limites do entendimento.”

Matias afirma que os bancos brasileiros iniciaram uma mudança radical no modelo de negócios adotado até hoje, com base em margens de ganho elevadas e baixa escala, se comparado com o que ocorre em mercados mais desenvolvidos. “A rentabilidade dos bancos brasileiros está exatamente na média internacional. Só não é superior porque o volume de operações é relativamente pequeno”, explica. “É positivo que o crédito tenha crescido e hoje represente 51% do PIB, mas em muitas economias avançadas essa fatia é de 151%. Como os custos de operar bancos são similares em todo o mundo, os nossos recorriam a spreads (diferença entre o juro pago pelo banco ao captar o dinheiro e o juro cobrado para emprestá-lo ao cliente) mais elevados para manterem-se lucrativos.”

Perante a queda da Selic – a taxa básica de juros da economia –, a mudança de rota passou a ser inexorável, segundo o professor. Um sinal claro é que os maiores bancos privados têm anunciado cortes de juros em resposta à movimentação dos rivais públicos. Mesmo assim, as instituições estatais elevaram sua fatia no mercado de crédito de 43,5%, no fim de 2011, para 46,2% em setembro, conforme divulgou o Banco Central no fim de outubro. No mesmo mês, a taxa média de juros das operações de crédito caiu ao menor índice da história, de 29,9% ao ano.

Outro sintoma de que a briga é para valer está no clima nada ameno entre Banco do Brasil e Caixa, que disputam palmo a palmo a dianteira em cada rodada de cortes. Embora ambas as instituições tenham avançado, a Caixa tem apresentado os maiores índices de expansão das operações. Na concessão de crédito para empresas, por exemplo, o banco cresceu 68% nos últimos 12 meses.

“Vamos fechar 2012 com 550 agências inauguradas”, conta o vice-presidente de Atendimento, Distribuição e Negócios da Caixa, José Henrique Marques da Cruz. “Abrimos 2,36 milhões de contas-correntes neste ano, enquanto no mesmo período de 2011 foram 1,45 milhão. Nosso plano é expandir a base de correntistas e ganhar escala. Estar ao lado do cliente vai fazer diferença quando as taxas dos bancos convergirem para níveis mais próximos, como é esperado.”

Segundo Cruz, a Caixa tem investido pesado nas áreas de gestão e tecnologia, para evitar a subida dos índices de inadimplência. Os calotes, até agora, se mantêm em patamares inferiores à média de mercado – mesmo quando é deixado de fora da análise o crédito imobiliário, em que a pontualidade dos devedores é tradicionalmente melhor.

O vice-presidente de Negócios de Varejo do Banco do Brasil, Alexandre Abreu, diz que não há “pulo do gato” na estratégia: “Se o lucro por operação cai, precisamos aumentar o volume. Além disso, estudamos meios de aumentar a eficiência, que no Brasil ainda tem como melhorar se os bancos decidirem compartilhar mais operações”.

Desde março deste ano, o Banco do Brasil mobilizou um universo de quatro milhões de clientes, que abriram novas contas ou deixaram de ser inativos e voltaram a utilizar serviços do banco. “Cerca de 60% das liberações de crédito no ano foram feitas para clientes que não tinham nenhuma dívida no banco”, diz Abreu.

O avanço dos concorrentes não passou despercebido pelos bancos privados, mas a queda nas margens das operações é um incômodo ainda maior. Nas demonstrações dos resultados do terceiro trimestre, tanto Bradesco quanto Itaú reconheceram que a queda dos juros pôs fim à era dos recordes de rentabilidade. O diretor executivo do Bradesco, Luiz Carlos Angelotti, afirmou, em teleconferência com analistas, que é “mais razoável no futuro que os retornos fiquem em torno de 18% a 20%” – bem distantes dos 40% que chegaram a ser registrados pelo setor no fim da década de 1990.

A queda de margens contrasta com outros resultados do Bradesco, como a abertura de mais de um milhão de novas contas e a emissão de três milhões de cartões de crédito nos últimos 12 meses. O volume de transações realizadas pelo banco cresceu 30% no mesmo período, segundo o executivo. Graças ao maior volume de operações, o Bradesco manteve o lucro em alta no terceiro trimestre (R$ 2,8 bilhões). Mas o avanço, de 1%, nem chega perto das taxas de dois dígitos alcançadas no ano passado.

O Itaú, maior banco privado do País, viu seu lucro encolher 13,4% na comparação com o terceiro trimestre de 2011. O resultado seria efeito de uma mudança na composição da carteira de crédito. Com o objetivo de reduzir a inadimplência, o banco reduziu a oferta em linhas mais arriscadas, como o financiamento de veículos. “Vamos voltar a crescer no crédito em 2013, ainda que em um ritmo menor”, afirmou o vice-presidente executivo da instituição, Alfredo Egydio Setubal, na divulgação dos números.

Setubal prevê mais quedas nos spreads, mas espera que o impacto seja amenizado pela ampliação do uso das linhas disponíveis. “Há uma mudança de comportamento dos tomadores de crédito e esse movimento, apesar de trazer um impacto de curto prazo, vai ser compensado com o tempo pelos volumes das operações, porque vão trazer para o sistema financeiro clientes com menor risco de inadimplência”, avaliou o executivo. “Nossos melhores clientes não pegavam empréstimos, porque era caro e não havia nenhum incentivo.”

Se, por um lado, as taxas mais baixas estimulam o avanço do crédito, também podem diminuir a fidelidade dos clientes. Um relatório divulgado pelo BC em outubro mostra que o uso da portabilidade bancária tem avançado: entre agosto e setembro, quase 92 mil dívidas foram transferidas entre instituições, num montante superior a R$ 1 bilhão. Segundo o BC, os bancos públicos foram o destino da maioria dos crédito, por terem reduzido mais fortemente os juros. “Esse processo é salutar, na medida em que aumenta a concorrência entre as instituições, com potencial impacto na redução de taxas e, consequentemente, na capacidade de pagamento das empresas e das famílias”, conclui o documento.


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