Um olho na corte e outro na escravidão

Lilia Moritz Schwarcz é uma eterna insatisfeita. E isso é um elogio. Tão logo termina uma pesquisa e a publica em livro, esta paulistana de 52 anos, doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo, livre-docente e professora titular da própria USP, resolve esmiuçar ainda mais alguma fração do tema recém-explorado. A atitude tornou-se recorrente. Da insatisfação, resulta uma nova pesquisa e, por extensão, um novo livro. “Sempre termino com mais dúvidas do que certezas”, confessa.

Vem sendo assim desde sua primeira obra, Retrato em Branco e Negro: Jornais, Escravos e Cidadãos em São Paulo no Fim do Século XIX, publicada em 1987. Seguiu-se outro estudo derivado da chamada questão racial, O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e Pensamento Racial no Brasil: 1870-1930. Mal o livro, de 1993, chegara às livrarias e Lilia já se debruçava sobre o estudo do governo de Dom Pedro II. Afinal, julgou que faltara, na pesquisa anterior, um olhar mais demorado sobre a monarquia.
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De insatisfação em insatisfação, Lilia vem publicando uma das mais profícuas obras da historiografia brasileira recente, abordando temas que vão da transferência da biblioteca da corte portuguesa para o Rio de Janeiro à Missão Artística Francesa, encomendada por Dom João VI – que resultou em O Sol do Brasil: Nicolas-Antoine Taunay e as Desventuras dos Artistas Franceses na Corte de D. João, vencedor do Prêmio Jabuti para biografias em 2009.

Embora a maior parte de suas pesquisas tenha por objeto o século XIX, Lilia comanda cursos, inclusive no exterior, que perpassam toda a história do País – no momento, aliás, ela está na Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, ministrando um deles. Seu novo livro contemplará a vida do escritor, negro e carioca, Afonso Henriques de Lima Barreto, que era criança na Abolição da Escravatura e lançou seus principais romances nas primeiras décadas do século XX.

Casada com o editor Luiz Schwarcz, sócio-proprietário da Companhia das Letras, mãe de dois filhos e avó de dois netos, Lilia falou à Brasileiros na sua residência, em uma serena rua paralela à movimentadíssima Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo. Descontraída, comparou: “Acho que todo pesquisador tem um lado de fofoqueiro e outro de Sherlock Holmes”.

Brasileiros – O que primeiro a motiva a fazer uma pesquisa, já que são pesquisas de fôlego?
Lilia Moritz Schwarcz –
O que motiva uma boa pesquisa é uma grande curiosidade (risos). O segredo é você procurar inquietações genuínas. Eu tenho quase que uma tara por arquivos. Se você me deixar num arquivo, o dia inteiro, vou adorar. Penso que todo pesquisador tem um lado de fofoqueiro e outro de Sherlock Holmes (risos). Então, acho que fico cultivando esses meus dois lados. Só para você ter uma ideia: eu estava na Torre do Tombo, em Portugal, fazendo a pesquisa para o livro A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis quando caíram as Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. Por ter ficado lá dentro, com o telefone desligado, não soube de nada. Quando saí, havia não sei quantas ligações não atendidas no meu celular. Só então percebi que o mundo tinha caído. Quando você está lá num arquivo, a vida passa e você fica fechado naquele mundinho.

Brasileiros – No livro Retrato em Branco e Negro, originalmente sua dissertação de mestrado, há uma impressionante pesquisa de como os escravos eram tratados em anúncios nos jornais. Como você chegou a ela?
L.M.S. –
Durante a graduação, eu havia feito uma pesquisa sobre os escravos em Vila Bela, atual Ilhabela (SP), e fiquei muito interessada em como se dava o relacionamento entre senhores e escravos, sobretudo em cidades urbanas. Existe um livro clássico, excelente por sinal, do Gilberto Freyre sobre anúncios de fugas de escravos. Restringi minhas pesquisas aos jornais de São Paulo e foi aterrador constatar como o país da alentada democracia racial tinha coragem de expor os escravos em situações absolutamente sem dó nem piedade. Eram notícias abertas e escancaradamente desumanas. Os sinais de castigo no corpo dos escravos eram publicados como elementos para localizá-los.

Brasileiros – A questão racial também é assunto de sua tese de doutorado, O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e Pensamento Racial no Brasil: 1870-1930.
L.M.S. –
Bem, no fundo eu nunca terminei uma pesquisa. Sempre termino com mais dúvidas do que com certezas. Após o mestrado, fiquei com uma dúvida muito grande: como é que o país da democracia racial dos anos 1930 poderia existir, uma vez que no decorrer dos séculos XVIII e XIX e até meados dos anos 1920 havia quase um apartheid?. Logo me interessou muito um tema estudado pelo Roberto Schwarz, O Elogio da Cópia. Ou seja, a ideia de que não interessava tanto pensar que nós copiávamos teorias raciais, mas sim como elas foram adaptadas no Brasil. Nessa época, entrei num grupo de trabalho na USP muito bacana, coordenado por Sergio Miceli, que resultou no livro História das Ciências Sociais e veio desse grupo a sugestão de que eu estudasse as instituições. Como o pensamento social estava indiscriminado, não poderia sair estudando indivíduos. Já pesquisando as instituições isso seria possível. Por isso, fui estudar os museus, os institutos históricos, as faculdades de Direito e de Medicina. O resultado foi estarrecedor. As teorias raciais eram uma espécie de lugar comum dos cientistas brasileiros no século XIX.

Brasileiros – Elas faziam sucesso na Europa?
L.M.S. –
Não, já estavam em desuso, nessa época. Voltariam antes da Segunda Guerra Mundial. Isso é que é tão interessante: esse descompasso. Se você pensar, o Brasil vai consumir largamente as teorias raciais a partir de 1870, 1880, 1890. No momento em que a República vinha com a bandeira da igualdade do cidadão e da democracia, as teorias raciais solapavam essa ideia de igualdade. Não é à toa que Nina Rodrigues (professor, médico legista, psiquiatra e antropólogo) vai aos jornais, dois dias após a Abolição, e declara: “Os homens não são iguais”, e acrescenta: “Os homens de Direito supõem uma igualdade jurídica, porque senão não existiriam leis. Mas nós, homens de Medicina, sabemos: os homens são diferentes”. Ao mesmo tempo em que a República cria um corpo de leis que tornariam todos iguais, os homens de ciências, como se chamavam os que exerciam a medicina, vão propor uma espécie de “duas cidadanias”. Nina Rodrigues cria um projeto para a existência de dois códigos penais: um para brancos e outro para negros.

Brasileiros – Essa discussão repercutiu de alguma forma na não inclusão do negro na sociedade brasileira?
L.M.S. –
Totalmente. Agora estou estudando o escritor Lima Barreto, negro, e vejo que, de maneira geral, a intelectua-lidade que apostou na República rapidamente se decepcionou. Viu que a “República não era”. Tem um conto de Lima Barreto, que ele fala sobre isso – “A República que não foi”. Encontrei um conto inédito do Lima Barreto, que, na verdade, é a última parte do romance O Triste Fim de Policarpo Quaresma. Ele escrevia nos versos das folhas do Ministério da Guerra, onde era amanuense, no tempo vago. No verso desse do conto, ele relata… É emocionante, o que diz. Ela relata que quando era menino de uns oito anos, logo após a libertação da escravatura, a professora falava para os alunos sobre a Abolição. Ele não entendia bem o que era aquilo. Mas sabia que era algo em relação a ser livre. Depois, escreve atrás desse conto: “Agora eu sei que isso não era verdade”.

Brasileiros – As teorias racistas, pseudocientíficas, condicionaram o negro a ser aceito como inferior, já que “cientificamente” ele era inferior?
L.M.S. –
Ou, então, foi aceito numa condição inferior. De alguma maneira, o que acontece: durante a escravidão havia um projeto absolutamente desigual dado por uma “natureza jurídica” do escravo, do lugar do escravo. Com as teorias raciais, você tem outro impedimento mais forte, que é a ideia de que a biologia explica a diferença. Então, como você vai competir com a ciência, com a biologia? É uma situação de discriminação e uma exclusão social muito forte.

Brasileiros – No livro O Jogo da Dissimulação – Abolição e Cidadania Negra no Brasil, a pesquisadora Wlamyra Albuquerque cita que, após a Abolição, chegou-se a projetar uma espécie de Ku Klux Klan no Brasil…
L.M.S. –
Existiu esse tipo de projeto. Houve projetos para enviar os ex-escravos de volta para África. Em O Espetáculo das Raças, estudei outros projetos, como o de alguns médicos que propunham a esterilização de mestiços. Esses médicos elogiavam o que era feito na África do Sul e nos Estados Unidos.

Brasileiros – Por que essas teorias raciais, pseudocientíficas, voltam de tempos em tempos?
L.M.S. –
Elas passaram para o senso comum. No século XIX, havia teóricos como Nina Rodrigues, João Batista Lacerda, Sílvio Romero, que falavam abertamente sobre a questão racial. Mas a questão racial deixou de ser uma teoria científica. Não é que eu defenda essa teoria, muito ao contrário. Mas, pelo menos, se você tem uma teoria científica, pode criticá-la. E essa teoria científica passou para o senso comum. Pense em expressões do tipo “casar bem”, que quer dizer casar com uma pessoa mais clara. Ou coisas do tipo: “Não há vida inteligente abaixo do Equador” ou “Os nordestinos têm cabeça chata”. Sabemos que a ideologia do senso comum é tão poderosa quanto as teorias científicas.

Brasileiros – Estudando o governo de Dom Pedro II, você ressalta que foi um dos períodos em que o Brasil viveu estabilidade econômica. Evidentemente, não faremos uma apologia à monarquia, mas a Proclamação da República prometia a igualdade e o desenvolvimento e não foi o que se viu.
L.M.S. –
O Segundo Reinado foi um grande período de estabilidade, sobretudo o período de 1850 a 1870, quando houve estabilidade econômica, cultural, grandes avanços científicos. Dom Pedro II era uma figura popular. Isso eu tento mostrar no livro As Barbas do Imperador – D. Pedro II, um Monarca nos Trópicos. A República representava a modernidade, os novos tempos da democracia, da igualdade, etc. Agora, o que aconteceu, sobretudo na República Velha, de 1889 a 1930, não foi nada disso. Teve muito mais censura. Passamos a viver em estado de sítio. Que dizer, houve uma decepção geral em relação ao que de fato foi a República Velha.

Brasileiros – Nossa história republicana tem longos perío-dos de regimes autoritários. Ainda estamos aprendendo a conviver com a democracia?
L.M.S. –
Essa é uma pergunta difícil, porque foge da minha alçada. Mas creio que o brasileiro ainda é pouco afeito à discussão política, ao contrário dos vizinhos da América Latina. Quando escrevi As Barbas do Imperador, procurei imagens e fotografias de Dom Pedro. Estava na Bahia fazendo pesquisa e uma pessoa me falou: “Olha, atrás da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia tem um quadro de Dom Pedro II, sensacional”. O quadro era uma cópia fajuta, mas a situação em que ele se encontrava era de fato sensacional. Expunha a mistura de esferas públicas, privadas e religiosas no Brasil. Em uma das paredes, você tinha o tal quadro do Dom Pedro II. Logo abaixo, um retrato de Getúlio Vargas e, mais abaixo ainda, um retrato do Antônio Carlos Magalhães. No imaginário do povo, Dom Pedro II era um grande pai. Acho que, no Brasil, a gente ainda tem essa mistura entre a esfera pública e a esfera privada. E nós sempre entendemos o estadista como um pai, que às vezes é severo. No magistral livro Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda trata exatamente disso no capítulo dedicado ao “Homem Cordial”. Esse capítulo, que foi tão maltratado, a começar por Gilberto Freyre, na verdade não faz um elogio à cordialidade. Sérgio Buarque de Holanda está dizendo que há um problema. O brasileiro, a partir da instância do coração, da intimidade, não consegue separar instâncias privadas das instâncias públicas. Temos instituições frouxas porque o brasileiro, durante muito tempo, não acreditava em instituições sólidas. Mas isso está mudando.

Brasileiros – Você escreveu sobre Nina Rodrigues, Dom Pedro II, Nicolas-Antoine Taunay e, agora, sobre Lima Barreto. Não aprecia estudar personagens anônimos, muito em voga na historiografia recente brasileira?
L.M.S. –
(Risos). Nicolas-Antoine Taunay (N.R. – pai de Adrien Taunay, participante da Expedição Langsdorff e personagem da matéria da página 40 desta edição), que foi meu personagem no livro O Sol do Brasil – Nicolas-Antoine Taunay e as Desventuras dos Artistas Franceses na Corte de d. João, de fato não é um anônimo, mas é uma figura pouco conhecida por nós. Quando comecei essa pesquisa, queria estudar a Missão Artística Francesa, acolhida por Dom João. Como lhe disse, sempre termino uma pesquisa, com uma pergunta. Lembro-me de que, quando acabei O Espetáculo das Raças, falei o seguinte: “Bom, ninguém me perguntou, mas vou dizer. Não tratei de uma instituição no livro. É um furo que ele teve”. O pessoal morreu de rir (risos). Achei que tinha estudado todas as instituições, mas deixei de fora a monarquia. Isso resultou na pesquisa de As Barbas do Imperador, que se prolongou por oito anos. Quando estava terminando o livro, fiquei superinteressada nesse projeto iconográfico que Dom Pedro II criou. Até brinco, que ele fazia disso um marketing pessoal. E foi por conta desse questionamento em relação à iconografia do tempo do reinado brasileiro que comecei a bolar a pesquisa sobre a Missão Francesa. Conforme ia pesquisando, foi aparecendo a figura do Taunay. Foi a minha contribuição aos estudos sobre a Missão Francesa. Diferentemente do Debret, Taunay era pouco conhecido no Brasil.

Brasileiros – A pesquisa para o livro O Espetáculo das Raças, levou-a a outra, sobre Dom Pedro II, que, por sua vez, resultou no estudo sobre Taunay. Esse interesse pelo pintor, por fim, vai gerar a pesquisa sobre Lima Barreto. Como se deu essa última passagem?
L.M.S. –
O Taunay me levou, por vias muito tortas, a voltar uma questão que me é muito cara, a chamada questão racial. Comecei a observar que em todas as telas brasileiras do pintor Taunay aparecia a escravidão, mas sempre ao fundo. Ele era míope e, por isso, dava especial atenção ao primeiro plano. E no primeiro plano não estavam os escravos. Comecei a olhar o Taunay com lentes de aumento. E assim você enxerga os escravos trabalhando, carregando pedras, tijolos. O próprio Taunay não sabia lidar pessoalmente com o assunto. Ele teve escravos e justificava esse fato da seguinte forma: “Fui obrigado a ter escravos”. Ele, enfim, como homem da ilustração que era, não tinha o que fazer com esse tema. E por uma via muito torta, voltei à questão racial, que é a grande contradição para pensar nosso País. Há muito tempo dou um curso na Universidade de São Paulo (USP) chamado “História do Pensamento Brasileiro”, partindo do tema da questão racial. Vou de 1870 a 1930. E um autor que sempre me foi muito caro era Lima Barreto. Eu e os alunos do curso lemos desde Policarpo Quaresma até os contos e os diários. Então, pensei: “Por que não?”. Depois do livro O Espetáculo das Raças, pensei novamente: “Quem sabe!”. Mas achei que era uma pesquisa difícil, que mostrasse não só a perversidade do racismo brasileiro, mas as contradições, as ambivalências. E é isso que me animou a estudar Lima Barreto.

Brasileiros – Até abril você lecionará como professora visitante na Universidade de Princeton, em Nova Jersey, nos Estados Unidos. Fale-nos sobre isso.
L.M.S. –
Em 2008, estive na Universidade de Colúmbia e o Brasil já estava em moda por lá. Conheci uma professora da Argentina, que dava um curso sobre a história do seu país. Eu brincava com ela dizendo que o Brasil tinha mais moral, pois o curso sobre a História do Brasil sempre estava lotado, enquanto o dela nem tanto (risos). O curso que vou dar na Universidade de Princeton, no Departamento de História, é uma espécie de introdução ao Brasil. Escolhi a questão racial como uma espécie de fio condutor. Mas trato da trajetória completa do País, dos primeiros viajantes estrangeiros que visitaram o Brasil até o governo do presidente Lula.

Brasileiros – Você acredita que o Brasil esteja melhorando? Em quais aspectos precisamos avançar mais?
L.M.S. –
Acho que o Brasil é um país com muita pobreza, muitos problemas sociais, muita discriminação. Ainda tem muito a construir. O País vem vivendo um bom momento na diplomacia externa. Estamos hábeis nesse jogo internacional. O País se saiu bem no momento de crise internacional. E os planos sociais começaram a fazer efeito, a mostrar resultados. Mas esse é um país que carrega índices de pobreza inacreditáveis. E na área em que me considero especialista, que é da questão racial, etnicidade como preferi chamar, o Brasil ainda carrega um tipo de discriminação muito perversa. Não acho que há bons ou maus racismos. Todos são sempre perversos. Mas acredito que praticamos um modelo de discriminação, que Florestan Fernandes chamou há muito tempo, ainda nos anos 1970, de “preconceito de ter preconceito”. Ou seja, como não temos nenhuma discriminação oficial, não teríamos preconceito nenhum. Nessa área há muito o que fazer, muito o que discutir, muito o que pensar. Estamos discutindo a política de cotas, que, apesar de ser extremamente polêmica, ajudou a mostrar para o Brasil que aqui existe um problema muito grande a ser resolvido.


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