Um país chamado ex-

A capa que pôs o dedo na ferida

O ex- não era apenas um jornal, era um grupo. Não era apenas um grupo, era um estilo de vida. Um jeito de ser e de pensar. Quase um país, com leis próprias. Era proibido não ser livre, era mais ou menos isso. É o que se vê na coleção completa da publicação lançada agora, passados 38 anos, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo e pelo Instituto Vladimir Herzog, um belo trabalho.

Eraex- porque os fundadores eram ex-Realidade, ex-Bondinho, ex-Quatro Rodas, ex-Grilo… Mas eram o fino do jornalismo. A Realidade pagava os maiores salários do País. E produzia as melhores reportagens do País. Caminhando e datilografando.

Nem só uma, nem só duas vezes Geraldo Vandré entrou sem bater na redação, um velho casarão da rua Santo Antônio. Sentava-se na primeira máquina de escrever livre que encontrava. Batucava alguns comentários, principalmente sobre Economia e entregava as laudas ao Myltainho. Ia embora, também sem dizer nada.

A alma do ex- era Hamilton Almeida Filho, o Haf. Um autodidata fenomenal. Prêmio Esso aos 16 anos. Com ele, Myltainho, uma dupla do barulho. Os dois escreviam – e Myltainho escreve – maravilhosamente. A bíblia de todos era o Gay Talese. Mais Narciso Kalili, Paulo Patarra e Sérgio de Souza. Não era fácil entender o que a gente queria – nem entre a gente. Éramos contra a ditadura, é claro, e a favor de todas as liberdades. Vivia-se o jornal 24 horas por dia. Quase todos – excluindo Narciso, Paulo, Sérgio – moravam juntos. Uns oito na mesma casa, com suas namoradas – forçosamente também do jornal.

Grana curta
Um dia, o Paulo Patarra elogiou um título que eu fiz. O cara da Realidade. Uns elogiavam o trabalho dos outros. Ninguém queria passar rasteira em ninguém.

A grana era curta, mas curta para todos. Não tinha telefone na redação. Era muito caro comprar um. Repórteres recebiam fichas para usar o orelhão da esquina. Os caras mais graduados – Haf, Myltainho, etc. – que na Realidade ganhavam os maiores salários do país, no ex- recebiam algo como 1.700 cruzeiros por mês e eu, recém-chegado, ex-foca do JT e alguns freelas para o Última Hora, já entrei com 1.100.

A gente não admitia ter patrão, não admitia atitudes patronais e nem escrever algo com que não concordasse. A gente vivia do jeito que escrevia e vice-versa. A gente não se obrigava a escrever o que não pensasse.

Ardidas
Quando a morte de Vladmir Herzog foi anunciada oficialmente, a gente já sabia que foi tortura. Narciso, que era quem mais tinha juízo ali, uma espécie de irmão mais velho decidiu que seria nossa matéria de capa. E deu o título antológico: “Liberdade Liberdade Abre as Asas sobre nós”. Só o ex- publicou que ele não se suicidou, mas foi suicidado. Precisava ter muito peito. Todos os outros deram a versão oficial.

Esgotaram-se depressa 30 mil exemplares e foram impressos mais 20 mil. Sucesso total. Vamos fazer uma edição extra de fim de ano, pensamos, com o melhor do ex-. E o Extra foi pra gráfica. Alguns dias depois, dois caras da Polícia Federal invadiram a redação e comunicaram a Haf e ao Myltainho que o Extra não poderia circular, nem o ex-, se eles não quisessem correr riscos. Eles queriam. Se não podiam fazer o Extra e o ex-, fariam o Mais Um. E fizeram. Quer dizer, fizemos. De novo apreendidos. Fim de linha.

Todos tiveram de se virar. Lembro-me que Narciso, assolado pela falta de grana, inventou uma marca de camiseta. Ardidas. O logotipo eram duas pimentas cruzadas. Vendeu muito na rua Oriente.


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