Um país em chamas

Este texto faz parte do especial 2017 x 24 – visões, previsões, medos e esperanças da edição número 113 da Revista Brasileiros, onde articulistas e colaboradores foram convidados a pensarem sobre o que e o quanto podemos esperar – se é que podemos – para nosso País no próximo ano.  

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A desmontagem
em uma crise política radical, uma disputa pelo poder alucinada e alucinatória – típica da nossa longa tradição do radical transe social político – de nosso pacto civilizatório mínimo ocorrida nos últimos dois anos, colocou o Brasil em um espaço político simbólico de grande indefinição, ao mesmo tempo que evidentemente malévolo. Todos os dias convivemos com o efeito produtor de impotências, dor e confusão, na vida de todos que nos cercam, um efeito massivo de afetos tristes e de choque que tanto emana da má realização política de um impeachment artificial e falsificado, baseado em genéricas e odiosas visões do inferno de um anticomunismo desqualificado e irrealista, quanto da efetiva e real crise econômica aprofundada ao máximo por este próprio movimento irresponsável do novo poder brasileiro. O mal vem do real, vem da alucinação, vem do ressentimento, vem da desmontagem do processo histórico ordenado, e vem do descompromisso e desinteligência mais geral do novo poder. Estamos todos bastante doentes de Brasil, e precisamos de cuidados coletivos e humanos que nos permitam sonhar e trabalhar novamente pelo melhor.

Preparam-se os ataques frontais à Constituição, a liberalização mais geral do mercado de trabalho, o fim de garantias trabalhistas e a redução maciça de qualquer ordem de cuidado e investimento social, do trabalho, da busca de um Estado de bem-estar entre nós. Fica claro o caráter sádico e antissocial do movimento geral da direita que tomou de assalto o poder contra uma eleição legítima no Brasil, o modo mais simples e direto de valorização de uma massa de capital paralisada e improdutiva: cortes profundos no mundo da renda do trabalho, tanto direta quanto indiretamente. Nossa direita, concentrada no comitê financeiro que determina as ações do patético governo arcaico de Michel Temer, é tradicional e simplista. Diante do seu impasse em reproduzir os seus valores na ordem de crise mundial do capital, ela liquida os pactos sociais, dissolve os controles e direitos públicos que transmitem renda social ao todo da nação, e aos pobres, e libera a renda nacional para a sua apropriação direta. Mas, certamente, tal processo não se dará sem confrontações, o mínimo que uma mínima democracia pode realizar para poder carregar este nome, no espaço público que reage como pode ao ataque geral à vida, e na luta intestina de uma elite antissocial e desorgânica pela posse do próprio butim político econômico que conseguiu extorquir.

O que nos resta, e não se trata de um resto, mas de algo que importa em si mesmo, é aumentar o valor do vínculo humano, da política crítica do dia a dia, da aproximação estético-afetiva dos grupos de resistência e diferença, da política do desejo entre aqueles que não desejam a diferenciação social radical a favor do poder que a nossa direita canhestra busca produzir. Na crise geral da renda na vida social, crise da reprodução do próprio sistema de valores e imagens da mercadoria entre nós, temos um segundo de paz e liberdade, em meio à guerra social forte projetada pelo novo poder, para nos olharmos, encontrarmos, conhecermos, conversarmos e amarmos, por fora da máquina infernal do consumo, a linha de transmissão do desejo de tudo aquilo que nos torna indignos de nós mesmos.

* Tales Ab’Sáber é psicanalista e professor de Filosofia da Psicanálise da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)


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