Um país que já nasceu em ruínas

O país mais pobre das Américas, onde se vive – se é que cabe o verbo – com 2 reais por dia. Uma terra condenada à sanha das intervenções e à sina de ditadores ferozes. Um formigueiro de 10 milhões de moradores, incapaz de uma produção econômica estável e condenado a exportar, sobretudo, imigrantes aliviados. Uma nação instalada na fração sujeita à falha geológica na segunda maior ilha do Caribe – perde apenas para Cuba. Por fim, a consequência dessa infelicidade geográfica, agravada pelo devastamento das florestas: às 16h53, de uma terça-feira, a tragédia com mais vítimas que Hiroshima.

O Haiti quase sempre colheu o que o Caribe tem de pior, sem recorrer a nenhuma das benesses – condenáveis ou não. Tal como os vizinhos, esteve sob o jugo dos humores colonialistas e dos furacões (muitas vezes batizados com melífluos nomes femininos; e sempre uma ameaça, entre julho e outubro). Da mesma maneira, viveu à mercê da monocultura da cana-de-açúcar – que, entre 1530 e 1870, arrancou da África mais de 15 milhões de escravos para pegar pesado no latifúndio nas ilhas do Mar das Antilhas. Assim como outras terras caribenhas, também tornou-se objeto de acordos internacionais.
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Toda a ilha Hispaniola, onde está fincado, pertencia à Espanha – e, não custa lembrar, foi onde Colombo deu os primeiros passos no Novo Mundo; e para onde levou as primeiras mudas de cana-de-açúcar. No final do século XVII, os espanhóis decidiram limitar seu poder à porção que é hoje a República Dominicana, abrindo mão do lado oriental do território em favor dos franceses. Mais tarde, retomaram o presente e, por fim, se viram obrigados a cedê-lo de vez. Na última década do século XVIII, a colônia francesa chegaria a produzir 75% do açúcar consumido no mundo.

Ainda hoje joguete dos interesses alheios, o Caribe soma só 13 países. O restante das ilhas, bem, o restante são possessões britânicas, francesas, holandesas, americanas. Nem só os países ricos tiraram sua casquinha. Também há ilhotas venezuelanas, colombianas, hondurenhas, panamenhas e até belizenhas. Já os espanhóis perderam a vez em 1889, com a independência de sua derradeira colônia no Caribe, Cuba. Logo eles, os patrocinadores do desembarque do navegador genovês.

Uma dolorosa ironia: cercado por ilhas inaptas a movimentos de libertação, o Haiti foi a primeira colônia nas Américas a abolir a escravidão (em 1749), o segundo a declarar a independência (28 anos depois dos Estados Unidos) e, ainda, a primeira república negra do Novo Mundo. A conquista insuflou movimentos libertários em outros territórios e criou o mito revolucionário do “haitianismo”. Mas custou ao novo país rios de sangue no embate com os soldados enviados por Napoleão, além de devastadores incêndios intencionais nas plantações, sua grande riqueza.

Ao declarar a independência, a República do Haiti, com os recursos arrasados, já nasceu em ruínas. Para tornar-lhe a vida ainda mais amarga, sofreu amplo boicote internacional. Não bastasse, a França, nada iluminista, só concedeu o reconhecimento político em 1824, sob a condição de uma “indenização” de 150 mil francos, uma fortuna, para a época. Devido à sucessão de improbidades, ao enfrentamento entre mulatos (a nova elite) e negros, à debilidade das instituições, à inexistência de planos de Estado e, ainda, a uma roubalheira descarada, nunca mais o Haiti recuperaria as finanças. E assim chegou aos dias correntes.

Ao contrário dos vizinhos, o Haiti não pôde se valer do que teria sido, nas décadas mais recentes, uma tentativa de redenção econômica: a montagem de um paraíso fiscal – considerações éticas à parte – ou a exploração organizada do turismo. No primeiro caso, a extrema camaradagem de bancos e empresas offshore permite o livre trânsito de dólares em Turks e Caicos, Santa Lúcia e em Antígua e Barbuda, para citar três exemplos caribenhos. Nas ilhas Cayman, a vista grossa chegou ao paroxismo: esse território britânico é o quinto centro financeiro do planeta, embora abrigue só 54 mil viventes. A Favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, tem quase o dobro de moradores.

Já o turismo – a sorte grande do Mar das Antilhas – contemplou ilhas e mais ilhas, hoje com a vida financeira em ordem ou remediada, e vem sendo a principal tentativa de salvação da lavoura cubana. Até mesmo Bonaire, tão árida quanto o sertão paraibano, entrou na lista dos beneficiados. Assim como toda a região, a orla da ilhota, um território holandês, é cenário para comerciais: areias imaculadas e um mar sereno, da cor dos olhos da atriz Liv Tyler, como soem descrever as revistas de viagem. Essas águas límpidas também banham o Haiti. São elas o maior chamariz caribenho e resultam do fundo de calcário, rocha dotada da propriedade de filtrar e aumentar a decantação marinha.

O turismo começou a deslanchar no Caribe nos anos 1960, com a queda vertiginosa do preço das passagens aéreas, em virtude do advento dos jatos. Uma das consequências foi a súbita perda de passageiros dos transatlânticos, então, sobretudo, um meio de transporte. Golpeados no bolso, os armadores reforçaram o conceito dos navios de cruzeiros. O Caribe despontou como o lugar ideal. É quente, belo, tem mar apropriado para a navegação e ilhas próximas umas das outras. E o principal: fica a um pulinho dos Estados Unidos. Os cruzeiros divulgaram as ilhas caribenhas como jamais havia ocorrido – e hoje elas são visitadas, em especial, por turistas que desembarcam de aviões.

O Haiti, a bem da verdade, está no roteiro de alguns navios de passageiros. Contudo, são raros e fundeiam somente ao largo de Labadee, uma orla com poucas lojas duty free. Eis o motivo da escolha: essa praia, no norte do país, a 100 km do epicentro do terremoto, exige copiosos esforços para se chegar por terra. A propósito, nos dias que se seguiram à tragédia, Labadee permaneceu no roteiro dos cruzeiros.

As paupérrimas condições da capital, Porto Príncipe, jamais atraíram turistas. Eram escassos os hotéis de nível. Outro entrave: os serviços aos eventuais visitantes se complicavam devido ao fato de 80% dos moradores se entenderem apenas no idioma creole – isso é, quando se entendem. Além disso, alguém que tivesse a vaga intenção de uma esticada no Haiti haveria de ponderar a possibilidade de presenciar in loco mais uma crise política de um país quase sempre à beira de uma convulsão e presenteado com 30 golpes de Estado.

O primeiro presidente da República, Jean-Jacques Dessalines, foi assassinado sem completar um ano no cargo. Seguiu-se o bufão Henri Christophe, que se proclamou imperador, passou a viver em um castelo e, patético, inventou um arremedo de corte europeia, com duques, barões e quejandos. Ameaçado, estabeleceu-se no norte do país. No sul, o comando ficou em mãos de Alexandre Pétion. Foi ele quem cedeu a Simón Bolívar sete navios e 250 homens para o que seria o início da campanha de libertação da América Latina. O próprio Bolívar excluiria o Haiti da lista dos países convidados para a Conferência do Panamá, em 1826.

Uma aterradora contabilidade resume os primórdios da república haitiana. Dos 23 governantes até 1915, nada menos que 19 foram destituídos – ou assassinados. Naquele ano, os Estados Unidos tomaram conta do país. Corria a Primeira Guerra Mundial e os americanos temiam uma invasão militar alemã e visavam proteger os investimentos que haviam feito na ilha. Essa ocupação estendeu-se até 1934 durante a Grande Depressão. Ainda assim, os EUA continuaram indicando os presidentes Sténio Vincent e Élie Lescot, ambos autoritários. Mais tarde, idas e vindas implicaram dois golpes militares e descambaram na subida ao trono – pode-se dizer assim – da dinastia Duvalier. Foi no ano de 1957.

François Duvalier, negro, alçou ao poder em parte graças ao ressentimento da população contra o domínio dos mulatos e, em outra, devido a seu trabalho, considerado humanitário, como médico sanitarista – daí a alcunha carinhosa, Papa Doc (Papai Médico). Ele fechou os partidos de oposição, instaurou uma ditadura corrupta e sanguinária e criou uma odiosa milícia, os tonton macoute, responsável por 30 mil mortos e 15 mil desaparecidos. A macabra guarda do ditador deu nome, nos anos 1960, a uma esfuziante casa noturna paulistana.

Implantado o terror, Papa Doc declarou-se presidente vitalício e massificou sua imagem. Um cartaz entrou para os anais da mitomania. Nele, Jesus Cristo ampara a mão sobre o braço de Duvalier e declara: “Eu o escolhi”.

Antes de bater as botas, em 1971, o tirano alterou a Constituição para impor na presidência seu filho, Jean-Claude. A idade do novo chefe do Executivo: 19 anos, justificando o apelido, Baby Doc. Jean-Claude não herdou apenas o poder e o desprezo pelas instituições. Também recebeu o legado de um país empobrecido, amedrontado e uma população disposta a fugir para o exterior, mesmo em embarcações de insano improviso. Mas Jean-Claude, não tinha o temperamento do pai. Foi instado pelo presidente americano Jimmy Carter a liberalizar o regime e permitiu a formação de partidos políticos. Ao constatar que o herdeiro não tinha a mesma truculência no DNA, grupos de revoltosos, sempre em maior número, saíram às ruas da capital. Os militares e as milícias, dessa vez, recusam-se a atirar nos conterrâneos. Estabelecidos o confronto e o pandemônio, Baby Doc fugiu em 1986. A França concedeu-lhe asilo.

A subida ao poder de uma junta militar encontrou o país dividido entre conservadores – incluindo a Igreja e a elite mulata – e a resistência de trabalhadores rurais, líderes de comunidade e faixas da classe média. Poderia ser o momento de um pacto nacional. No entanto, as tentativas de restabelecer alguma ordem democrática e eleger presidentes foram atropeladas por golpes militares. Assim ocorreu até 1990, quando uma nova Constituição garantiu o sufrágio e entregou o poder a um padre católico, com discurso de esquerda, Jean-Bertrand Aristide – e, como é corriqueiro no país, merecedor de um epíteto: o “Pai dos Pobres”.

A vida do novo presidente tornou-se um calvário. A partir de 1991, ele esteve à frente do Haiti por três vezes. Já no ano seguinte, foi derrubado por um golpe militar. Perante uma nação em vias de guerra civil, os Estados Unidos intervieram e restituíram o comando a Aristide. Raridade das raridades em uma república de meros hiatos democráticos, o presidente terminou o mandato, entregou o poder ao ex-primeiro ministro René Préval e ainda se reelegeu, em 2000, legitimado por 92% dos votos.

Como é recorrente no Haiti, o Chefe do Executivo centralizou as decisões, irritou o Parlamento, montou uma guarda pessoal e se viu no encalço de ex-militares que haviam se safado do cárcere, embora condenados à prisão perpétua. Aristide passou a governar por decretos e cobrou da França o ressarcimento daquela velha “indenização”, do século XIX. A crise se agravaria em 2004 e desdobrou-se em rebelião armada. Pressionado pela França e os Estados Unidos, o presidente renunciou e foi exilado na violenta República Centro-Africana, esperneando e dizendo-se vítima de um sequestro. No mesmo dia, a ONU aprovou o envio de uma força internacional para evitar o caos. Quatro meses depois, o Brasil foi indicado para a chefia da Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (MINUSTAH). Os planos iniciais previam apenas um ano de operação. Tiveram de ser estendidos.

Erradicar a miséria, em médio prazo, seria utopia. Evitar os protestos, impossível e antidemocrático, em um Haiti com alta de preços, mercado interno inócuo e um abismo entre as classes sociais. Ainda assim, conseguiu-se a duras penas controlar a violência e garantir as frágeis instituições, malgradas as eleições conturbadas.

Quando o terremoto de 7 graus na escala Richter arrasou o Haiti, a inflação estava, se não à beira do controle, ao menos tolerável, e as exportações aumentavam. Havia, enfim, algum alento. Antes do horror.

MISSÕES A FAVOR DA VIDA E DA PAZ
Entre os mortos na tragédia, estavam dois grandes personagens que haviam sido entrevistados pela Brasileiros. Ambos cumpriam, no Haiti, funções que causam orgulho. Durante 25 anos, a médica pediatra Zilda Arns esteve à frente da extraordinária Pastoral da Criança. Com receitas médicas simples e caseiras e uma força de vontade formidável, ela diminuiu, como jamais havia ocorrido, a mortalidade infantil no País. A Dra. Zilda prestou seu depoimento à reporter Helena Wolfenson para a seção “Você acredita no Brasil?” (edição 26, setembro de 2009). Abaixo, republicamos sua resposta. O diplomata Luiz Carlos da Costa, por sua vez, foi um dos perfilados na reportagem sobre os brasileiros na ONU (edição 13, agosto de 2008). Ele era o funcionário brasileiro mais graduado nas Nações Unidas. No depoimento à revista, lembrou de seu entusiasmo em todas as vezes que foi o responsável pela logística das missões de paz. O texto dareportagem, de Simone Duarte, está reproduzido logo abaixo.

“Eu acredito. O Brasil talvez seja o país mais importante do mundo. Nosso povo solidário, pacífico e sem preconceito. O Brasil também privilegiado pela natureza, pelos rios, pelos minérios. Nosso País tem melhorado nos últimos vinte anos, um indicador disso é o atual índice de mortalidade infantil, que de 80 óbitos por mil nascidos vivos, baixou para 20 por mil nascidos. E na Pastoral da Criança, esse índice é de 13 por mil. Por outro lado, há aspectos que ainda precisam melhorar muito, como a qualidade da educação infantil e educação da família. Outros verdadeiros cancros do Brasil são a corrupção e a falta de ética, que devem melhorar drasticamente, a começar pela educação na primeira infância, quando se fixam os valores culturais que serão projetados ao longo da vida. Só assim teremos políticos com mais ética e responsabilidade social. A paz é precedida pela justiça social e para que se promovam ambas, é preciso uma forte atuação dos governos, das famílias e das organizações sociais. Só por meio da reforma tributária e de políticas públicas conseguiremos diminuir a concentração de renda.”
A MÉDICA ALTRUÍSTA
Em 1983, Zilda Arns criou a Pastoral da Criança, presente em 4.000 municípios brasileiros e em 20 países

Quando o jovem Luiz Carlos da Costa cruzava os corredores do prédio da ONU em Nova York como mensageiro, mal podia imaginar que mais de 30 anos depois seria o responsável por uma das negociações mais fascinantes e delicadas da diplomacia internacional. Em 2006, quando a Nigéria decidiu unilateralmente
deportar o ex-presidente da Libéria,
Charles Taylor, procurado por crimes de guerra e contra a humanidade, o brasileiro Luiz Carlos da Costa que comandava interinamente
a Missão da ONU na Libéria (da Costa era o vice-representante da ONU para o país, mas o chefe estava em Nova York) teve apenas três horas para organizar uma operação que exigia extrema habilidade política. Um dos mais temidos senhores de guerra africano, acusado de assassinato, violência sexual e uso de crianças como soldados, que já tinha tido a cabeça a prêmio por dois milhões de dólares, Charles Taylor tinha de ser enviado imediatamente para o tribunal especial da ONU em Serra Leoa. “Foi essencial a confiança que o então secretário-geral da ONU, Kofi Annan, depositou em nós. Charles ficou apenas 37 minutos na Libéria e foi imediatamente mandado para a corte em Serra Leoa. Mas do que mais me orgulho foi ter ajudado a estabelecer um estado de direito na Libéria (a criação de instituições que garantissem as liberdades civis fundamentais, os direitos humanos, a proteção jurídica) e ter convencido a comunidade internacional a colocar o país nos trilhos do desenvolvimento”, afirma. Quando em 1969, o jovem Luiz entrou pela primeira vez na ONU, estava à procura de um trabalho temporário que lhe permitisse ganhar dinheiro para comprar uma sela de cavalo, já que a paixão de juventude era o hipismo. Começou como mensageiro por três meses. Foi escolhido como o melhor mensageiro e ganhou um emprego. “Uma vez eu fui entregar documentos no 38º andar, a secretária não estava e o secretário-geral U Thant abriu a porta e começou a conversar
comigo; quase me despediram por causa disso”, lembra, rindo. “Eu sempre me interessei pelos processos políticos e imagina eu, um jovem em busca de uma aventura, de repente tendo acesso a todas aquelas reuniões no Conselho de Segurança e Assembléia Geral. Hoje, Luiz Carlos da Costa é o vice-representante especial do secretário-geral da ONU no Haiti. “Quando cheguei aqui me disseram ‘ainda bem que você chegou pois estamos lost in translation'(referência ao filme de Sofia Coppola, traduzido no Brasil como Encontros e desencontros). Nestes últimos 19 meses conseguimos virar a página da segurança, temos uma coordenação mais afinada entre os componentes militar, policial e civil da missão.” O fato de a missão militar ter um comandante brasileiro desde que começou e um grande contingente brasileiro também ajuda. De todos os postos por onde passou, Luiz lembra com entusiasmo a época em que foi o responsável por toda a parte de logística das missões de paz. Ele criou uma espécie de kit-missão de paz, com um número mínimo de carros, geradores, computadores, o mínimo necessário para montar uma missão da noite para o dia.”Temos dois, para uma missão pequena e outra de médio porte.” Hoje as tropas e os civis podem se deslocar imediatamente. Com 39 anos de carreira na ONU e depois da trágica morte de Sérgio Vieira de Mello, Luiz Carlos da Costa é hoje o funcionário de carreira brasileiro mais antigo e mais graduado
na hierarquia das Nações Unidas. Na entrevista por telefone entre Nova York e o Haiti, Luiz lembrou do dia 19 de agosto de 2003, dia do atentado que matou Vieira de Mello, quando ficou durante 45 minutos numa ligação direta com Bagdá.
“Aos 23 minutos mais ou menos perdemos o contato com a voz do
Sérgio” – silêncio também no Haiti.
Minutos depois, Luiz Carlos da Costa, que teve a chance de trabalhar com Sérgio em várias missões, retoma aentrevista, com a voz embargada:
“Foi muito difícil” – e chora.
O DIPLOMATA DEDICADO
luiz Carlos da Costa entrou na ONU muito jovem. esteve a serviço do organismo internacional por quatro décadas


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