Foi em Almada, ao sul do Tejo, que nasceu Rodrigo Brotero. Criou-se junto aos sinos na Fundição Alentejana, de seu pai. Aos 23 anos veio para o Brasil com uns moldes e um caderno de escrituras. Foi para Minas Gerais. Em Monte Alto, casou-se, teve filhos e fez sinos. Ali os fundiu, afinou e badalou. Vendeu para todo o país.

Desde pequeno, aprendeu que os sinos não eram só para marcar horas. Sinos convocam as pessoas para as funções sagradas da Igreja, significam e enobrecem suas festas, elevam a alma dos fiéis, imploram auxílio divino contra as tempestades, as pragas e a ferocidade dos espíritos. Enriquecem a entrada de prelados na igreja, ampliam a felicidade e a alegria das procissões, realçam os louvores a Deus.

Sinos fazem bem.

Sinos, além dos ornamentos e efígies, têm escrituras. Mensagens, em latim, que magicamente são incorporadas ao badalar. Desde a mais simples noto horas (marco as horas) às mais potentes, como fulmina frango (quebro raios) ou fulgura compello (afasto trovões). A rica coleção de escrituras estava toda naquele caderno que herdou do pai.

Com o Brotero a afinar e badalar na Fundição, ao longo dos anos, Monte Alto cansou-se. “Que cessem os sinos!”, pedia a população ao prefeito. Também ele, prefeito, estava pelas tampas do incessante rebimbar. Levou a demanda a Brotero, que ficou indignado com a populaça ignara: “Essa agora! Aqui fazemos instrumentos que dizem à alma e, às vezes, falam com Deus. É pouco?”.

O prefeito foi firme: “Que cessem os sinos!”

Brotero então fundiu um poderoso sino de 245 kg, em , com escritura especial que pediu ao primo, jovem diácono no Algarve. E assim, dos altos da Fundição, badalou vigorosamente, quatro vezes ao dia, até o último dos seus.

Seu filho, um marcha lenta, herdou o negócio. Não deu uma semana, na carroça, levou o sino das Horas Perigosas ao padre. Que assumisse o badalar.

Padre Lauro examinou o sino, estranhou a escritura, mas não comentou. Ficava com o sino, “que o ajudassem a instalar na igreja”. Ajudaram.

No dia 24 de dezembro, véspera de Natal, a igreja estava toda preparada para a Missa do Galo. Iluminada e ornamentada. Padre Lauro esperou, esperou e ninguém apareceu. Nem o coroinha. À meia-noite em ponto, Padre Lauro, deu início à missa com a igreja vazia. Terminou arrasado, apagou as luzes e subiu ao campanário. Ficou lá contemplando os telhados da cidade. Pensando em suas ovelhas, cínicas ovelhas.

Ao alvorecer, ele olhou bem o tal sino e mandou a primeira badalada. E depois a segunda. E então, com gosto, quase tesão, seguiu vibrando o bronze. Com força bruta, intenção.

Desde então, quatro vezes ao dia, ele badala o totus ad meretrices quae parit. O sino ecoa forte por toda cidade, dos altos da Matriz aos grotões do Viçoso. Aquilo lava a alma do padre. Areja e simplifica. Eleva, revigora e ilumina. Aproxima de Deus.

Sinos fazem bem.


*Engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP. Dedica-se também à Literatura.


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