Vinil Brasil: um sonho de 16 toneladas

O produtor Michel Nath. Foto: Marcos Coil Lopes
O compositor, DJ e produtor Michel Nath, criador da fábrica de LPs e compactos Vinil Brasil. Foto: Coil Lopes

Instalados em um galpão da rua Cônego Vicente Miguel Marino, na Barra Funda, em São Paulo, uma série de robustos equipamentos mecânicos e pneumáticos se tornará em breve uma espécie de máquina do tempo. É desse local que, a partir do segundo semestre de 2016, funcionará a Vinil Brasil, indústria de LPs e compactos, criada pelo músico paulistano Michel Nath, que já nasce com a imponência de ser a maior fábrica de discos da América Latina. Quando as sete prensas estiverem funcionando a todo vapor, uma média de 250 mil LPs de 12 polegadas e compactos de sete polegadas serão fabricados na capital paulista.

A realização do sonho de ampliar um mercado que no continente sul-americano conta com apenas uma fábrica, a Polysom, sediada no Rio de Janeiro, e intensificar a oferta de música executada em discos de 33 e 45 rotações por minuto, 20 anos após o vinil ter capitulado diante do CD, no entanto, está longe de ter ocorrido com a suavidade com que uma agulha desliza sobre os sulcos de um LP.

As 16 toneladas de extrusoras e prensas, respectivamente as máquinas que distribuem a pasta de vinil e as que prensam as cópias de cada disco, foram encontradas, em estado de sucata, em um ferro-velho da zona leste da capital paulista, em outubro de 2014. A partir daí, a história do nascimento da Vinil Brasil é marcada por belas coincidências.

A descoberta das máquinas, que pertenciam à gravadora Continental, por exemplo, deu-se assim: violonista e guitarrista, desde o início da década de 1990, quando cursou Violão e Canção Popular na Universidade Livre de Música, que então tinha como reitor o maestro Tom Jobim, Michel começou a compor em 1995. Mesmo período em que, como poeta, colaborava com um grupo de universitários, intitulado Caos, que articulava ações culturais em São Paulo. Envolvido com a cena de música eletrônica da cidade, ele passou a atuar como DJ, sob a alcunha de Alquimix, e ficou conhecido por sets que fundiam música brasileira com as bpms (batidas por minuto) que embalam raves. Transformação que o levou, ao lado da namorada, Camila, em 2011, logo após a morte de seu pai, Norberto, a atuar na cena londrina em locais como o Hard Rock Cafe, onde era DJ residente.

Em Londres, Michel idealizou um projeto autoral, intitulado Solar Soul, “alma solar”, que ganhou forma quando ele voltou ao Brasil, em 2013, e, ao lado de outros músicos, produziu o álbum de mesmo nome, com composições em inglês e português e sonoridade universal, daí a escolha dos dois idiomas, com a fusão de gêneros brasileiros e estrangeiros.

Obcecado pela cultura do vinil, claro, Michel quis lançar seu trabalho no clássico formato e conheceu, no Brasil, um importador de LPs e compactos, Clênio Ramos, que intermediava a produção de títulos locais em uma fábrica de discos sediada na República Tcheca, onde os LPs do Solar Soul foram prensados (ouça o álbum). Por meio de Ramos, soube, depois, da existência de oito prensas. Tinha início aí a primeira da série de conexões que levaram à realização da Vinil Brasil.

A viabilidade de colocar as 16 toneladas dos sete equipamentos comprados por Michel (Ramos adquiriu a oitava) de volta à ativa dependeria, primeiro, de uma reforma geral e a manufatura de diversos componentes, uma vez que, dos equipamentos, aproveitaria apenas as carcaças. Trabalho que demandou cerca de um ano e meio e só foi possível com a colaboração de veteranos da indústria fonográfica do País. Caso do técnico de manutenção Luiz Carlos Bueno, que trabalhava na gravadora RCA Victor entre 1981 e 1997.

Aposentado, aos 61 anos de idade, Bueno foi surpreendido com a ligação telefônica de um antigo colega de gravadora, José Oswaldo Martins, que intermediou o convite para que ele coordenasse a reforma das sete prensas. “Voltei a fazer um trabalho que abandonei há 20 anos. O que sinto em relação à fábrica é fantástico. Aposentado e viúvo (a mulher, Antônia, partiu em 2009), encarar um desafio como esse, de montar uma fábrica que começou do zero e daqui a alguns dias vai prensar milhares de discos, é muito gratificante. Voltar a fazer isso me traz satisfação imensa”, diz.

Convite aceito, Michel e Bueno tinham de procurar um local adequado para acolher as máquinas durante a reforma. Depois de muito circular pelas ruas do centro de São Paulo, encontraram uma garagem para locação na rua Cruzeiro, no bairro do Barra Funda. Foi lá que tudo teve início – não só a Vinil Brasil, pois na mesma rua residiam os pais de Michel quando ele nasceu. Coincidentemente o destino final das sete prensas, a rua em que foi edificado o galpão que hoje é sede da Vinil Brasil, leva o nome do padre que batizou o músico.

A trajetória de Bueno na RCA teve início com a oferta de uma vaga temporária de 20 dias na divisão que produzia tubos de televisão para a multinacional norte-americana. Formado em Mecânica, Hidráulica e Pneumática pelo Senai, cinco dias antes do término do contrato, Bueno foi efetivado para atuar na produção gráfica da RCA. Ao longo de 16 anos, chefiou todas as áreas de manutenção da empresa e fez bons amigos, como Antônio Loureiro, o Tonhão, técnico eletrônico responsável pelo sala de corte de matriz, disco de alumínio com uma película de acetato que armazena o áudio das gravações originais e, em moldes que recebem as pastas de vinil, possibilita a reprodução de milhares de LPs e compactos. Claro, Bueno convidou o amigo para também participar da construção da Vinil Brasil.

Técnico em eletrônica, Tonhão atuou na sala de cortes de um estúdio da RCA entre 1975 e 1990, quando foi transferido para a divisão de fitas K-7 da Sonopress, empresa criada a partir da compra da RCA pela gravadora alemã BMG. Depois, a partir de 1994, passou a atuar na produção de CDs e DVDs até sair da empresa em 2014, quando a sede foi transferida para Manaus. Aos 59 anos, Tonhão hesitou, mas não resistiu ao convite. “Trabalho com música há mais de 40 anos e jamais pensei que fosse voltar à produção de vinil. Estou vivendo a grande expectativa de ver tudo pronto e muito feliz”, diz Tonhão.

Duas novas coincidências. Parte dos equipamentos remanescentes da RCA foram encontrados por Michel em uma sala comercial no centro de São Paulo. Entre eles, a sala de corte onde Tonhão atuou por mais de 20 anos. Depois de longa negociação, os equipamentos foram parar na Vinil Brasil. Junto deles, veio uma série de manuais que continham manuscritos do técnico. Pouco depois, Michel recebeu um telefonema de Paulo Siqueira, presidente da Sony.

“O Paulo é um cara da música, não é um burocrata. Produziu, por exemplo, os três primeiros discos do Ira! Um dia, depois de ler uma entrevista que eu dei no início deste ano, ele me ligou e disse: ‘Você tem uma prensa aí, né?’. Respondi que não tinha uma, mas sete. Eu o convidei para vir aqui. Quando falei do Oswaldo, ele disse: ‘Ele está vivo?! Eu amo o Oswaldo!’. Peguei o celular, liguei para ele e disse: ‘Espere aí que tem um cara aqui querendo falar com você’. Quando ele disse ‘Oswaldo? Aqui é Paulo Junqueira’, foi a maior festa. Paulo foi diretor artístico da WEA e da Warner e levava fitas de rolo para cortar acetato com Osvaldo. Quando ele subiu em nossa sala de corte e viu os equipamentos, ficou muito emocionado. Os grandes empresários da música mataram o vinil para poder reeditar todo o catálogo em CD e ganhar novamente em cima dos títulos, mas o que eles mataram, ironicamente, é o que precisam agora para voltar a ter rentabilidade”, diz Michel.

Para não parecer suspeito de querer apenas vender seu peixe, o músico pondera: “A assepsia sonora e a praticidade das mídias digitais são reais, mas o CD e o MP3 são coisas que têm seu propósito. Se você vai correr na praia e quer ouvir um som, claro, não vai levar seu toca-discos no ombro. Mas se você está na sua casa e aprecia boa música, pode chegar, tomar um banho, abrir um bom vinho e ouvir música analógica de alta fidelidade. Isso é degustação, um prazer de vida. A escolha única do formato digital fomentou a pirataria, que colocou a indústria em crise justamente porque ela não considerou o óbvio: não há como piratear vinil. Olhe a estrutura necessária para se fazer um LP. Agora, as mesmas empresas que mataram o vinil precisam dele para que as contas fechem”.

Michel fala com propriedade. Números recentes demonstram ascensão do mercado em que agora ele se aventura. Nos últimos dois anos, as vendagens de LPs, no Brasil e no mundo, tiveram crescimento expressivo. Além disso, a própria Sony já demonstrou interesse em reeditar diversos títulos na Vinil Brasil. Tanto que Michel já tem em mãos um catálogo da gravadora, com mais de dois mil títulos, para sugerir eventuais projetos de reedição. O empresário, no entanto, diz que, além de atender às demandas de grandes gravadoras, dará prioridade para tiragens menos volumétricas de pequenos selos locais, como Somatória do Barulho, Cadongo e Goma-Gringa, e de artistas independentes, a fim de colaborar para que, no futuro, a atual cena da música brasileira tenha deixado seu legado disponível aos ouvintes que virão.

O criador da Vinil Brasil também vislumbra operações internacionais e já mantém contato com gravadoras latino-americanas, norte-americanas e europeias. Afinal, a redescoberta da paixão pelos velhos bolachões é fenômeno mundial. Tanto que recentemente a Technics, fabricante japonesa de equipamentos de reprodução de alta fidelidade, reeditou um dos clássicos de sua linha de produtos, o toca-discos MK-2. Segundo Michel, a carência de bons equipamentos a preço justo é um dos gargalos que ainda impedem a volta definitiva do formato que está na memória afetiva de milhões de ouvintes. “Não adianta eu fazer um disco com propriedade máxima de áudio e o ouvinte ter um sistema de som sem qualidade. Vamos, inclusive, criar um site para prover informações e ajudar a fazer com que o vinil deixe de ser um mero fetiche estético”, antecipa.

Em meio à atual crise política e econômica, a pergunta que não quer calar: mas, afinal, por que Vinil Brasil e por que investir no renascimento de um mercado enterrado há duas décadas? “Comprei essa bronca porque não sou um investidor em busca de uma tendência de mercado. Sou preocupado com lucros, claro, porque tenho funcionários e contas para pagar, mas não trato dinheiro como divindade. Dinheiro não vai comigo para o caixão. Minha intenção é também deixar um legado para as pessoas e para o meu País. Tudo que sou devo à música. Sem ela, não teria a formação e o caráter que eu tenho. Dei à razão social da fábrica o nome Aurora Solaris, porque acho que a fábrica tem de trazer uma nova luz para a cena musical brasileira. O nome fantasia é Vinil Brasil porque é um nome simples, uma seta que aponta direto para o que a fábrica é. Um nome com métrica e rima que, sem ufanismo, exalta o Brasil. A coisa do País tropical, do povo miscigenado, da fusão de culturas vindas de diferentes partes do mundo me fazem ter orgulho de ser brasileiro. Mas, claro, há muita coisa que me envergonha e me incomoda. Algo que tem a ver, por exemplo, com o Congresso que temos agora. Que tem a ver com a exploração do País pela corte portuguesa, com a cultura secular da corrupção, a cultura de acreditar que os recursos naturais e os seres humanos daqui existem para serem usados como carvão de fornalha de uma elite burra, mal-educada, egoísta e sem coração.”

Em junho, o empresário vai decolar a produção da Vinil Brasil com uma tiragem de teste de seu próprio LP para, depois de assegurar a qualidade do produto, abrir as portas para a clientela. Para a missão, contará com outros dois especialistas na manufatura de vinis, o músico, compositor, produtor e construtor de instrumentos Arthur Joly, que será responsável pelos acetatos, e Fredéric Thipagne, fotógrafo e pesquisador musical francês radicado em São Paulo, que é sócio da gravadora Goma Gringa e cuidará da divisão gráfica da Vinil Brasil.  


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.