Um sujeito atirado

Aproximadamente, 50 pessoas com o sobrenome Meneghetti, moradoras de São Paulo, foram contatadas, uma a uma. Elas responderam à mesma pergunta: “Que grau de parentesco tinham com Gino Meneghetti?”. Todas as respostas foram evasivas. Ninguém admitiu uma proximidade sanguínea direta. Compreende-se. Gino Meneghetti era um gatuno; e não um gatuno qualquer. Foi o mais famoso ladrão da história de São Paulo – ladrão declarado, bem entendido.

Desde a década de 1910, pelo menos três gerações de paulistanos comentaram no dia a dia as façanhas do larápio. Seus furtos eram engenhosos; suas fugas, espetaculares. E ainda havia os inventivos macetes para ludibriar a polícia e fazê-la de otária. No imaginário da população, o italiano Meneghetti, nascido em Pisa, tornou-se o Gato dos Telhados, o Homem de Borracha, o sujeito atirado, capaz de saltar grandes distâncias de prédio em prédio e escapar ileso, mesmo em situações improváveis.
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A essa figura acrobática somava-se a do fã da literatura e da ideologia anarquista. O surrupiador agia na surdina, não recorria à violência, jamais matou alguém, recusava-se a traficar drogas e nunca roubava trabalhadores. Só os ricos. Um personagem romântico.

O escritor e jornalista Mouzar Benedito, 63 anos, começou a ouvir essa mitologia sobre o “bom ladrão” quando ainda era meninote na diminuta Nova Resende, em Minas Gerais. Já morando em São Paulo, nos anos 1960, surpreendeu-se ao saber que Meneghetti, o audaz bailarino dos telhados, continuava vivo e na ativa. Seria possível? Afinal, tratava-se de um personagem dos tempos d’antanho. O italiano mão leve nascera em 1878 e desembarcara no Brasil em 1913, na maturidade dos 35 anos (ou 25, não se sabe ao certo).

Mouzar passou a recortar e colecionar reportagens e histórias a respeito do lendário larápio. Sem se dar conta, começava a reunir material para a biografia Meneghetti, o Gato dos Telhados, recém-publicada pela Boitempo Editorial.

“Evidentemente, é uma grande história”, diz. “Sempre me chamou a atenção o fato de ele ter passado 18 anos numa solitária e mantido a sanidade. Também me impressionou que, ao roubar, sempre desse preferência às joias. Dizia que são bens supérfluos e só alimentam a vaidade. Meneghetti também era cortês com as mulheres, um ótimo dançarino, boa-praça com os vizinhos e adorava contar casos para as crianças.”

Esses últimos atributos do ladrão, o autor do livro ouviu de Iracema Criscuolo, viúva do polêmico jornalista Orlando Criscuolo. No final dos anos 1940, depois de entrevistas exclusivas, o repórter policial hospedou Meneghetti na própria casa. Iracema foi uma das fontes inéditas para o livro. Mouzar valeu-se, também, da esmiuçadora pesquisa nos jornais, além das quatro obras publicadas anteriormente sobre Meneghetti. Infelizmente, pouco renderam aqueles mais de 50 telefonemas para os eventuais parentes, feitos em cooperação para o livro pelos insistentes repórteres Antonio Biondi e Marcel Gomes.

Um dos riscos de escrever sobre Meneghetti é transformá-lo em vítima. Outro, em um exemplo. Um terceiro, o de aderir à lenda. Mouzar, autor de 22 livros, incluindo romances de adorável bom humor – como o hilariante João do Rio, 45 -, safou-se de todos. O Meneghetti revelado pelo autor é um sujeito contraditório, ora decidido a evitar a reincidência, ora conformado ou orgulhoso do mito.

Em qualquer das situações, jamais se esqueceu de brandir seu ideário anarquista. “O comerciante é um ladrão que tem paciência”, dizia. Também em momento algum deixou de admirar o vinho, fazer chacota com as autoridades, preocupar-se com a família, admirar o jogo de bacará ou bradar contra as injustiças sociais e os métodos da polícia. Foi um precursor da denúncia da tortura. Vítima dos choques elétricos e do pau de arara, rebelou-se: “Não pode haver no mundo tortura mais alucinante e dolorosa. Nem o ‘Trem Internacional’ criado por Hitler, nem as fogueiras da Inquisição, nem as pancadas dos sicários de Maomé na planta dos pés dos infiéis, nada no mundo pode ser comparado ao pau de arara brasileiro”.

O material recolhido por Mouzar renderia um livro maior. Mas, mesmo limitado às 136 páginas da edição, o autor foi capaz de proezas. Ele conta não apenas a história de Meneghetti, mas também a de São Paulo. O ritmo ágil dos sucessivos roubos, ciladas, prisões, fugas do cárcere e procura de esconderijos seriam suficientes, nas mãos de um escritor de talento, para uma bem amarrada história policial. Mouzar não perde a oportunidade. Mas aproveita-se para contextualizar a ação no desenvolvimento de uma cidade que vai deixando de ser província com a chegada dos imigrantes, a derrocada do café, a industrialização, o início do movimento sindical, a queda das oligarquias e o surgimento de novas fortunas. Mais uma proeza de Mouzar: convencer Luiz Gê, um dos maiores quadrinhistas do País – mas atribulado professor universitário e então envolvido com a retomada da carreira de desenhista -, a readaptar uma HQ sobre o célebre ladrão, publicada originalmente, em 1976, no jornal alternativo Versus, e fonte de inspiração para o curta-metragem Dov’e Meneghetti, de Beto Brant. Os quadrinhos, renovados, aparecem no livro como delicioso posfácio.

Meneghetti morreu em 1974. Tinha 98 anos. Ou 88. Seis anos antes, havia sofrido a última acusação de furto. Foi flagrado com pé de cabra, talhadeira e lanterna, em “atitude suspeita” diante de um portão. Não havia provas. Por isso, se viu libertado. O endereço da derradeira abordagem policial é Rua Fradique Coutinho, 915, Pinheiros, onde hoje funciona a Livraria da Vila. E onde o livro foi lançado.


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