Uma aventura ao fim do mundo, em busca de Shackleton

Ponto de parada: Casa de Thoralf Sorlle, chefe da Estação Baleeira de Stromnes, onde um surrado Shackleton pediu ajuda para resgatar seus companheiros
Ponto de parada: Casa de Thoralf Sorlle, chefe da Estação Baleeira de Stromnes, onde um surrado Shackleton pediu ajuda para resgatar seus companheiros
Tudo começou onde eu queria estar. Ilha Geórgia do Sul. Vim matar a saudade de um lugar onde nunca tinha ido, mas que sempre esteve no meu imaginário. Meu primeiro desejo de visitar a ilha veio na leitura de A Ilha dos Pinguins, de Anatole France. Uma fábula política escrita em 1908 que narra a história de Pinguinia, uma região habitada por pinguins, é óbvio, e por aí vai. Depois esse desejo se reforçou quando conheci a saga do irlandês sir Ernest Shackleton (1874-1922) e sua fracassada expedição, em 1914, ao tentar cruzar o Continente Antártico a pé. Essa ilha foi ponto de partida da expedição e também peça-chave para o resgate de sua tripulação, depois de quase dois anos à deriva no continente.

Para eu chegar lá foram dois dias de viagem, a partir das Malvinas, no pior mar do mundo. Durante todo esse período, nossa embarcação se debateu com ondas violentas rebentando de encontro à proa. Elas nos erguiam no alto de suas cristas para, em seguida, nos lançar no abismo que se abria em verdadeiras montanhas russas. O barco adernava muito, e sua estrutura vibrava, emitindo rangidos que davam a impressão de que a qualquer momento tudo iria se desfazer. Estávamos atravessando a Convergência Antártica, uma faixa marítima que circunda o continente gelado e onde as águas frias se mesclam com as mais quentes, que descem do norte.

Enfim chegamos! No primeiro momento, sou arrebatado pelo deslumbramento de aportar em Stromness, antiga estação baleeira norueguesa, envolta pelas montanhas denominadas Alpes Antárticos. Um lugar farto de beleza do qual o turismo ainda não se apropriou. A paisagem ali é a mesma do tempo dos primeiros aventureiros.
Pouco depois, estou em frente à uma casa de madeira que servia como residência ao gerente da estação e onde, em maio de 1916, chegou, pedindo ajuda, um surrado Shackleton disposto a salvar sua tripulação aprisionada no gelo antártico. Também bati nessa porta.

gdgdd
Rota do desespero – Mapa detalha os caminhos percorridos por Shackleton e seus homens
A história
Agosto de 1914. Sob o título de Imperial Transantártica Expedição e a bordo do barco Endurance (resistência, em inglês), Shackleton e seus marinheiros deixaram a Inglaterra uma semana antes do início da Primeira Guerra Mundial. O destino, Ilha Geórgia do Sul, e de lá o continente gelado, onde pretendiam atravessar a pé os três mil quilômetros que separam o Mar de Weddell ao de Ross, passando pelo polo Sul.

Aqui vale voltar um pouco ao início do século passado. Nesse tempo, as circum-navegações e travessias entre oceanos já eram chamadas pelos navegadores de Rotas das Moças. Vivia-se então a época heroica das expedições polares. E as conquistas eram comemoradas com alarde no mundo inteiro. Mas a briga era de cachorro grande. Nações com tradições marítimas como Inglaterra, França, Estados Unidos, Bélgica, Alemanha e a Noruega não mediam esforços para os grandes feitos.

O pau comeu até entre conterrâneos americanos, como foi no caso da conquista do polo Norte. Reivindicado por Frederick Cook, em 1908, Robert Peary ganhou no tapetão quando lá chegou, quase um ano depois, em 1909. Em 1911, foi a vez do Império Britânico ser humilhado pelos noruegueses. Roald Amundsen vencia a corrida com o inglês Robert Scott e se tornava o primeiro homem no polo Sul. Desde aquela época, ser vice não valia nada.

Agora a glória do Reino Unido estava nas mãos de Shackleton. O percurso transantártico era o último dos grandes desafios de uma aventura. Uma jornada ainda maior que a chegada ao polo Sul. Assim diziam os jornais.

Shackleton não era novato na Antártida. A primeira vez, em 1901, foi como voluntário em uma expedição capitaneada pelo próprio Scott. Seis anos mais tarde, Shackleton abortou sua missão a 160 km de alcançar o polo Sul, em nome da sobrevivência de seus homens abatidos pelo frio, fome e cansaço.

Ele estava na terceira expedição e, sem dúvida, a mais importante. Em 5 de dezembro de 1914, o Endurance deixava a vila de Grytviken, na Geórgia do Sul, com 28 pessoas a bordo e mais 69 cães canadenses treinados para puxar trenós e um gato intruso.

Depois de 45 dias de navegação, a apenas alguns quilômetros do continente antártico, o Endurance ficou preso nos campos de gelo, resultantes do congelamento da água – as banquisas. Esses bancos podem, dependendo do frio, atingir até 60 metros acima do nível do mar. Começava ali a agonia da expedição. À deriva, fortes correntes geladas arrastaram a embarcação aprisionada pelo gelo. que foi ziguezagueando por quase mil quilômetros a noroeste, até que em 21 de novembro de 1915, o Endurance, já quase adernado, foi esmagado pela pressão do gelo. Afundou.

Nesse momento, a aventura flertava com o desastre total. Nancy Koeln, historiadora de Harvard, escreveu recentemente no Times que seu estudo sobre a liderança de Shackleton, na missão que se transformou em luta pela sobrevivência, pôde servir como modelo de capacidade para reagir à mudança das circunstâncias. Ele corria riscos com bom senso.

Nos próximos cinco meses, os sobreviventes encontraram pela frente sempre um cenário no qual a natureza comandava cada ação. Ora escondendo uma fenda enorme na banquisa, ora detonando furacões ou denunciando placas de gelo frágeis. Mas Shackleton não caminhava às cegas. Primeiro, puxando os três botes salva-vidas, que serviam também de abrigo, e depois remando, os 28 marinheiros (eles já tinham sacrificado e comidos todos os cães; do gato não se tem notícia) alcançaram, em 14 de abril de 1916, a Ilha Elefante. Um lugar tão inóspito quanto qualquer outro da Antártida. Mas estavam pisando em terra firme depois de 497 dias no gelo e no mar.

Lembrança - Túmulo de Shackleton em Grytviken, na Geórgia do Sul
Lembrança – Túmulo de Shackleton em Grytviken, na Geórgia do Sul
The boss
A insaciável sede de atravessar a fronteira e descobrir o que havia do outro lado continuava viva em Shackleton, mas naquele momento ela já tinha sido substituída pelo que o escritor Joseph Conrad qualifica como “imorredouro respeito” à sua tripulação. Certamente por isso os 27 tripulantes se referiam a ele como the boss, o chefe.

A essa altura, as reservas de alimento tinham chegado ao ponto crítico. O inverno antártico se aproximava. Embora sempre motivados pelo boss, não era fácil manter a tripulação unida e em bom estado mental. Shackleton sabia que a possibilidade de algum navio aparecer naquelas bandas era mínima. Face à adversidade, restava tentar viver. E a possibilidade de sobrevivência só tinha uma saída. Era remota e terrível. Mas única.

Mesmo beirando o impossível, Shackleton tomou a decisão de buscar auxílio na Ilha Geórgia do Sul, localizada a 1.300 km dali. Como? Remando em bote salva-vidas por aquele mar hostil da Convergência Antártica — o que tentei descrever no início deste artigo. Ele sabia que poderia encontrar no caminho faixas de ventos fortes que os marinheiros chamam de Quarenta Rugidores, Cinquenta Furiosos e Sessenta Uivadores, que de repente podem vir todos ao mesmo tempo e levantar ondas de até 18 metros. Mesmo assim, Shackleton partiu em 24 de abril, com cinco marinheiros, no bote salva-vidas de 6,6 metros de comprimento, o James Caird.

Eu vi esse bote. Está exposto em uma sala especial no Dulwich College, perto de Londres e onde Shackleton estudou. Inacreditável que seis pessoas, com um sextante e um cronômetro, tenham feito tal travessia naquele barquinho. Coisa de louco.

Continuando. Shackleton chegou a Geórgia do Sul 17 dias depois, em 10 de maio. Nesse momento, talvez porque a realidade estivesse se aproximando cada vez mais do fantástico, the boss chega à ilha, mas, devido às fortes correntezas, infelizmente aproxima-se pelo lado onde não existiam estações baleeiras. Como as arrebentações fortes não permitiam nova saída com o bote, o jeito foi atravessar a pé os 37 quilômetros que o separavam da vila baleeira de Stromness. Com dois homens e uma corda, ele teve fôlego para escalar montanhas, glaciais e picos nevados durante 36 horas seguidas, sem descanso, até chegar à casinha do chefe da estação. Ali pediu urgência para resgatar seus três marinheiros do outro lado da ilha, bem como os 22 companheiros retidos na Ilha Elefante.

De imediato, ele conseguiu ainda no mesmo dia uma baleeira para resgatar os três marinheiros e o barco James Caird. Conta-se que na chegada em Stromness o barco (sem dúvida esse é o verdadeiro bote salva-vidas) foi carregado como uma relíquia sagrada. A partir daí nova aventura começou. A Inglaterra em guerra não se empenhou em resgatar os marinheiros na Ilha Elefante. Três tentativas foram feitas em vão. Shackleton pediu auxílio ao governo chileno, que disponibilizou um rebocador, o Yelcho, mas deixou a responsabilidade ao seu comandante, capitão Pardo. Da mesma linhagem de um Shackleton, Pardo aceitou o desafio: arriscando-se sob rigoroso inverno, partiu com o explorador na tentativa de resgatar os outros 22 marinheiros.

30 de agosto de 1916. Quase quatro meses depois de chegar à Geórgia do Sul, the boss alcançou a Ilha Elefante. Merece ser citada aqui, em tradução livre, uma página de seu diário: … “Não saía do convés e com o binóculo tentava achar algum ponto escuro que denunciasse a presença de meus homens na ilha. Quando via algum me animava, mas era ora um leão-marinho ora uma foca. De repente vi alguém acenando. Meu Deus! Agora eram dois… três… cinco… 22. Nenhuma vida perdida, e nós passamos pelo inferno”. Quase um mês depois, todos desembarcavam em Punta Arenas, Chile, e voltaram para casa.

Meu fetiche pela ilha não terminou. Fui até a vila pesqueira de Grytviken, ponto de partida da expedição transantártica. Esse antigo povoado carrega mais história. Ali, em 5 de janeiro de 1922, a bordo do Quest, Shackleton voltou a Geórgia do Sul e preparou o início da quarta expedição à Antártida, em uma viagem cuja missão nunca foi bem esclarecida. Especula-se hoje até uma caça ao tesouro do Capitão Kidd. Mas um fulminante ataque cardíaco abateu aquele que é considerado o maior herói polar de todos os tempos, mesmo sem nunca ter conseguido terminar suas missões.

Uma sirene trila desenfreada. É o último aviso para embarcar. Enlevado pela Geórgia do Sul e sob uma forte tempestade de neve ainda consigo visualizar no bloco de granito que se ergue sobre o túmulo do the boss as palavras do poeta Robert Browning: “Penso que o homem deveria se esforçar ao máximo para alcançar aquilo a que está predestinado”.

Após naufrágio do Endurance, marinheiros arrastam bote salva-vidas, pela banquisa, em direção à Ilha Elefante
Após naufrágio do Endurance, marinheiros arrastam bote salva-vidas, pela banquisa, em direção à Ilha Elefante
Triste coincidência
Impossível não trazer à tona o naufrágio em águas antárticas do trawler brasileiro Mar Sem Fim, do jornalista João Lara Mesquita. Em 7 de abril de 2012, durante sua segunda expedição à Antártida para colher dados sobre os efeitos da poluição no continente branco, sua embarcação naufragou em condições semelhantes ao Endurance.

Experiente navegador, Mesquita, que já havia percorrido o litoral brasileiro, de 2005 a 2007, trazendo à luz vários problemas que se apoderam de nosso mar, e questionando se realmente o ser humano merece viver neste planeta, de tantas belezas, partiu para outros projetos, sempre com a mesma bandeira.

Como Shackleton, Mesquita não iniciou sua missão. Ainda na Passagem de Drake, um grave problema nos motores o deixou quase à deriva. As coincidências começaram e foram muitas. Com objetivo de salvar sua tripulação, o Mar Sem Fim, com muito custo, se arrastou até a Ilha Deception e de lá para a Ilha King George, onde atracou na Baía Fildes. Essa ilha se localiza bem perto da Elefante, onde Shackleton resgatou seus marinheiros. Ali, durante 15 dias, Mesquita e sua tripulação ficaram aprisionados pelo gelo que se formou devido às fortes tempestades e queda de temperatura.

“A situação piorava a cada instante. Só sairia dali se Deus me desse uma colher de chá. Fora pego pelo que, segundo o especialista Rubens Junqueira Vilela, um dos primeiros brasileiros a colocar o pé na Antártica chama de ‘ventos do leste’. Normalmente na região o vento vem do oeste. Quando aqueles surgem, vêm com força descomunal e a temperatura cai drasticamente.” Diante da situação crítica, Mesquita ordenou que parte da tripulação se refugiasse na estação chilena, bem próxima dali, e de lá retornasse ao Brasil. Ele e poucos marinheiros ainda permaneceram tentando salvar o barco. Nem mesmo um navio brasileiro que estava próximo veio em auxílio. Não houve salvação para o Mar Sem Fim. Adernou e foi a pique.

Outra situação crítica dava novos sinais de alerta para Mesquita. O inverno estava às portas, e a possibilidade de sair dali era mínima. Eles estavam na iminência de permanecer na estação chilena durante todo o inverno antártico. Não havia navios que os levassem de volta ao continente. Por aéreo, o tempo não abria janelas com horas suficientes para retirá-los dali.

Fechando as coincidências, outro chileno, este de uma companhia aérea, se prontificou a ir buscá-los. O piloto Alejo Contreras, arriscando diante da possibilidade de enfrentar um clima hostil, e em um bate-volta, retirou Mesquita e seus companheiros da Antártida e os levou para Punta Arenas. Pronto. Quero finalizar este texto retomando o primeiro verso da canção Blowing in the Wind, de Bob Dylan: “Quantas estradas um homem precisa percorrer/ Antes de poder ser chamado de homem”.


*Em tempo: João Lara Mesquita acaba de  
lançar o livro A Saga do Mar Sem Fim. Para saber mais sobre essa e outras histórias, acesse www.marsemfim.com.br.*


Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.