Uma bienal sem artistas de galeria e mercado

Foto: Patrícia Rousseaux
A instalação Violência é um dos temas recorrentes na obra do artista uruguaio Juan Carlos Romero, um dos homenageados desta edição, que tem hoje mais de 80 anos   Foto: Patrícia Rousseaux

Com o título Como (…) (falar de, conviver com, imaginar, lutar por…) Coisas que não Existem, a 31ª Bienal de São Paulo incorporou a ideia de conflito e, de fato, falou sobre coisas que não existem (especialmente no contexto brasileiro) e que não querem ser reconhecidas.

A equipe curatorial viajou pelo Brasil além do eixo São Paulo-Rio de Janeiro para ouvir as pessoas nos diferentes locais visitados, e a Bienal foi uma resposta a essa experiência.

O projeto da exposição, que dividiu verticalmente o prédio da bienal em duas seções diferentes (a área da rampa e a área mais escura de colunas), reduziu de forma proporcional o enorme pavilhão da Bienal para a escala humana. As paredes cinza também diferenciaram essa Bienal da arquitetura intacta das edições passadas – principalmente a anterior, curada por Luis Pérez-Oramas, do MoMA, onde as paredes e salas brancas mantiveram o ambiente da SP-Arte, a feira de arte que ocorre em abril no mesmo prédio. A escuridão do ambiente criou uma atmosfera de luto por Oscar Niemeyer, arquiteto que projetou o prédio da Bienal, mas sem oferecer uma alternativa ao Modernismo brasileiro.

Essa obscuridade causou desconforto nos visitantes, muitos dos quais reclamaram que a exposição tinha vídeos demais e poucas obras icônicas para mostrar no Instagram. “Uma bienal sem artistas de galeria e de mercado”, comemoraram os curadores esquerdistas! (Embora tenham sido feitas algumas concessões ao mercado, como por exemplo, as pinturas de Wilhelmn Sasnal.)
A bienal de equipe de Charles Esche almeja comunicar-se não com o mundo das artes que estava presente na inauguração, mas com os 500 mil não artistas que visitam a exposição. A representação pictórica faz parte dessa estratégia, exemplificada pelos murais de Eder Oliveira, nos quais o pintor retrata criminosos mestiços do Pará, sua terra natal. A obra indispôs a elite paulista predominantemente branca que compareceu à inauguração, e que tende a se sentir ameaçada pela presença do “outro”.

Religião foi um dos temas centrais da bienal – e não somente devido à polêmica causada pelo patrocínio do governo de Israel aos artistas israelenses que participaram do evento. Isso gerou um protesto em massa entre a maioria dos artistas e que, por sua vez, levou a um boicote à bienal por parte de alguns colecionadores judeus da América Latina. A religião também estava presente nas colagens anticatólicas de León Ferrari; no filme de Tamar Guimarães e Kasper Akhøj sobre médiuns no Brasil; na seção Dios es Marica (Deus é Gay), curada por Miguel Lopez; na bela refilmagem do Evangelho Segundo São Mateus, de Pasolini, feita por Juan Pérez Agirregoikoa; e em Inferno, de Yael Bartana, filmado em uma réplica do Templo de Salomão, em São Paulo.

Sexualidade estava presente não apenas nas posições antigay de Marina Silva, mas na obra do artista paulista Hudinilson Jr., falecido recentemente; e nos dois projetos inteligentes curados por Miguel López: o já mencionado Dios es Marica e Museo Transvesti, de Giuseppe Campuzano, exibido dentro da espiral.

Houve também tentativas de reconectar o Brasil ao resto da América Latina, como Video Trans Americas, de Juan Downey, que, apesar de ocupar um espaço central na área escura de colunas do 2º andar, não fez um bom aproveitamento do espaço – uma instalação equivocada de um trabalho tão importante. A minha obra favorita na bienal, A Revolução Deveria ser uma Escola, de María Berríos e Jakob Jakobsen, expressa o otimismo da exposição 1968 Third World, realizada no Pabellon Cuba, em Havana.

Ao subir para o 3º andar pela escada rolante e passar por baixo de uma cobertura de vidro no formato de um “V” invertido, chegamos à última obra da exposição (e a que ocupa mais espaço): uma sala escura cheia de imagens e reflexos contendo os filmes e a instalação Invention, de Mark Lewis. A localização do trabalho e o espaço que ele ocupa nos levam a perguntar o que estará por trás dessa ascensão, qual o significado de fazer o visitante passar pelo purgatório e inferno da bienal para depois retornar à realidade “mediada” dessas cenas urbanas de São Paulo lindamente emolduradas. Será que a intenção é convidar o visitante a confrontar-se com seu próprio contexto e enxergá-lo com os olhos e a mente transformados pela experiência dessa bienal? Apesar disso, as imagens de Lewis estavam destituídas de qualquer tipo de conflito e apresentavam uma
versão quase que estetizada de São Paulo.

Uma luz no fim do túnel, com suas possibilidades futuras de ação e intervenção, poderia ser encontrada no trabalho dos artistas brasileiros jovens que participaram da bienal – incluindo a curadora Luisa Proença e artistas como Clara Ianni e Yuri Firmeza. Finalmente, a obra Non-Ideas, da artista brasileira Marta Neves, apresentava uma série de sentenças e ideias não executadas, impressas em faixas espalhadas em diferentes partes da Bienal e do Parque Ibirapuera. Ao representar a frustração das pessoas comuns que não conseguem executar as suas ideias, Neves criou um espaço para ativar essas ideias e demonstrar o seu potencial de transformação e de produção de novas realidades que ainda não existem.


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