Há já uns anos, colaboro com o Lar de Crianças Antonieta Fragoso, em Santana do Parnaíba. É uma história antiga e tem lá suas razões.
Neste último ano, estávamos ampliando o Lar com um galpão para a criançada brincar em dia de chuva. Dinheiro suado. No meio de dezembro, um fiscal começou a rondar a obra. Deu umas voltas, veio com uma conversa mole e, por fim, deu o bote. Brecou a obra, o crápula. Não teve jeito. Conversa vai, conversa vem, tivemos de molhar a mão do velhaco. Fui eu mesmo quem entregou a grana pro sem-vergonha, na tarde do 24. O cachorro ainda teve o desplante de dizer: “Deus lhe pague“. Ah, o canalha!
Terminei aquilo e saí correndo, para pegar um táxi, estava sem carro. Subi no banco de trás e pedi que me levasse a São Paulo, em Pinheiros. Perguntei quanto sairia a corrida. Ele falou em 120 reais. Espantei. Ele disse que confirmaria com a central. No rádio, disse: “QAP Carlos, P-K-doze-ponto-zero“. Pelo rádio, veio um: “QSL, prossiga“. Ele disse: “Passageiro solicita preço viagem São Paulo, Pinheiros“. Pelo rádio, veio: “Cento e vinte reais“. Eu não entendo do assunto, mas aquele doze-ponto-zero foi muito parecido com cento e vinte. Ou teria sido uma coincidência? Deixei de lado. Distraí.
Passado um tempo, olhei para o taxímetro para ver a quantas andava aquela viagem. Estava desligado! “O senhor se esqueceu de ligar o taxímetro“, reclamei. Ele rosnou que o preço havia sido tratado. Grunhi: “Não é verdade“. Ele ficou quieto e, como estava escuro, o silêncio pesou mais ainda. De minha parte, resolvi que não seria mais mordido aquele dia.
Pensei em fazer um BO, na delegacia. Pela certa, o desgraçado convocaria a central para confirmar a sua versão. Eu estaria perdido. Gastaria horas, levaria uma dura e, provavelmente, algumas porradas. Eu não queria levar porradas.
Pensei em descer ali mesmo. Umas quarenta pratas, ouviria uns desaforos e pronto. Mas, eu não queria ouvir desaforos. Ademais, seria assaltado. Provavelmente morto. Alguma dúvida?
Considerei outras possibilidades no âmbito da razão. Todas me seriam igualmente danosas. Descartei o uso da força. Dei um tempo.
Então, olhando a nuca daquele verme, deixei-me levar pelos sentimentos. Desloquei-me no banco e fiquei bem atrás do banco dele. Junto ao ouvido do réptil, eu disse baixinho: “Não sou palhaço, estou armado e você está frito“. Com essas escassas palavras, o jogo mudou completamente. E assim fomos imersos em espesso silêncio, pela sinuosa Estrada dos Romeiros.
Supus, corretamente, que ele gastaria os minutos seguintes definindo suas prioridades na vida. Dito e feito, ele logo disse: “Não vamos estragar a noite de Natal por bobagem“. Esclarecendo ainda mais nossa nova relação, eu disse: “Já é tarde“. Pode até parecer cruel, mas, ali, eu não podia perder o comando.
Por fim, chegamos a São Paulo e logo à Diogo Veloso. Eu disse: “Para ao lado do Celta verde, desliga o motor, deixa a chave cair, põe as mãos no painel e encosta a testa na direção“. Ele fez tudo direitinho e gemeu: “Pelo amor de Deus, não atire”. Porque segui calado, ele contraiu ainda mais a lombar. Aguardava chumbo. Tremia, o pilantra.
Atrás de nós, enfiaram a mão na buzina. Desci do carro, virei a esquina e entrei em casa, atrasado para a festa de Natal. Crianças, conversas, abraços, bebidas e presentes. Não falei nada pra ninguém. Mais tarde, dormi bem.
Vai ver que é assim mesmo que as coisas funcionam. Não sei.
* Marcos Rodrigues é engenheiro civil , professor titular da Escola Politécnica da USP e dedica-se também à literatura
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