É domingo. Ligo meu computador e coloco Cartola para tocar. Mas nada me faz esquecer de que, a poucos centímetros de mim, logo após os vidros duplos da janela, um frio invernal – e infernal – se instaura. Já estou mais confortável a 12 °C negativos e faltam apenas quatro meses para nos encontrarmos além dos 20 °C positivos.
Quando cheguei a Moscou, em abril de 2007, tinha 24 anos e acabado de concluir o curso de Jornalismo da Casper Líbero. Minha ideia era estudar russo por um ano e descobrir alguma coisa sobre meus antepassados. Como pouco descobri depois desse período, acabei ficando.
“Somos todos perseguidos por nossas origens”, escreveu Emil Cioran em sua Carta a um Amigo Longínquo. As minhas espreitam-me de longe. Como um agente da KGB que se imagina velho, gordo e inábil, com um cigarro pendendo do lado esquerdo da boca e facilmente atingível, mas que, pelo contrário, nunca pôde se tocar ou sequer se ver de relance.
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Meus bisavós chegaram ao Brasil em 1926, depois de terem fugido da primeira revolução de 1906, na Rússia, para algum lugar entre Moldávia e Romênia. Meu avô, nascido Ivan, em 1909, em Hotin, território ucraniano na fronteira com as duas últimas, virou João no Brasil. Quando ele morreu, eu tinha apenas 1 ano, e suas memórias foram enterradas, já que ninguém falava sobre o assunto.
“Você não deveria ser mais escurinha?”, perguntam-me por toda parte da Rússia quando revelo ser brasileira. Se ser brasileiro é ser misturado qual o samba do crioulo doido, então sou mais brasileira que qualquer variação de pantone. Além do enigma russo-romeno-moldavo-ucraniano, tenho uma avó descendente de espanhóis, outra de italianos e ainda um avô cafuzo.
Além da pergunta, duas frases clássicas são quase automaticamente exclamadas pelos russos quando descobrem minha nacionalidade, como se houvesse neles um botão acionado pela palavra Brasil. Uma é: “Onde há muitos, muitos macacos selvagens”. A outra: “Isso não é Copacabana”.
Um desavisado não deve se ofender, entretanto. Cada um dos bordões saiu de um maravilhoso clássico soviético. O primeiro vem do filme Olá, Eu Sou Sua Tia!, cujo protagonista é um mendigo que, fugindo da polícia, é transvestido para se fazer passar por tia Rosa, uma milionária que vive no Brasil. Para mostrar que conhece o País, o picareta passa todo o filme repetindo a frase.
Já o segundo é um fragmento de As Doze Cadeiras, livro que deu origem a diversas adaptações cinematográficas tanto na União Soviética como fora dela – Estados Unidos, Cuba e até Brasil, com As Treze Cadeiras. O livro de Ilf e Petrov conta a história de um homem cuja tia lhe deixa como herança os diamantes que escondeu no forro de uma cadeira. Acompanhado por Ostap Bender, charlatão autor do bordão cujo sonho é ir ao Rio de Janeiro, o herdeiro vai em busca da cadeira perdida.
Apesar da busca incessante pela integração com a cultura local, por enquanto pouco descobri sobre nosso lado eslavo – pouco, além de onde meu pai tirou a palavra “fachista”. Aprendi, afinal, a língua e não sei se rio ou se choro quando leio Cioran reclamar do francês, tão mais próximo do romeno que o russo do português.
“Seria iniciar o relato de um pesadelo contar-lhe com minúcias a história de minhas relações com esse idioma emprestado, com todas as suas palavras pensadas e repensadas (…) Quanto café, quantos cigarros e dicionários para escrever uma frase mais ou menos correta nessa língua inabordável”, escreve ele. Eu nem sequer fumo cigarros para me ajudar com essa outra língua que tem seis declinações, três gêneros e uma raiz tão longe do greco-romano-latim habituais.
De maneira improvável, também parei de beber – quando não fui mordida por um cachorro, mas tomei antirrábica. Meu clássico das trapalhadas modernas se deu quando, menos de quatro meses depois de chegar ao país, levei um filhote de cachorro morto-vivo com raiva para o alojamento e limpei sua boca sangrenta com vodca, depois de cortar o dedo junto com o queijo numa bela manhã de verão. Depois de uma vacina que me impedia de beber por nove meses, dei-me conta da economia que faria na Rússia.
Passei um sofrido ano e meio na faculdade preparatória da Universidade da Amizade dos Povos, onde estudava russo todos os dias com professoras soviéticas que não sabiam português, inglês, espanhol ou qualquer outra língua. Sua metodologia dos berros e da inquirição – desde “por que não fez a lição de casa?” até “por que não passou uma linha no meio da página para copiar da lousa como eu mandei?” – emperrou minha conversação por quase seis meses.
Superada a fase, fiz um mestrado em Jornalismo Internacional na mesma instituição e passei a colaborar com diversos veículos brasileiros e a editar a versão brasileira do diário estatal Rossiyskaya Gazeta. A bastante liberal e independente Gazeta Russa parece um milagre aos que ouvem sobre o cerceamento da liberdade de imprensa – que talvez tenha as mãos tão atadas quanto no centro ou no norte de nosso País.
Recentemente, ingressei no doutorado da Universidade Estatal de Moscou. Na capital russa há quase cinco anos, levo uma vida “cioranesca”, enquanto me recuso a pagar por um dos mais caros real estates do mundo. Não foi o filósofo romeno quem enrolou uma tese de doutorado nunca finalizada na França para viver eternamente no alojamento universitário?
Com uma tal quantidade de trabalho e pesquisas acumuladas, vivo o carpe diem russo, versão workaholic. A uma semana do nascimento do filho, perguntei a uma amiga da região de Udmúrtia o que faltava para o enxoval. Ela me respondeu: “Tudo, a gente não compra nada até o filho nascer”.
Cinco anos se passaram e, sem fazer planos, continuo ficando. Se me perguntam – e perguntam – quando vou voltar, apesar das enormes saudades do Brasilzão-de-meu-Deus, “diga que só vou voltar depois que me encontrar”, como cantou Cartola.
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