“Seríamos outro país, com certeza!” Como uma espécie de mantra, a frase foi dita ao fim de duas sessões lotadas de Vocacional, Uma Aventura Humana, no Cine Livraria Cultura do Conjunto Nacional, no último final de semana, dentro do Festival É Tudo Verdade. O documentário de Toni Venturi (leia abaixo entrevista com o diretor) mostra como uma experiência revolucionária de educação pública, implementada no final da década de 1960 em seis cidades de São Paulo (Barretos, Americana, Batatais, Rio Claro, São Caetano do Sul e na capital, onde estudou Toni Venturi) foi tristemente abortada pelo regime militar, em 1969.
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O modelo de ensino foi um belo exemplo de que é possível uma educação pública de qualidade no Brasil. Caso tivesse sido desenvolvido em outras escolas públicas, pelo País afora, certamente seríamos outra nação, outro povo, como foi dito por quase todos que tiveram a oportunidade de assistir ao filme nas duas sessões – muita gente não conseguiu ingresso para ver o filme. Os Ginásios Vocacionais desenvolviam um método de ensino no qual o aluno participava ativamente de sua avaliação, tornando-o um ser integrado com sua escola, com os outros alunos, professores e funcionários. Além disso, o aluno aprendia a ser um sujeito de sua história, com uma atitude crítica perante o mundo. Os alunos aprendiam a pensar e se colocar. Fora as disciplinas tradicionais, os alunos dos Ginásios Vocacionais aprendiam técnicas industriais, comerciais, agrícolas, serviços comunitários e prendas do lar. Tinham educação física e disciplinas extracurriculares, como teatro, cinema, música, artes plásticas, etc.
Esse modelo revolucionário de ensino foi desenvolvido pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo, sob a coordenação de trabalho da educadora Maria Nilde Mascellani. Aliás, Toni Venturi dedicou a sessão de domingo à Maria Nilde, que completaria 80 anos ontem. Ela nasceu em 3 de abril de 1931 e morreu em 1999, em decorrência de complicações no coração. Maria Nilde foi uma das principais educadoras no País e tinha uma visão bastante libertária de educação. Era ligada à ala progressista da Igreja Católica. Era uma mulher franzina e com uma saúde bastante frágil (passou a vida toda tendo que tomar remédio para artrite, o que enfraqueceu seu coração), mas extremamente firme em seus pensamentos e princípios.
Quando os Ginásios Vocacionais foram abortados pelo regime militar, e ela demitida juntamente com sua equipe, sofreu perseguição da polícia e só não foi torturada por causa de seu estado debilitado. No filme, a irmã de Maria Nilde fala sobre as perseguições que ela sofreu da polícia e da sua coragem de não querer colaborar com os “milicos”. Em um episódio em especial, Marie Nilde recusou-se a assinar um depoimento falso que acusava uma colega de trabalho de comunista. Em outra ocasião, ela deu um tapa na cara do temido delegado do DOPS de São Paulo, Sérgio Fernando Paranhos Fleury, que a chamou de amante do Dom Paulo Evaristo Arns.
O filme de Toni Venturi presta uma justa homenagem a essa grande mulher e educadora. Mas, não é apenas uma cinebiografia de Maria Nilde Mascellani. O documentário relata, em emocionantes depoimentos dos ex-professores, ex-educadores e ex-alunos, o que foram os Ginásios Vocacionais na vida de quem participou da revolucionária e breve experiência. Mostra como esses anos “vocacionais” moldaram a visão de mundo de todos os envolvidos. Um filme para ser visto por todos, principalmente para os nossos políticos, educadores e professores. Em um dos depoimentos, um ex-aluno diz que só teremos um país de verdade, isto é, de futuro, quando existir um ensino de qualidade para todos, e não para uma minoria, como acontece hoje no Brasil. Fica o ensinamento desse belo documentário pessoal do diretor Toni Venturi.
Entrevista com o diretor Toni Venturi
Brasileiros – Você esperava duas sessões lotadas e tanta emoção das pessoas que viram o filme?
Toni Venturi – Eu sabia que ia ter muita emoção, mas essas sessões realmente superaram minhas expectativas. Foram muito além do que eu esperava, porque havia em torno de 50% de ex-alunos, ex-professores e ex-educadores dos Ginásios Vocacionais. Os outros 50% eram agregados: filhos e família, além do público em geral. A minha satisfação é que o filme tocou a todos. Ou seja, não falou somente com aqueles que viveram a experiência de ter estudado e trabalhado nos Ginásios Vocacionais. Mas também por aqueles que passaram por outras escolas. Chegamos ao nosso objetivo que era tocar as pessoas. Conseguimos fazer um filme não voltado para dentro e sim voltado para fora. Queríamos levantar a questão da qualidade da educação pública no Brasil.
Brasileiros – As tuas inserções no filme, ou seja, as tuas reflexões em off não causaram nenhum temor em você. Poderia destoar do restante dos depoimentos dos ex-alunos e ex-professores?
T.V. – Naturalmente. Foi, talvez, o lado que me deu mais trabalho. Inicialmente, para te contar um pouco dos bastidores, as minhas entradas tentavam amarrar as informações que não tinham nos depoimentos colhidos. Tentavam fazer parte da narrativa do filme. Aí, eu descobri que era um erro. Os depoimentos são muito verdadeiros e emocionantes, porque eles estão falando com alguém. Uma narrativa escrita, pensada, é algo muito mais frio, mais cerebral. Então, vi que era um caminho errado me colocar falando de dados, de análises, sobre o Vocacional. Fui decantando meus depoimentos e deixei só minhas memórias. As minhas memórias são escritas, naturalmente, e, talvez por isso, têm outra temperatura, mais pensada, mais cerebral. Essas minhas inserções deram um aspecto pessoal ao filme.
Brasileiros – Eu falei com o diretor Jorge Bodanzky que, por sinal, registrou várias imagens que aparecem no filme. Ele disse que, ao assistir ao filme, ficou com a impressão de que só existiram colégios com essas características aqui no Estado de São Paulo. Segundo ele, em Brasília houve experiências parecidas e bem-sucedidas.
T.V. – Amo o Jorge Bodanzky. Sou muito grato a ele pelo material que eles fizeram – o filme usa imagens de um curta-metragem que os alunos da Escola de Comunicação e Arte (ECA) da Universidade de São Paulo (USP) fizeram em 1966. O curta é um TCC feito pelos alunos da ECA, entre eles o Jorge Bodanzky. É interessante essa leitura do Jorge, mas em nenhum momento do filme colocamos que aquela nossa experiência no Vocacional foi a única renovadora existente no ensino público brasileiro da época. Acho que o filme conta de um período em que o Brasil procurava projetos inovadores de educação pública. O projeto do Vocacional foi apenas mais um de outros projetos inovadores de educação pública que se buscava. Aquilo não logrou e nem as outras tentativas que existiram pelo País afora. A ditadura abortou todas essas tentativas e deu no que deu. O filme não se coloca como a experiência e sim como uma experiência específica.
Brasileiros – Quando falei com você antes de ver o filme, não sabia nada da educadora Maria Nilde. Fiquei surpreso e emocionado com a coragem e a importância dessa mulher para a educação pública brasileira. E, ao assistir ao filme, vi que você prestou uma bela homenagem a ela, pois dentro do longa-metragem há uma espécie de curta sobre Maria Nilde, uma pequena cinebiografia dela.
T.V. – Muito bom você falar isso. Ali no meu filme tem, realmente, uma espécie de curta-metragem sobre Maria Nilde, como você falou. Ela mereceria um filme maior, você não acha?
Brasileiros – Sem sombra dúvida!
T.V. – Essa mulher foi maravilhosa! Maria Nilde não teve filhos, apesar de ter casado. Acho que nós, dos Ginásios Vocacionais, fomos os seus filhos. Essa mulher é uma bela página da educação pública de qualidade brasileira. O tapa na cara que ela deu no Freury, todos nós gostaríamos de ter dado. Que coragem!
Brasileiros – Seus filhos estudam em escola particular?
T.V. – Infelizmente, mas eu e a Débora (Duboc, atriz e esposa do diretor) os colocamos em uma escola que tivesse um método de ensino que estimulasse a criatividade e o fazer pensar deles. Procuramos uma escola que os torne cidadãos de fato, seres pensantes e atuantes na sociedade em que vivem, como era o meu Ginásio Vocacional (risos).
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