Esta é a história de uma família de classe média alta formada na década de 1950, comandada pelo casal Farid e Nadir Helou. Seria um agrupamento familiar comum, preocupado com o trabalho, com o futuro, com a educação dos filhos, não fosse o pai da família ligado ao Partido Comunista e depois à Ação Libertadora Nacional (ALN). Primeiro jornalista, depois arquiteto, Farid era companheiro de protagonistas do combate à ditadura militar, como Carlos Marighella e Joaquim Câmara, o Toledo. Ao mesmo tempo que cuidava dos afazeres do lar, essa família convivia com personagens que, na época, constavam das listas de “procura-se” e depois passaram para a lista dos mortos e desaparecidos políticos. Em 1961, essa família estava em Cuba, participando de campanhas pela plantação de cana-de-açúcar. No ano seguinte, participou da histórica Crise dos Mísseis. O conflito começou quando a União Soviética, em resposta à instalação de mísseis dos Estados Unidos na Turquia, Grã-Bretanha e Itália, levou aparatos bélicos similares para Cuba.
Farid Helou nasceu em 1930, em Pires do Rio, Goiás, filho de um casal de sírios que enriqueceu no Brasil. Nadir nasceu um ano depois na capital paulista, onde seu pai era um médico famoso, Olivio Uzeda Moreira, hoje nome de rua no bairro Alto da Lapa, em São Paulo. Farid enveredou para a esquerda ainda na adolescência, “ganhando” seu primeiro registro na polícia política em 1950 e sendo preso em 1953, em uma manifestação na ocasião da morte de Josef Stalin. Nadir não tinha orientação política, o pai não era de esquerda. Ela estudou até o último ano da faculdade de Geografia. O casal teve quatro filhos: Luiz Carlos, hoje com 57 anos; Emilie, 55 anos; Olívio, falecido em 1980 aos 22 anos; e Marcelo, 53 anos.
Tintas no porão
A família possuía dois apartamentos, um na rua Cincinato Braga, na região da Avenida Paulista, e outro na rua das Camélias, na Vila Mariana. No primeiro imóvel, Farid promovia reuniões com ativistas. No outro, morava com a família. Nem por isso deixava de fazer encontros políticos na casa onde vivia com a mulher e filhos, que também frequentavam o aparelho (jargão para local clandestino) da rua Cincinato Braga, para assistir televisão.
Do apartamento da Cincinato Braga tem-se notícia de uma reunião entre Marighella, Joaquim Câmara e… Guevara, em 1966. A família não foi informada sobre o encontro na época. Soube por informações posteriores que Farid teria sido o cicerone de Guevara em São Paulo. Soube ainda que no aparelho foi criada a corrente política de Marighella e Joaquim Câmara. As paredes devem guardar até hoje as palavras de Marighella: “Chega de alianças. (…) Vamos para a ação. Ação Libertadora Nacional”.
Hoje com 81 anos, Nadir mora no antigo apartamento na rua Cincinato Braga, onde, junto com os filhos Luiz Carlos, Emilie e Marcelo e uma neta, Tânia, recebeu a reportagem da Brasileiros para uma volta a um passado que muitos querem esquecer. Nadir diz ter muitas saudades – principalmente, de Farid Helou.
“O interesse do repórter, mãe, é que você rebobine a fita até 1960 e antes”, diz Marcelo, o filho caçula. “Rebobinada estou”, responde a senhora elegante e disposta, que já emenda: “O Farid foi meu colega de classe no colégio, no início dos anos 1950. Já era comunista. Quando o Stalin morreu, a gente não namorava ainda, mas eu já o conhecia. Foi uma das poucas vezes na vida que o vi chorando. Ele tinha ficado amigo do meu irmão, porque pintava paredes pelas ruas, com lemas como ‘Viva o Partido Comunista’, ‘Viva Stalin’, e guardava as tintas em um grande porão de uma casa que meu pai possuía na Avenida Angélica. Com encontros na escola e na casa, de repente nasceu o amor. Casei-me com 22 anos. Ele tinha 23. ‘Filha, casa. Casa e tira ele do partido’, dizia meu pai. Ingenuidade dele, pois quando começamos a namorar, seis meses antes do casamento, Farid deixou claro que em primeiro lugar vinha o Partido Comunista. Não fui ludibriada. Sabia onde estava entrando.”
E sabia mesmo. Tanto que não se surpreendeu quando descobriu, em 1961, que o marido estava em Cuba, embora tivesse saído de casa como se fosse comprar cigarros na esquina. Certa de que o marido não voltaria logo, Nadir arrumou as malas e partiu para o lugar que até hoje chama de “tierra”. Detalhista, ela não se esqueceu de nada sobre a época. Antes, foram morar em Goiânia, no final da década de 1950, onde o Farid tinha muitos amigos comunistas. Mesmo sem se surpreender com o fervor político do marido, às vezes, Nadir reagia com rigor: “Quando o Marcelo nasceu, percebi a quanto chegava o fanatismo do Farid pelo comunismo. Como sabia que o Marcelo seria o último filho, pois quatro é muita coisa para um casal, ele registrou o caçula e trouxe para mim a certidão. Li, rasguei e joguei na cara dele. Ele disse que sabia que eu faria isso, pegou uma cópia e me deu. Rasguei e joguei de novo na cara dele. Ele saiu batendo a porta com raiva. Sabe o nome que ele tinha dado para o nosso filho? Fidel Castro Moreira Helou. Você quer o quê? Não dava para aguentar. Imagine uma pessoa com esse nome naquela época?”.
Uma testemunha importante do nervosismo de Nadir chegou instantes depois da briga: “Era a mãe do Che Guevara, Célia de La Serna, que estava em Goiânia. Contei para ela que ele tinha saído bravo e o motivo. Ela começou a rir”. Mulher naquela época não frequentava cartório, Nadir chamou o sogro e pediu para que ele providenciasse um novo registro, argumentando que Farid não batia bem da cabeça. O filho mais velho, Luiz Carlos, com 6 anos, foi quem propôs o nome do caçula, Marcelo.
Para Nadir, foi o fato de ela ter rasgado o registro de nascimento que levou Farid a engendrar a viagem para Cuba, cuja revolução completava dois anos. “Uma amiga nossa ficava me dizendo: ‘Olha que ele vai para Cuba’. Eu não acreditava muito, mas aí apareceu em Goiânia o líder das Ligas Camponesas, o Francisco Julião, e Farid seguiu para Cuba com ele, sem eu saber.” Como Farid não voltava, Nadir foi para a ilha: “Meu pai, que era muito rigoroso, disse: ‘Ruim com ele, pior sem ele. Vai lá e não me encha o saco’. Fui com os quatro filhos. Tive muito trabalho para sair do País, pois para tirar qualquer documento tinha de ter o marido junto. E ele lá em Cuba…”.
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Travesseiro de urtiga
Pensando que Farid havia memorizado o dia de sua chegada, Nadir embarcou com as quatro crianças. Começou um festival de erros. “Chego à tierra e o homem da alfândega me pergunta qual o meu apelido. Pensei num apelido que tinha. Só depois fui descobrir que lá apelido é sobrenome. Peguei um táxi. O taxista me viu muito nervosa, tremendo, e perguntou o que eu tinha. Eu disse que tinha paúra. O motorista, pensando que era alguma doença grave, conseguiu a muito custo um hotel numa Havana lotada, pois havia uma campanha de combate ao analfabetismo.”
Mesmo em um país desconhecido, Nadir não demorou a ser descoberta pelo Partido Comunista, que a encontrou antes de Farid. A comédia de erros continuou: “Um amigo do Farid me procurou no hotel: ‘Muito prazer, sou Húngaro’. Bati a porta na cara dele. Caramba, não sabia falar nem espanhol, quanto mais húngaro… Mas ele era argentino e seu sobrenome era Húngaro”. Tudo explicado, Farid reencontrou Nadir. “Ele nunca me deixou trabalhar, mas em Cuba fui para uma associação de mulheres. Fazíamos campanha incentivando a população a cortar cana. ‘Vamos cortar cana; Fidel é ótimo’, aquelas coisas, sabe?”
Enquanto Nadir estimulava o trabalho nos canaviais, Farid levava o filho mais velho, de 7 anos, para as trincheiras preparadas para combater uma possível invasão americana. Estavam em 1962, em plena Crise dos Mísseis. Luiz Carlos lembra que o pai, arquiteto renomado, construiu a casinha de palha mais malfeita de todas. E o pior: “Para dormir, ele fez um travesseiro com plantas. Acordou com os olhos inchados. Era urtiga. Os cubanos brincavam, dizendo que meu pai foi a única baixa da Crise dos Mísseis”.
Em Cuba, a família reviu Célia de La Serna, a mãe de Che Guevara, com quem tivera contato em Goiânia. Com 7 anos, Luiz Carlos tinha aversão à mãe de Che, como conta Nadir: “Perguntei ao Luiz Carlos se ele se lembrava dela. Ele respondeu: ‘Lembro, sim. A ladrona’. Na época de Goiânia, ele tinha ganhado coisas de índio, como tambor, arco e flecha, cocar. Mas a mãe do Che gostou muito das peças e o Farid deu para ela de presente. Luiz Carlos achava que tinha sido roubado. Eu corrigi o português dele, mas não o fato de tê-la acusado. ‘Filho, fala-se ladra, não ladrona’.”
O jeito discreto de ser de Farid é um dos assuntos prediletos de Nadir: “Recebi uma foto de Farid, agachado ao lado de um ministro do Planejamento, mostrando onde ficava um rio. Quando mostrei para o Farid, ele rasgou. ‘Onde já se viu, me fotografar sentado no chão com um ministro?’”
Clara da tia Torta
No final de 1963, Nadir voltou para o Brasil com as crianças, para Luiz Carlos começar a estudar. Farid ficou. “Estourou a ditadura. Uma amiga me ligou, dizendo que contra a marcha vermelha só um Castelo Branco. Ela demonstrou, assim, que era pela turma da tortura. Nunca mais falei com ela. O clima estava feio no Brasil e o Farid mandou uma carta dizendo que não voltava mais. A carta tinha uma letra de um bolero que dizia ‘não te quero mais’. Respondi que no Brasil o sucesso era a música que dizia: ‘Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima’ (samba de Paulo Vanzolini). Ele ficou uma fera. Depois, enviei uma carta com uma página de jornal que trazia a prisão de um pernambucano, acho que Apolônio de Carvalho (na verdade, era Miguel Arraes). Ele pensou: ‘O que estou fazendo aqui, enquanto meus companheiros estão sendo presos no Brasil?’”
Farid voltou em novembro de 1964 e teve uma surpresa ao chegar à casa da rua das Camélias, depois de se hospedar em um hotel, por pura precaução. O jornalista Noé Gertel, amigo e companheiro de luta, havia mandado Joaquim Câmara e Marighella para se esconderem junto à família Helou. Era um bom esconderijo, uma casa com uma mulher e quatro crianças. “O Farid chegou e se assustou com aquele povo todo em casa. ‘Puxa, você é danada, hein?’ Perguntei o que tinha feito e ele respondeu: ‘Você está com o CC’. Eu, ‘com cecê?’. E ele: ‘É, você está com o Comitê Central do Partido Comunista em casa!’”
E foi na própria casa que Farid iniciou uma grande amizade com Joaquim Câmara e Marighella. “Já pensou se os militares descobrissem?”, questiona Nadir, arrematando depois que não tinha medo de prisão e tortura, pois o Farid a protegia. “Por isso ele não contava muita coisa para mim. Um dia, ele chegou com a camisa suja de sangue. Eu, assustada, perguntei o que era aquilo. Ele respondeu: ‘Foi uma espinha’. Ou seja, falou para eu ficar quieta. Mas eu não me calava. Quando a gente brigava, ele falava: ‘Cala a boca, sua burguesa’. Aquilo me doía mais do que se ele tivesse me chamado de filha de uma puta. Sabia que, para ele, burguesa era o pior palavrão do mundo.”
Apesar da discrição, Farid chegou a ser flagrado por familiares. Marcelo é quem conta: “Meu pai disse que ia resolver uma questão de trabalho no interior, em São Carlos, mas foi para o Leste Europeu. Voltou pelo Rio Grande do Sul. A tia Nena, madrasta de minha mãe, que ninguém gostava, o encontrou no aeroporto de Porto Alegre”. Nadir completa, rindo: “Minha madrasta me ligou, dizendo que tinha visto o Farid em Porto Alegre. Eu disse que era impossível, porque ele estava em São Carlos. Acho que ela pensou que ele estava me traindo com outra mulher”.
O jornalista e escritor Mário Magalhães relata no livro Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo que Farid teria levado mensagem de Marighella para Fidel Castro, sobre o envio de ativistas brasileiros para treinamento de guerrilha em Cuba. E que Farid trouxera US$ 25 mil para o militante baiano organizar um pequeno contingente. “Meu pai, o tempo todo, evitou trazer essas informações para a família. Pode ser que ele tenha trazido dinheiro, mas não há comprovação”, diz Marcelo. Já a mãe, Nadir, traz mais dados ao tema: “De uma das viagens para Argélia, ele trouxe dinheiro e mostrou como escondia na mala, em um fundo falso”.
Falando em Marighella, Nadir conta que uma vez o líder da ALN chegou à sua casa depois de uma briga do casal: “Eu estava brava, mas o Marighella era muito espirituoso, bem humorado. Chegou e contou que tinha ido a um encontro, para entregar um bilhete. Como desconfiou que ia ser preso, comeu o papel e começou a tossir. Ri tanto que me esqueci da briga com o meu marido”.
Os filhos lembram até hoje como tinham de se esmerar para não trocarem nomes. Um exemplo: um dia era para chamar o Joaquim Câmara de tio Câmara. No outro dia, mudava para tio Toledo. Ainda assim, eles se deliciavam com as visitas, como a de Clara Charf, companheira de Marighella: “Ela trazia uma torta que a criançada adorava. Um dia pedi a receita. Ela me ditou, mas, preocupada, pediu que eu não colocasse o nome dela na receita. Aí, eu escrevi Clara da tia Torta. Outro dia, encontrei a receita e estava lá o nome inventado”.
Trajetória -Desde 1950, quando é fichado por “agitação comunista”, Farid Helou teve os passos acompanhados de perto. Em 1953, o serviço secreto do Dops registra sua adesão à chapa estudantil “Panela vazia”. Em 1965, o Ministério da Guerra cita em pedido de busca a estada em Cuba, o vínculo com Ernesto Che Guevara e a origem de “família tradicional”. Quatro anos depois, documento da secretaria de segurança Pública de são Paulo informa que o líder Carlos Marighella estava “bastante aborrecido com a prisão” do arquiteto, que “deve ser pessoa bastante importante”. Em 1970, é a vez da Aeronáutica colocá-lo entre os “elementos de alta periculosidade” do Presídio de Linhares, em Juiz de Fora (MG) |
DKW vermelho
Por falar em troca de nomes, Marcelo fala sobre a chegada de um tal Adolfo Mena Gonzalez a São Paulo: “Há informações de que Che Guevara veio a São Paulo, em 1966, usando o nome Adolfo Menza Gonzalez”. Farid pegou Che Guevara em Campinas em um DKW vermelho. Depois, trouxe-o para a capital paulista para um encontro com Marighella e Joaquim Câmara no aparelho da rua Cincinato Braga. “Este apartamento aqui e o DKW vermelho eram do meu pai. O Noé Gertel, que já faleceu, também nos confirmou que meu pai trouxe o Che até São Paulo.”
Nadir também foi buscar testemunhas do encontro. “Numa recente reunião, em homenagem a Joaquim Câmara, encontramos vários amigos do Farid. Um deles, que eu gostava muito, chama-se Maurice Politi. Era quase menino na época em que o conheci. Ele é egípcio. A família judia foi expulsa do Egito e veio para o Brasil. O Maurice ficou preso com o Farid até ser expulso daqui. Eu chorei quando soube. Pois bem, ele confirmou que Farid trouxe Che Guevara. Depois de um ano preso, Farid contou a ele. O Maurice até tomou um susto quando falei que para mim ele nunca tinha dito nada. Aliás, quando Farid chegou de Cuba e ficou primeiro em um hotel, ele me ligou, dizendo: ‘Nazinha, cheguei’. Eu ia desligar o telefone, com raiva, mas não desliguei e falei para mim: ‘Fica quieta, boba. Você está com saudades dele. Fui encontrá-lo no hotel. Era o mesmo hotel em que o Che Guevara se hospedou.”
Todo cuidado era pouco naquela época. O inimigo, às vezes, morava ao lado ou logo abaixo. Depois de muito tempo, Nadir foi descobrir que no prédio onde vivia, havia um delegado. Há cerca de seis anos, ela encontrou o vizinho no elevador e ele disse que no apartamento dela tinha acontecido muitas coisas. “Ah, era um bostinha, mas não dei pelota. Não falei nem sim, nem não. O problema era dele. Mal sabia que vários dos mais procurados pela ditadura estavam bem pertinho dele. Já morreu, de câncer.”
Mesmo que esse delegado nada tenha descoberto na época, Nadir lembra que sempre passavam perigo: “Um dia, Diógenes Arruda, o Arrudão, chegou em casa brigando por causa da saída do pessoal do partidão e contra a criação da ALN. Lá estavam o Joaquim Câmara e o Marighella. Naquela gritaria toda, um deles diz: ‘Fala baixo, que você também está sendo procurado’. Não tinha jeito. Eram todos clandestinos”. Marcelo complementa: “Quando o Marighella foi para Cuba e de lá mandou um manifesto rompendo com o partidão, uma das pessoas que ajudou o Marighella a viajar à revelia do partido foi o meu pai. Daí surgiu a ALN, a Ação Libertadora Nacional”.
Por essa época, 1968, o cerco estava se fechando. Nadir lembra que o DKW vermelho de Farid ficou muito manjado pela polícia: “Primeiro identificaram o carro. Depois, caiu (foi preso) o Farid, dono do automóvel. Eu não gosto de falar muito sobre a prisão do Farid. É difícil. Eles apanhavam muito. Se eu fosse presa naquela época, confessava até que tinha crucificado Jesus Cristo”.
Começa um debate intenso entre mãe e filhos sobre quem teria entregado o pai da família. “Eu acho que foi o Chuchu (Mário Zanconato), porque primeiro caiu o pessoal de Belo Horizonte, inclusive ele, e depois caiu o Farid”, diz Nadir. No livro de Mário Magalhães sobre Marighella, Mário Zanconato desmente a acusação da polícia de que ele teria dito que, na casa de Farid, tinha contatado os dominicanos (que depois, sob tortura, deram o nome e local onde Marighella seria encontrado e assassinado). Ele nega ter feito referência aos dominicanos, mas não nega ter mencionado o nome de Farid durante os interrogatórios.
“Quando o Dops entrou em nossa casa, na rua das Camélias, os policiais foram direto para o quarto de empregada, onde eu tinha feito um escritório para o Farid receber o pessoal. Como é que os policiais foram direto? Alguém falou… O Zanconato sabia do local e tinha sido preso dias antes”, acentua Nadir.
Arrependidos
Mesmo com o drama da prisão, ela não deixa de se lembrar de situações pitorescas: “O Farid tinha de me dar satisfação sobre como ele gastava o dinheiro do trabalho dele. Então, ele comprava livro de esquerda e fingia que eram os amigos que lhe davam. Ele inventava até a dedicatória do suposto presenteador. No dia da prisão, a polícia pegou todos os livros, mas não pegou nenhum dos que tinham feito dedicatória, pois eram todos fictícios, inventados pelo meu marido.“
E dá-lhe confusão com a polícia. Nadir conta: “Os policiais começaram a vasculhar tudo. Em cima do piano do meu filho tinha uma estatueta do Marx. Os policiais perguntaram para o Farid quem era. Ele respondeu: ‘Beethoven’. Os policiais lá sabiam diferenciar Marx de Beethoven? Nem eu. E ficou o Marx em cima do piano. Tinha um pôster do Che Guevara pintado por um dos irmãos Tozzi, não lembro se o Décio ou o Claudio. Minha filha vestiu um poncho e escondeu o pôster dentro dele”.
Se Che Guevara se livrou, o mesmo não aconteceu com Shakespeare, como conta Emilie: “Eles levaram até o livro com a peça Otelo, dizendo que era conflito racial. Confundiram o personagem do Shakespeare com o ator brasileiro Grande Otelo”.
Com a prisão, que durou três anos (de 1969 a 1972), Farid viajou pelo Brasil para interrogatórios. Ficou preso no Dops, em São Paulo, depois foi para Juiz de Fora, Linhares, Brasília e, novamente, São Paulo. “A vida dele foi muito agitada, mas nunca falou nada. Correto, levou muito segredo com ele”, conta Nadir, quando a filha Emilie complementa: “Meu pai dizia que a vida política não pertencia nem a ele, nem à família. Ele e o Noé Gertel, muito amigo, falavam a mesma coisa: ‘Isso é maior do que nós. Não tem nada a ver com nossa vida pessoal’”.
Emilie afirma que seu pai e outros ativistas não admitiam nem a delação sob tortura, compreensível para muitos: “A geração deles não aceitava. Tanto que, quando alguns apareceram na televisão como arrependidos, foi vergonhoso para o meu pai e os amigos dele”. Nadir exemplifica: “Quando ele foi preso, pediu antes para ir ao banheiro. Demorou. Quando saiu, disse que tinha quebrado uma Gillette e escondido com ele. ‘Qualquer coisa, corto os pulsos. Delação nunca’”.
Ela recorda que um dia, durante uma visita, perguntou se ele tinha sido torturado. “Nunca mais me faça tal pergunta”, respondeu Farid. No entanto, a sombra da tortura assustava toda a família. “No Dops, quando eu ia visitar meu marido, um policial me amedrontava, dizendo que ia me pegar de noite. Era um sujeito horrível, com uma barriga enorme e sapatos de bico fino. Era um torturador e eu já sentia aquele sapato batendo na minha barriga.”
Nem as crianças estavam imunes às ações dos policiais: “Teve uma vez que fui ao Dops com meu filho Olívio, que já faleceu, visitar meu marido. Lá, um delegado chamado Vanderico (Vanderico de Arruda Moraes, então chefe do Dops) pegou meu filho e começou a mostrar fotos de presos políticos para que ele reconhecesse. Eu já tinha orientado a toda a criançada: ‘Vocês não conhecem ninguém’. Aí, meu filho aponta uma foto, me chama, e diz: ‘Mamãe, ela é mais bonita do que você’. Fiquei feliz da vida, fui chamada de menos bonita que outra mulher, mas ele não entregou ninguém. Ri muito, aliviada. Até o delegado riu”.
Mas a situação não foi nada cômica como no dia em que Nadir avistou no Dops Onofre Pinto, que estava preso e saía de uma sala para ser levado à cela: “O Onofre passou por mim e mostrou as mãos, com todas as unhas arrancadas. Me deu uma coisa… Ele fez isso para que eu denunciasse que ele estava sendo torturado. E eu denunciei. Encontrei a mulher do Joaquim Câmara em um supermercado. Falei para ela que tinha visto o Onofre naquela situação. E ela contou para o marido”.
Nadir se entristece mais ainda quando se lembra das muitas pessoas que passaram pela sua casa e que foram assassinadas pela ditadura. Lembra de Isis Dias de Oliveira, desaparecida política, que foi esposa de outro militante, José Luiz Del Roio. “Uma vez, a mãe dela me telefonou, perguntando se eu sabia onde estava a filha dela. Não sei por que respondi que ela estava no Rio de Janeiro. Baixou algo em mim. Mas não é que noticiaram depois que ela teria sido torturada e assassinada no Rio de Janeiro?”
Norberto Nehring também frequentava a casa da família. De acordo com o grupo Tortura Nunca Mais, Norberto foi assassinado sob tortura pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Enterrado com nome falso, somente depois de três meses é que a família soube de sua morte. Alegação da polícia: ele se enforcou com uma gravata.
Doces com bilhetes
Eram tantos os que passaram pela casa que Nadir sabia de cor os nomes daqueles que iriam para o México, banidos em troca do embaixador americano Charles Burke Elbrick, que fora sequestrado: “Estava tomando um café bem quente, ouvindo rádio, quando interromperam a programação para dar o nome dos terroristas trocados pelo embaixador americano. Não estavam identificando quem era o Chuchu (a lista feita pelos guerrilheiros só trazia o apelido e os policiais tiveram dificuldade para identificar Mário Zanconato). Tomei o café quente de uma vez. Queimei-me toda. Sabia quem era o Chuchu”.
A família fala com orgulho da batalha do pai, mesmo preso, em manter-se informado, sempre com discrição. Uma presa política, Carmela Pezutti, contava que em Juiz de Fora chegava muita comida, principalmente doces para ele. Era a mãe de Farid quem enviava, na maioria das vezes, doces árabes. O filho redistribuía, mas dentro colocava bilhetes, com notícias de fora da prisão, sobre quem tinha caído ou morrido nas garras da ditadura.
Quando Marighella morreu, Farid estava preso e a família assistia a um jogo de futebol pela televisão, Corinthians e Santos. Luiz Carlos lembra que o jogo foi interrompido para o comunicado da morte do “terrorista” mais procurado pela polícia. “Fiquei muito chateada com a morte dele. A gente não queria, mas sabia que a qualquer hora poderia acontecer”, lamenta Nadir.
Farid faleceu aos 66 anos, em 1997. “Perdemos um filho, o Olívio, e isso nos abalou muito. Farid teve enfisema pulmonar, de tanto fumar (com 81 anos, Nadir com um cigarro aceso na mão, ri da ironia). O médico disse que ele já tinha tido dois enfartes. Ele não sabia. Acho que foi quando foi preso e quando perdeu o filho. Depois, morreu devido a outro enfarte.”
Monumento derrubado
Era professor da Faculdade Arquitetura e Urbanismo (FAU) da Universidade de São Paulo (USP), da qual foi demitido por causa da prisão. Depois, trabalhou em construtoras. “Quando estava preso, ele me falou que se eu precisasse de dinheiro era para ir na FAU, pois tinha dado várias aulas e não recebera. Lá, me falaram que ele era terrorista e não merecia receber. Pedi um atestado de que ele trabalhava lá. Me deram um atestado de assiduidade. Mas ele estava preso havia dois meses! Que assiduidade era essa? Eu só podia rir.”
Não bastassem os dissabores com as prisões e assassinatos de companheiros e a demissão do emprego por ser “terrorista”, Farid Helou ainda teve um monumento desenhado por ele, com pintura de Clóvis Graciano, derrubado pela ditadura militar. O Monumento ao Trabalhador, em Goiânia, foi destruído em 1964. Desde 2003, fala-se em reconstruí-lo. A família Helou aguarda com ansiedade.
No final da entrevista, Nadir mostra na estante uma bandeirinha de Cuba, desbotada pelo tempo. Bandeira que trouxe envolta nas fraldas das crianças, para que a alfândega não descobrisse. Uma viagem a Cuba foi o presente que deu às netas Júlia, Tânia e Paula, com a indenização recebida pelo que a família sofreu com a ditadura. Mas nem passou por sua cabeça a possibilidade de ir também: “Não. Para quê? Me falta alguém”.
Nadir pede para o repórter desligar o gravador: “Tem uma luzinha vermelha acesa. E de vermelho, entendo”. Perguntada sobre o motivo para desligar o aparelho, foi convencida de que era bonito o que ela tinha para falar e que merecia ser transcrito. Concordou encabulada, e disse, quase cochichando: “Eu vou dizer uma coisa que não digo nem para os meus filhos. Tenho muitas saudades dele. Que falta que ele me faz, viu?”.
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