Uma África, um ritmo

Fela Anikulapo Kuti, nascido Fela Ransome Kuti, foi, segundo seu biógrafo, o cubano Carlos Moore, o mais inventivo músico do século XX. Talvez o único a ter criado, completamente sozinho, um novo gênero musical. O afrobeat, uma mistura de ritmos africanos tradicionais com o funk de James Brown, permaneceu desconhecido, para além das fronteiras da África, até o começo dos anos 2000, quando a obra de Fela foi revisitada e largamente difundida na Europa, Estados Unidos e, recentemente, Brasil.
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O músico, nascido na Nigéria, em 1938, faleceu em 1997, vítima da Aids, e não teve a oportunidade de ver sua obra reconhecida em todo o mundo. Hoje, espalham-se bandas com inspiração no afrobeat por todos os continentes, como os ingleses do Ariya Astrobeat Arkestra, os alemães do Woima Collective e os brasileiros do Bixiga 70 (assunto da reportagem O ritmo que vem da África, publicada na edição de novembro da Brasileiros.

Uma amostra do sucesso que Fela tem feito é o recente lançamento da biografia Fela Esta Vida Puta, editada pela Nandyala, e assinada por Carlos Moore. O livro, originalmente publicado na França, em 1982, está para ganhar edições em italiano e japonês, além de francês e inglês. Fela e Moore eram amigos próximos desde a década de 1970, quando o escritor conheceu o som do nigeriano.

Os anos 1970, aliás, foram determinantes para a carreira de Fela. Em 1969, em viagem aos Estados Unidos, ele entrou em contato com o movimento negro norte-americano, leu a biografia de Malcolm-X e, pela primeira vez em sua vida, parou para refletir sobre sua africanidade. De volta à África, Fela mudou de nome – Ransome era de origem colonial – criou o afrobeat; iniciou uma comuna, chamada República Kalakuta e, no final da década, se casou, em uma mesma cerimônia, com 27 mulheres.

As exóticas ações de Fela, mas, principalmente, sua postura pan-africanista, expressa em letras ácidas conta os governos e regimes africanos, fez com que ele fosse perseguido pelas ditaduras nigerianas.

Como complemento da matéria O Ritmo que vem da África, Carlos Moore conta, em entrevista abaixo, um pouco sobre a carreira de Fela Kuti.

Brasileiros – Como você explica a redescoberta da música de Fela?
Carlos Moore – A Nigéria se abriu e, quando ela se abriu, a música de Fela saiu por aí. Ela estava fechada. O meu livro, por exemplo, era proibido na Nigéria. Ele foi publicado pela primeira vez na África só ano passado. O livro estava proibido em praticamente todos os países africanos, porque Fela estava proibido. Os governos tinham muito medo dele, mas com esse processo de democratização, a música dele vai para o exterior e começa a encantar essas novas gerações que nem sabiam quem era Fela.

Brasileiros – Fela tinha uma briga antiga com as grandes gravadoras. Você acha que a internet colaborou para a disseminação da obra dele?
C.M. – Sim, sem dúvida nenhuma. Isso acontece em um momento em que a Internet está subindo. Os anos 2000 são quando a Internet começa a se impor realmente. Aí espalha a música de Fela pelo mundo inteiro. De repente, ele se encontra no YouTube. E o meu livro, espalhado pela internet. Milhares de pessoas descobrem a biografia de Fela, a única autorizada por ele, que tinha sido publicada há 30 anos. Aí os diferentes editores, perante esse boom, começaram a se interessar por Fela.

Brasileiros – Como nasceu a República Kalakuta?
C.M. – Ele me falou que quando voltou dos EUA, em 1969, ele teve a ideia de criar uma comuna libertária, onde os africanos de qualquer país do mundo, que estivessem fugindo da repressão, pudessem ficar tranquilos. Seria uma comuna, onde os artistas pudessem ir e criar. Tinham, por exemplo, Panteras Negras que estavam fugindo, porque a repressão era muito forte nos Estados Unidos. Ele queria que os Panteras fossem para lá, vivessem com ele e o ajudassem no desenvolvimento da África. Fela se tornou um grande pan-africanista. E eu encontrei muitas pessoas que estavam fugidas de seu país de origem, morando com ele e usando nomes falsos. Essa era a grande visão dele: uma grande comuna. Mas, quando o governo começou a perceber que isso não era só uma coisa folclórica, que realmente estava virando um lugar de dissidentes, eles começaram a não tolerar isso.

Brasileiros – Como era esse lugar?
C.M. –Fela simplesmente pegou uma casa e começou a chamar essa casa de Kalakuta. Um dia ele começou a falar que deveria ser uma República Independente, voltada para dissidentes, para que eles pudessem viver de uma maneira alternativa. Mas o governo não prestou atenção. Então, Fela começou a falar incessantemente sobre a necessidade de não se respeitar mais as leis da Nigéria e ficar independente em relação ao Estado. Aí, o governo começou a ficar intrigado, depois a se inquietar e, por último, passou a ter medo e, neste momento, chegou a decisão de que isso deveria mudar.

Brasileiros – Foi aí que o exército atacou e destruiu Kalakuta?
C.M. –Sim. Houve Kalakuta 1, que foi queimada, e ficava no bairro de Surulere. Depois, ele criou Kalakuta 2, em Ikeja. Esse é um dos maiores guetos de Lagos. Eu perguntei,: “Por que você se meteu aqui nesse gueto?”. Ele me disse: “Porque aqui está mais denso”. É um lugar com mais de meio milhão de pessoas. Então ele me falou: “Carlos, se eles decidirem fazer outro ataque, eles vão ter de atravessar toda essa população e ficariam presos aí dentro. Eu saberia com meia hora de antecedência que seria atacado, então aqui eu posso me fortificar e ter a proteção de milhares de pessoas”.

Brasileiros – Apesar de todo o esforço, ele nunca conseguiu despertar os nigerianos politicamente, não é?
C.M. – Ele pensava sempre que haveria uma revolta. E que os nigerianos iam se revoltar contra o governo militar, mas
a massa nigeriana tinha muito medo desses militares. É como os brasileiros, eles também tinha medo. Aqui nunca houve um levante contra o regime militar. Por que os militares iam afogar ele em sangue. As pessoas têm muito medo. E o governo tinha desarticulado as organizações opositoras também. Não havia os instrumentos para organizar um levante. Quando Fela tentou organizar um partido político, para organizar o povo, eles interditaram o partido (Fela tentou se candidatar à presidência da Nigéria pelo Moviment of the People).

Brasileiros – Qual é a diferença entre Fela e outros cantores de protesto?
C.M. – Os outros não tomaram os riscos, não foram até os limites que Fela foi. Ele nomeou os líderes e pediu um levante contra eles. Ninguém fez isso. Bob Marley denunciava a corrupção em termos genéricos, mas ele não nomeava os chefes de Estado. Ele nunca fez isso. Por que isso é grave em um país. Nomear um chefe de Estado, um ministro e colocar isso em uma canção, que vai ser vendida em todo continente, era gravíssimo. Então eu acho que nenhum músico tomou esse risco. Eu nunca vi isso.

Brasileiros – Você acha que as revoluções na África árabe são o início de uma onda que se espalhara por todo continente?
C.M. – Olha, são 50 anos de independência da África em que ela tem caído sob o controle de ditadores corruptos. Então, primeiro tem de se perguntar por que desses levantes. A África não teria chegado à independência com esses ditadores corruptos. A África chegou a à independência com aqueles lutadores idealistas que queriam a emancipação do continente. Que eram: Patrice Lumumba, Modibo Keita, Julius Nyerere, Thomas Sankara, entre outros. Foi uma série de líderes que foram assassinados, por que o ocidente sabia que, com esses dirigentes, eles não poderiam promover o saque que eles fazem hoje. Assassinaram esses dirigentes brilhantes que tinham um projeto africano. Isso por que o ocidente não queria que a África fosse um Estado só, um governo só. Queria manter todos esses Estados parcelados para poder controlá-los. Como? Matando um dirigente nacionalista e botando um fantoche no lugar. Então todo o continente africano viveu sob ditaduras de fantoches. Mas quem os colocou ali? Foram os ocidentais. Então, as pessoas que estão hoje olhando para a África sem conhecer a história, não veem isso. Bem, eu acho que, depois de 50 anos de repressão, os povos estão se organizando graças às redes sociais e a internet. A internet é um instrumento revolucionário no continente africano. Agora as oposições políticas estão se reorganizando e estão mudando, absolutamente, o continente africano. E isso não vai ser apenas na Líbia, Egito e Tunísia. Isso vai se espalhar por todo o continente. Nós já podemos entrever que, nos próximos cinco anos, vai haver convulsões revolucionárias em todo o continente.

SERVIÇO
Fela, esta vida puta, Editora Nandyala, 341 páginas

MAIS
Leia reportagem sobre a banda Bixiga 70, no número 52 da Brasileiros


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