Uma inversão de valores

Um dia, acordei e tinha mudado tudo. Tive de me adaptar. Aprender uma porção de coisas na marra. Experiência besta essa de aprender tudo o que não devia. Estudei no Sion. Debalde. Aprendi boas maneiras com as freiras. Debalde. Fiquei sabendo, por exemplo, que hoje em dia não se retorna mais ligação. É chique. O importante é ser inatingível. Até os telefones comerciais não atendem mais as pessoas e substituíram as boas maneiras por uma gravação que fica uma hora tocando uma música insuportável, com o atendente pedindo que se espere um momento para depois desligar na cara da gente.

Bons tempos aqueles em que eu falava com Fellini, em pessoa, em Cinecittà, Roma, sem intermediários, e passeava com ele pelos estúdios. “Aqui, minha filha, é o restaurante”, mostrava-me ele, com o braço por cima dos meus ombros. “Ali os camarins.” Uma vez, liguei para George Benson para falar da Adriana Calcanhotto, e ele retornou interessado! Minha irmã me diz: “Para de contar essas coisas que vão te chamar de Princesa Anastácia, que acabou no hospício como louca”.

Esses dias vi Nara Leão, no Canal Brasil, cantando Com Açúcar, com Afeto. Hoje não tem mais açúcar, foi substituído pelo diet, e afeto, então, corre-se dele como o diabo da cruz. Também ninguém canta mais com aquela delicadeza que fazia até carcará ficar sutil. O que se vê agora é um bando de mulheres sozinhas, de todas as idades.

Celular só serve mesmo para ficar fora de área ou permitir que a pessoa se esconda. Antigamente, gente bem educada tinha não só que retornar o recado anotado em uma agenda pela empregada como também telefonar para agradecer por uma festa ocorrida na noite anterior. Para um rapaz, valia também telefonar para a moça com que tinha estado na véspera, mesmo que fosse apenas para dizer alô. Agora, ninguém está mais aí para nada! Isso dos homens ligarem no dia seguinte acabou faz tempo! Outro dia, uma amiga jovem concordou em ir ao apartamento de um cara, desde que ele telefonasse no dia seguinte. Ele concordou e, de fato, ligou como prometera. Ela, então, perguntou: “Quando a gente se vê de novo?”. Ele: “Ah, isso eu não prometi para você”. Mas não houve só mudanças negativas. De positivo, há a vantagem de, a partir dos anos 1970, uma mulher telefonar para um homem, coisa inadmissível naquela época longínqua do Sion, quando mulher tinha de ser inatingível, cobiçada de longe e, de preferência, passando de helicóptero, dando adeus. Isso no tempo em que o auge da transgressão no colégio era matar aula na Sears e não matar o colega de classe e a professora com uma rajada de metralhadora.

Cá entre nós: de que vale mulher poder telefonar para homens, se a maioria deles não responde a ligações? As mulheres acabam se agrupando nos restaurantes com os celulares sobre a mesa, esperando milagres. Conclui-se, então, que celular, e-mail e tudo o que há de mais moderno serve para as pessoas se protegerem umas das outras, não para se comunicarem, como se o outro fosse uma ameaça constante. Quando perguntei ao filho de uma amiga por que ele não ficava mais uma vez com a menina da festa, recebi a seguinte resposta: “Repeteco não preenche álbum de figurinha”.


*É atriz, atuou em mais de 50 filmes, 15 telenovelas e minisséries, além de peças de teatro. Também é cronista do Jornal do Brasil e autora do livro O Quebra-Cabeças (Imprensa Oficial, 2005), uma compilação de crônicas publicadas pelo jornal.


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