Uma jovem estrela

Foi preciso recorrer?à ajuda da polícia para ordenar a entrada do público na sala Cine Banguê, em João Pessoa, tamanha a procura pelo espetáculo. Em Recife, a fila de espectadores dava uma volta completa no quarteirão do belo e histórico Teatro de Santa Isabel. O alvoroço, típico de filmes blockbuster, era provocado pela apresentação de uma filarmônica – a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais.

A convite do Instituto Cultural Filarmônica, a reportagem da Brasileiros acompanhou parte da turnê do grupo pelo Norte e Nordeste do País (que inclui as cidades de Natal, Fortaleza, Belém e Manaus). A julgar pelos calorosos aplausos que vem recebendo no exigente ambiente da música clássica, a orquestra mineira, que estreou há menos de três anos, já tem seu lugar garantido entre as melhores do País e caminha rápido para ter destaque internacional. Um dos mais recentes reconhecimentos disso veio do mundialmente celebrado maestro israelense Yoav Talmi, que, em setembro, como convidado, regeu a nova orquestra brasileira em concerto no Palácio das Artes de Belo Horizonte.
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Atualmente diretor artístico e regente da Orquestra Sinfônica de Quebec, Canadá, e principal regente convidado da Orquestra de Câmara de Israel, tendo ainda no currículo a condução da Filarmônica de Berlim, uma das mais respeitadas orquestras do mundo, Talmi não economizou elogios: “Fiquei bastante impressionado com a Filarmônica de Minas Gerais. Em apenas dois anos e meio, chegou a um padrão de qualidade normalmente alcançado em muito mais tempo. Ela tem tudo para ir bem longe, graças às atitudes positivas e construtivas dos seus integrantes, dificilmente encontradas na maioria das orquestras”, afirmou.

Semelhante impressão teve o virtuoso Yang Liu, violinista chinês que se apresentou em outubro passado como solista da orquestra mineira, com o seu Stradivarius, de 1699. Considerado pelo programa de TV Beijing Tonight como “o melhor em um bilhão”, Liu, que aos 34 anos é um veterano com quase 25 anos de carreira, destacou que: “Os componentes da Filarmônica de Minas Gerais não se limitam a executar as partituras com alta técnica, mas proporcionam aos solistas uma excelente atmosfera e possibilidade de diálogo, enriquecendo sua performance”.

Talento em família
A Filarmônica de Minas Gerais é formada por um grupo mesclado de músicos jovens e veteranos, que se completam e reúnem experiências de variadas culturas, apresentando resultados antes reservados aos grandes teatros do mundo. As idades variam de 20 a 70 anos, com uma média de 32 anos. São 26 músicos de Minas Gerais, 24 de Estados como Pará, Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, São Paulo, Santa Catarina, Sergipe, 25 músicos estrangeiros vindos de 13 países (Alemanha, Canadá, Chile, Colômbia, Dinamarca, Estados Unidos, Haiti, Inglaterra, Japão, Nova Zelândia, Polônia, Sérvia e Uruguai) e quatro naturalizados brasileiros.

Dos atuais componentes da Filarmônica, quatro vêm da mesma família, incentivados pelo pai (ex-maestro da banda da Polícia Militar de MG) e pela mãe (pianista formada em conservatório). Eliseu Barros, o mais velho deles, é o principal violinista da orquestra e um torcedor fanático do Atlético Mineiro, a ponto de não deixar de acompanhar um jogo do seu time em uma TV de bolso até minutos antes de o concerto começar. Outro é William, que integra o naipe de viola da orquestra. Como chefe dos oboés está Alexandre, craque também no jogo de peteca. Ele já foi campeão estadual desse esporte bastante difundido em Minas e usou os prêmios que ganhou para investir na compra de um oboé de melhor qualidade. A mais nova dos Barros é Gláucia (viola), mãe de Hosana (16 anos) e Lucas (14 anos), considerados grandes promessas como instrumentistas clássicos.

Após o concerto realizado pela Filarmônica de Minas Gerais no Teatro Castro Alves, em Salvador, durante a turnê pelo Nordeste, o conceituado pianista baiano Ricardo Castro, radicado na Suíça e diretor da Orquestra Jovem da Bahia — do Projeto Neojibá -, fez coro aos que consideram a orquestra mineira a nova estrela no cenário da música erudita.

Segundo ele, a apresentação na capital baiana “mostrou o equilíbrio da Filarmônica em todos os seus setores, com qualidade próxima das melhores orquestras mundiais. É claro que ainda não dá para comparar ‘nossas criancinhas’ a formações de 30, 40 anos das orquestras centenárias de países com grande tradição musical da América do Norte e Europa. Mas, não tenho dúvida de que ela chegará perto delas em pouco tempo, principalmente quando tiver sua casa”. Ele se referiu à sede própria, um espaço multifuncional que a Filarmônica planeja construir em Belo Horizonte, projeto estimado em R$ 100 milhões e que deve ser inaugurado até 2013.

Em boas mãos
A excelência de qualquer orquestra começa a ser percebida, necessariamente, a partir do desempenho do seu maestro. No caso da Filarmônica de Minas Gerais não é diferente. Ganhador do XII Prêmio Carlos Gomes como o melhor regente brasileiro em 2008, Fabio Mechetti, um paulistano de 53 anos, formado em música pela USP, onde também cursou jornalismo, tem um currículo respeitável. Mestre em regência e composição pela prestigiosa The Juilliard School, de Nova York, é também regente titular e diretor artístico da Orquestra Sinfônica de Jacksonville, Flórida, EUA, desde 1999.

Foi regente associado do consagrado Mstislav Rostropovich na Orquestra Sinfônica Nacional de Washington, tendo se apresentado no Kennedy Center, no Capitólio norte-americano, no Carnegie Hall de Nova York e em diversas outras cidades americanas. Além disso, conduziu concertos no México, Espanha, Venezuela, Japão, Dinamarca, Suécia, Finlândia, regeu ainda a Orquestra Sinfônica da BBC da Escócia, a Filarmônica de Auckland, Nova Zelândia, e a Orquestra Sinfônica do Quebec, Canadá. No Brasil, foi convidado para dirigir a Sinfônica Brasileira, a Estadual de São Paulo, as orquestras de Porto Alegre e Brasília e as municipais de São Paulo e do Rio de Janeiro.

Filho e neto de maestros, Fabio Mechetti é conhecido por exigir o máximo dos componentes das orquestras que conduz. “Estou sempre desafiando os meus músicos, programando a execução de peças com graus de dificuldade cada vez maiores, pois eles têm de estar sempre se aperfeiçoando para alcançar altíssimos índices performáticos. Ao contrário de outros profissionais, como os jogadores de futebol, que podem ter um grande percentual de erros em uma partida, para os músicos, uma margem de 10% é considerada muito alta, pois em uma peça de cinco minutos significa em torno de 16 mil notas erradas”, diz o maestro.

O rigor de Mechetti é transportado para as audições que a Filarmônica de Minas promove para selecionar seus componentes, tanto é que 12 das 90 vagas na orquestra ainda não foram preenchidas por não terem encontrado músicos com o nível de qualidade desejado.

Responsável pela formação da orquestra mineira em 2008, o diretor artístico e maestro Fabio Mechetti explica que, para alcançar boas performances na música clássica, é fundamental contar com uma estrutura própria para ensaios individuais e coletivos e para os concertos. “Somente com uma acústica adequada é possível a orquestra dar os saltos de qualidade que farão a diferença. É importante realizar a maior parte dos ensaios e apresentações em um mesmo ambiente para que se tenham parâmetros para avaliação de detalhes mínimos de sonoridade e técnica de execução”, explica.

Modelo de gestão
Outro ponto considerado fundamental para o êxito da orquestra mineira é o seu modelo de gestão, que influencia diretamente a parte artística. Ela é mantida pelo Instituto Cultural Filarmônica, Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) que recebe aportes financeiros do governo de Minas Gerais, mas tem a flexibilidade operacional de uma entidade privada, o que inclui um planejamento de marketing para captação de patrocínios e venda antecipada de ingressos por meio de assinaturas anuais. “Como OSCIP, fica muito mais fácil e ágil gerir um orçamento de R$ 17 milhões, contratar músicos, elaborar planos salariais, comprar equipamentos e instrumentos, inclusive no exterior, oferecendo aos músicos a tranquilidade necessária para se preocuparem apenas com o trabalho artístico”, explica Diomar Silveira, presidente do instituto.

Ele acrescenta que foi a adoção do modelo OSCIP que permitiu montar uma organização de qualidade, condição imposta pelo maestro Mechetti para participar do projeto da orquestra. “Isso inclui a possibilidade de selecionar músicos de alta performance e oferecer salários competitivos com os mercados nacional e internacional, que hoje vão de R$ 5,5 mil a R$ 6,6 mil, mais plano de saúde, auxílio alimentação e transporte”, afirma. As boas condições profissionais oferecidas pela Filarmônica de Minas, a atração pelo Brasil e os salários, além da possibilidade de trabalhar como freelancer e dar aulas, foi o que motivou músicos brasileiros e estrangeiros a participarem das audições realizadas em várias cidades brasileiras, nos Estados Unidos, Canadá, Sérvia e Polônia.

Uma das selecionadas, a violinista sérvia Jovana Trifunovic, de 23 anos, em perfeito sotaque brasileiro, conta que no seu país, onde o aprendizado musical começa paralelo ao das primeiras letras do alfabeto, era obrigada a ter três atividades profissionais para se manter, ganhando menos que atualmente. “O salário e a organização da orquestra foram motivações, mas o que também me atraiu foi a possibilidade de contato com a cultura de um país como o Brasil, com suas praias e sua comida”, disse, completando que está admirada com o talento dos músicos da filarmônica mineira.

A busca de contato com a cultura brasileira também fez com que o violoncelista Matthew Ryan-Kelzenberg, americano de 36 anos, se mudasse de Phoenix, Arizona, para Belo Horizonte com sua mulher Shelley e os filhos Dora (9 anos), Sebastian (6 anos) e Beatrice (3 anos), após ser aprovado na audição de Nova York. Hoje, oito meses depois, estão todos perfeitamente adaptados ao País. Adotaram um gato de rua, George, que se tornou mais um membro da família, e a paixão pelo Clube Atlético Mineiro.

Matthew é doutor em música pela Arizona State University e acha que, graças à excelente formação profissional e dedicação dos componentes da Filarmônica de Minas, mesmo com uma maioria bem jovem, no máximo em dois anos ela já poderá se nivelar à OSESP, considerada a melhor orquestra brasileira na atualidade. “Em nossa orquestra, há muitos com alta graduação em arte musical. Só no naipe de ‘celos’, dos oito componentes, três são doutores e três têm mestrado nessa área. Isso está sendo reconhecido. Após uma apresentação nossa, ouvi do maestro da Orquestra Sinfônica Brasileira, Roberto Minczuk, que ele estava muito feliz em descobrir que havia outra orquestra fantástica no Brasil”, disse o violoncelista americano.

Segundo o maestro Mechetti, outro reconhecimento veio do atual governador de São Paulo, Alberto Goldman, que fez questão de falar com seu colega mineiro, Antonio Anastasia e elogiar a apresentação da Filarmônica de Minas no último festival de inverno de Campos de Jordão. Em tom de brincadeira, ele disse que: “Mais uma vez, os mineiros trabalharam em silêncio, com muita eficiência”. Mesmo com todo o retorno favorável de crítica e público, Mechetti é muito comedido na sua avaliação. Para ele: “A Filarmônica ainda é uma coleção de ótimos músicos e precisa continuar investindo em seu aprimoramento. Com o tempo é que ela estará afinada e formando sua personalidade como grupo, a partir de mais ensaios e apresentações em conjunto, experiências com solistas e maestros convidados internacionais e diversidade de repertório. Mas os seus músicos investem nisso, pois sabem que estão fazendo história, construindo um grande projeto”.

Em vários dos concertos regulares realizados no Grande Teatro do Palácio das Artes, a Filarmônica leva a Belo Horizonte grandes artistas da música sinfônica, com repertório que abrange desde obras consagradas a composições ousadas e novas para o grande público. Periodicamente, são realizadas turnês pelo interior do Estado, realizados concertos didáticos para milhares de jovens e crianças de escolas e projetos sociais e feitas apresentações em parques públicos. Outras atividades são os laboratórios de regência, conduzidos pelo maestro Fabio Mechetti todos os finais de ano, em Belo Horizonte, abrindo espaço para que jovens regentes possam ter experiência prática na área.

“Powerfull! Warm!” (poderosa e calorosa). Poucos sintetizaram tão bem o espírito da Filarmônica de Minas Gerais como o pianista americano Terrence Wilson, após sua segunda apresentação como solista convidado, no final de setembro passado. Pode-se entender, então, por que ele considerou “uma grande honra” atuar em Belo Horizonte. Exatamente por ter sido envolvido pela atmosfera calorosa e sentido o poder do talento dos músicos da orquestra mineira.

Sonhos não envelhecem


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