Nascido na Alemanha, criado em Curitiba, Frederico Füllgraf é filho de um oficial que escapou de um campo de prisioneiros de guerra da cidade russa de Tula. Füllgraf agora mora no Chile, mas já viveu na ilha grega de Creta, em Hamburgo, Paris e Lisboa. Antes, em 1969, trocou Curitiba por Berlim, por pressão da família, que queria afastá-lo dos movimentos de resistência à ditadura. Dois anos depois, foi a vez de deixar por uma temporada o curso na Universidade Livre de Berlim para viajar pelo sertão nordestino. No trajeto, atravessou uma barreira militar do cerco armado para capturar Carlos Lamarca, o capitão da guerrilha, em Brotas de Macaúbas. De volta à Europa, Füllgraf, além de cruzar mais personagens históricos, também descobriu vestígios do pai. Era um tenente da SS nazista que, detido pelos russos, foi levado para uma prisão do Exército Vermelho. Leia seu ensaio:
Do nada, um solavanco sacudiu meu cochilo.
Abri os olhos com dificuldade. Eles pesavam e ardiam.
Pela janela, divisei a esfera laranja-bordô do sol deitando-se sobre a linha do horizonte. O ônibus tinha reduzido bruscamente sua velocidade e rolava para o acostamento. Curiosos, alguns passageiros esticaram o pescoço na direção do motorista.
Mal o veículo parou, soldados armados com fuzis automáticos irromperam pela porta dianteira. O que estava no comando advertiu secamente os passageiros: “Carteiras de identidade na mão!”.
Eu estava acomodado em uma poltrona junto à janela, no meio do carro. Sem pensar duas vezes, retirei da mochila o passaporte e a credencial da universidade, encabeçada pela frase “A quem interessar possa”.
O oficial alcançou minha poltrona, estendi-lhe o passaporte. Ele estudou minha foto e olhou-me uma, duas, três vezes. Minha aparência algo surrada – cabelo mais comprido, barba com três dias, o rosto tostado pelo sol – tinha pouco a ver com aquela foto de dois anos atrás.
Devolvendo-me o documento, passeou os olhos pelas capas de relatórios do Banco do Nordeste e de História da Capoeira, esparramados displicente, mas propositadamente sobre o assento vizinho, junto com figuras em gesso de orixás de candomblé.
Sem comentários, deu meia volta sobre seus coturnos, retornando à entrada do ônibus, escoltado por seus soldados.
Talvez porque o militar gastara mais tempo comigo, quando abandonou o veículo, alguns passageiros giraram curiosos em seus assentos, fitando-me. Mas sem nenhuma expressão de cumplicidade.
Liberado, o ônibus retornou à pista e continuou sua lenta marcha rumo ao sul.
Nos assentos à minha frente, denotei o burburinho impreciso das conversas. A detenção do expresso interestadual agregara um elemento adventício à viagem.
Conferi o relógio: fazia umas três horas que nos introduzíamos no interior da Bahia.
O sangue latejava acelerado nas têmporas, a cabeça me doía. Um turbilhão de imagens da odisseia pelo sertão, imbricadas umas, outras empilhadas, jorrava por trás das pálpebras fechadas e pesadas.
A conjetura de que a barreira militar poderia estar associada aos movimentos estranhos ocorridos pela manhã em Salvador começava a ganhar corpo e não me deixava relaxar.
Com o anoitecer, o movimento na estrada parecia subitamente intensificado. Os muitos caminhões que viajavam em sentido contrário, pareciam ter abandonado seus esconderijos do sol inclemente, só retornando à pista com o frescor da noite.
Uma cena divertiu-me: em pé sobre a lona que cobria a carga de um caminhão em movimento, um solitário cão ladrava sem parar – estaria incomodado com a parafernália na pista, ou brigava com a lua cheia?
“Em dias de traição,
as paisagens são belas!”
Se me perguntarem a data exata do meu embarque naquele ônibus, eu daria uma resposta oblíqua: a julgar pela manchete do Estadão, dois dias depois, pode ter sido o dia 16 de setembro de 1971.
Quarenta e tantos anos depois, alguns amigos celebram-me como sobrevivente, mas conhecem apenas o desfecho de um episódio dramático da História do Brasil, cujos meandros me disponho a narrar sob insistência.
Encontrei na peça A Missão, do saudoso dramaturgo e amigo Heiner Müller, a parábola que cai como luva sobre os dedos da minha aventura.
Em A Missão, de Müller, dez anos após a Queda da Bastilha, o governo revolucionário, reunido no Convento dos Cordeliers, envia três emissários à Jamaica para comandar a insurreição contra o colonialismo britânico. O pelotão era constituído pelo bourgeois Debuisson, o agricultor Galloudec e Sasportas, escravo negro de Debuisson.
Ironia da operação, quando o trio de conspiradores alcança as praias da Jamaica, descobre que a revolução estava acabada: com o golpe militar de 9 de novembro de 1799, de Napoleão Bonaparte, e a implantação da ditadura, as bandeiras da liberdade, fraternidade e igualdade pendiam esfarrapadas a meio pau!
Debuisson disse então: “Nossa firma perdeu seu registro na junta comercial, ela está quebrada! Lutar por o quê, agora? Para onde com a utopia?”.
E ao contemplar as coruscantes areias brancas à sua frente, bordejadas por colunas de viçosas palmeiras rebolando fagueiras à brisa preguiçosa, como se o intimassem a delas tomar posse, Debuisson lembra-se de que ainda era proprietário de canaviais naquelas paragens – e decide abandonar a missão. Já o bretão Galloudec e o africano Sasportas respondem: “Enquanto houver senhores e escravos, temos um compromisso com nossa missão!”.
Cinquenta anos depois, quando Louis Bonaparte, sobrinho de Napoleão, liderava novo golpe militar, Karl Marx escrevia: “(Friedrich) Hegel assinalou em algum lugar que todos os grandes fatos e pessoas da História universal, por assim dizer, acontecem duas vezes. O que ele esqueceu de dizer é que na primeira vez ocorrem como tragédia, mas na segunda, como farsa vagabunda”.
São palavras do lendário texto de 1852, O 18 Brumário de Louis Bonaparte, no qual Marx esboça sua irônica teoria da História. Sua charada é: não acredite no que vê, tente sempre desvendar o embuste!
Indignado com a deserção de Debuisson, Müller o desnuda como o burguês traidor, inebriado pelas fulgurações da propriedade e do estatuto de classe – as tais “belas paisagens”.
Movendo-se em sentido contrário, em 1972, eu conheceria certo Debuisson brasileiro, Paulo Parra – aliás, Antonio Expedito Perera −, seduzido pelas belas paisagens de Paris.
Missão matrioshka
Mas o que, diabos, eu fazia na Bahia no ano de chumbo de 1971?
Uma missão de caráter supostamente acadêmico justificava a viagem. Apostando em minha determinação de embrenhar-me no sertão nordestino ao encontro de algum projeto comunitário autogestionário, meu professor na cadeira de Estudos Latino-Americanos, em Berlim, me aprovisionara com uma credencial da universidade, cujo impactante brasão prometia abrir portas inusitadas. O relatório da pesquisa valia nota e eu fiz as malas.
Antes de embarcar, conversei com meu “convento”, um punhado de ex-militantes da Ação Popular (AP), expulsos do País, alguns autoexilados e eu, recuado pela família da “linha de tiro” no Brasil.
Baseados entre Paris, Lovaina, Genebra, Colônia e Berlim, fazia coisa de um ano, nos dedicávamos a distribuir o original francês e editar a versão alemã do FBI, um boletim cujas infelizes iniciais criavam inevitável confusão com a polícia federal americana, obrigando-nos a polidas explicações aos pasmados leitores europeus, de que éramos “delegados”, sim, mas da respeitável Frente Brasileira de Informações − uma plataforma de denúncia dos crimes da ditadura civil-militar contra os Direitos Humanos, e de solidariedade com a resistência brasileira, criada em Argel pelo ex-governador de Pernambuco, Miguel Arraes.
Violeta Arraes, irmã do governador, venturosa socióloga e psicanalista, residente em Paris desde o golpe de 1964, desempenhava-se como uma espécie de “chefe do cerimonial”, atraindo simpatizantes da causa brasileira entre artistas europeus, como o cineasta Jean-Luc Godard e o célebre pintor catalão Joan Miró.
Já de Argel nos alcançara um convite para nos integrarmos à “O”, uma das organizações políticas que no exílio compunham o “Front”. Logo nos deslumbramos com a leitura de O Caminho da Vanguarda, de autoria do ignoto comandante Jamil, codinome do respeitável economista Ladislau Dowbor.
Desse modo, via FBI, em menos de um ano tínhamos embarcado na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Naqueles dias, a ditadura escrevia a História, dominava a geografia e o Brasil era um território ocupado. Desterrados pelos militares, muitos combatentes estavam decididos a retornar. Por isso, feito matrioshka − bonequinha russa no ventre de outra boneca −, a “O” pediu carona em minha viagem. Tratava-se de uma discreta missão de inteligência, por assim dizer, de “observação de paisagens”.
Contudo, ao alcançar a bela, fagueira e melodiosa Itapoã, no luzidio setembro de 1971, eu ignorava que nossa “O” também jazia por terra, seus últimos Galloudecs e Sasportas prestes a serem tragados pelo chão ensanguentado.
Ritos de passagem
Semanas mais tarde, a bordo do ônibus, enquanto observava pela janela a paciência da lua cheia com as nuvens indecisas que encafuavam sua luz flavescente, eu tentava metabolizar o susto com a barreira militar, evento que redimia minha consciência pesada pela mala feita às pressas, o abraço constrangido em meus anfitriões, a partida precipitada e a corrida para a rodoviária.
Respirei fundo: que tremenda guinada minha vida sofrera naqueles últimos três anos!
Na tela da memória, alternavam-se instantâneos da infância e da adolescência. Meus dois desterros, por exemplo. O primeiro, à tenra idade dos 7 anos, entregue por um ano e meio aos cuidados de uma família de crentes menonitas; o segundo, oito anos depois, com isolamento em um internato de elite no Rio Grande do Sul. Havia ali uma dor acumulada por constante falta de chão. Como podem um pai, uma mãe – não em sã consciência, mas com coração são – desfazer-se de um filho com 7 anos de idade por 18 meses – como? − questionei-me durante muitos anos.
Com duvidosos raptos de cultura clássica, a mãe atenuara que a “escola de Esparta” moldara seu caráter nas fileiras da BDM, a federação de moças hitleristas. Seu Guilherme desfiava o mesmo rosário: incansável prática de esportes, espírito de camaradagem, amor à pátria e obediência ao máximo guia! Virtudes da Juventude Hitlerista e escola de vida da qual seu Guilherme ainda se orgulhava 40 anos mais tarde.
Naquelas pregações, reiteradas com a soberba de uma raça superior apenas fugazmente derrotada, eu sempre me sentira um miserável underdog, um azarão do terceiro mundo.
Ao contrário do esperado, o retorno do “cativeiro gaúcho” potenciara minha inquietação: proibido de passar os finais de semana em casa, eu tinha devorado metade da biblioteca do internato. Aqueles livros, todos, pediam um desaguadouro.
Reencontrando antigos colegas de banco de escola, em suas casas descobrira que o mundo era bem mais sofisticado e belo. Embalados por Brahms, concertos barrocos e o trompete de Miles Davis, com desordenada avidez, pelos idos de 1967, líamos Hemingway, Graham Greene, Sartre, Camus e Kerouac. Vivíamos nossas primeiras experiências sexuais, com direito a tediosos mantras sobre Freud, balbuciados por um dos nossos, que perdera um olho durante a explosão de um rojão e pregava a libertação através da Teoria dos Sonhos. E o que dizer daquela risível incursão em uma favela? Cheios de sentimento de culpa social e boas intenções na véspera do Natal, saímos carregados de “presentes para os pobres” e nos embrenhamos numa favela da periferia de Curitiba − da entrada de seus barracos, os retirantes nordestinos nos miravam atônitos. Depois vieram as tardes incensadas pela insuportável catinga de baseados e sonorizadas por reiterações de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, no apartamento de Paulo Leminski, cujas pontificações autocentradas sobre a arte do judô e a literatura on the road tinham um quê de liturgia beatnik de província – ritos, todos, que naturalmente pavimentaram a passagem por novo umbral.
Em outubro de 1967, sofri meu primeiro empurrão para o outro lado: em uma banca de jornais deparei-me com o suplício crístico no rosto do Che, fuzilado na Bolívia. Recordo o ódio a seus matadores que brotara em meus poros, mas a miserável solidão estampada naquela foto calara mais fundo em mim.
Amuado no ônibus da Rio-Bahia, ora lembrava-me do bancário que fora em Curitiba, ora do operário na fábrica de amortecedores em Frankfurt. Imagens daquela noite, em 1968, imprimindo panfletos no Sindicato dos Bancários contra a ameaça do Comando de Caça aos Comunistas, o abominável CCC, de explodir o Teatro Guaíra durante um ciclo de peças de Plínio Marcos, brigavam com meu estágio na Deutsche Welle – a rádio oficial Voz da Alemanha, cuja redação brasileira abrigava divertido grupo de exilados e dissidentes da ditadura; Arthur Poerner, de O Pasquim, por exemplo. Fora da rádio, respectivamente como tradutor e fotógrafo, conheci Leandro Konder e Samuel Yavelberg, irmão de Iara − seria eu o próximo caçado e exilado?
“Se és doidão, meu filho, não percas Berlim!”
Arrancando-me da pacata Curitiba, o sorvedouro da história tragara e cuspira-me no centro do mundo!
A frase de Franz von Suppé, de 1800, não tinha perdido sua atualidade quando desembarquei na Berlim dividida pelo muro, no final de 1969.
Decidira estudar na DFFB-Academia Alemã de Cinema e TV, mas a escola tinha expulsado 18 estudantes porque emprestaram equipamento a motoqueiros espancados pela polícia, e as matrículas estavam suspensas.
Matriculei-me então na Universidade Livre de Berlim (FUB), e logo colegas arrastaram-me ao estrondoso seminário A Economia na Sociedade de Transição, de um professor que falava impecável alemão com charmoso sotaque francês. “Esse é o sucessor de Trotsky na Quarta Internacional!” − advertiu-me um deles. Envergonhado da minha ignorância, na surdina pus-me a ler textos do bolchevique e, depois, do belga, na verdade um judeu alemão, nascido em Frankfurt, cuja família se refugiara na Bélgica após a tomada do poder pelos nazistas. Era o mitológico e saudoso Ernest Mandel, que em companhia de sua esposa, Gisela, tempos depois me convidaria para jantar na Grand-Place de Bruxelas, para relatar-lhe minha peripécia baiana.
Fazia dois anos, Berlim sacudia meu torpor, conduzindo-me ao “encontro com homens notáveis”. Nas coletivas de imprensa, durante a edição de 1969 do Festival de Cinema, sentara-me frente a frente com meus ídolos: Godard, Pasolini e Buñuel em carne e osso! Agitado e verborrágico, Glauber Rocha parecia a reencarnação do bêbado Soloviev na narrativa de George I. Gurdjieff.
Em um domingo chuvoso, conhecera um colombiano que na sala do poeta Hans Magnus Enzensberger ensaiava passos ébrios, não ao som de uma salsa caribenha, mas da inusitada faixa (I Can’t Get No) Satisfaction. “Es un gusto!” Apresentou-se: “Gabriel García Márquez!”. Que ninguém duvide, era ele mesmo, o autor de Cem Anos de Solidão, que recolocou os fones nos ouvidos e voltou a dançar sozinho. Na copa, ao lado da sala, o dono da casa apresentou-me a um senhor afável e rechonchudo. Repousando em sua poltrona feito um Buda maia, saudou-me: “Miguel Asturias, encantado!”. “Prêmio Nobel de Literatura!”, Enzensberger cochichou no meu ouvido, que tiniu como se tivesse levado um tapa. Assistindo de camarote à divertida cena, mas feito estranho no ninho, porque mal falava o castelhano e, por isso, principal motivo da minha convocação como intérprete ao seleto grupo, estava o único brasileiro naquela delegação de escritores latino-americanos em turnê de leituras, após sua participação na Feira do Livro de Frankfurt: Eduardo Portella, editor da revista Tempo Brasileiro.
Eu não cabia em mim de deslumbramento, mas também de vergonha, não me sentia digno da companhia daqueles luminares.
Era outubro de 1970, e no carro que, noite alta, nos transportara da casa do poeta para uma esticada à mansão de Atze Brauner, produtor de cinema, Enzensberger, García Márquez e o chileno Jorge Edwards especulavam sobre os desígnios do Chile, após a vitória nas urnas de Salvador Allende.
Gurdjieff chamava de “lembrança de si” o método de desenvolvimento da autoconsciência. Somado, aquilo tudo tinha um quê de chamamento.
Trincheiras opostas
Em estado de semivigília, os pneus do ônibus uivando sobre o asfalto, a lembrança devolveu-me a viagem feita pela Régis Bittencourt, rumo ao Espírito Santo, em companhia de seu Guilherme. Uma longa travessia de Curitiba a Vitória, em embaraçoso silêncio.
Era véspera do carnaval de 1969. Fazia duas semanas apenas, um certo capitão, campeão de tiro do Exército, desertara com três subalternos do 4º Regimento de Infantaria de Quitaúna, bandeando-se para a clandestinidade. Seria aquele o motivo da inusitada profusão de veículos militares nas estradas?
Pensada em voz alta, a pergunta teria desencadeado uma discussão. Creio lembrar que, faltando tão pouco para minha partida, ambos nos esforçávamos para preservar a paz. No fundo, nos sentíamos aliviados, sem admiti-lo. Seu Guilherme porque me retirava da linha de tiro, e eu porque me livraria das pressões familiares e do desconforto de não saber para onde ir.
Contudo, enquanto rodávamos pela BR-101, à esquerda e à direita flanqueada por fazendas a perder de vista, nas quais pastavam alguns bois pingados, seu Guilherme surpreendeu-me: “Aquele Lamarca tem toda razão, esses latifundiários merecem mesmo ser esgoelados, são uma vergonha impensável na Europa!”.
Tive de rir. A frase não fora um afago na minha ideologia em construção, mas a reafirmação do credo luterano na marcha triunfal da pequena propriedade. Por instantes, ela prometia acender alguma chama de reaproximação, mas teve a duração de um fogo fátuo, porque logo o silêncio voltara a se instalar.
A tal “linha de tiro” fora meu lento, gradual e persistente deslizamento para a trincheira da resistência. Militante do MEL − Movimento Estudantil Livre, a banda secundarista da UNE clandestina, minha iminente prisão eram dias contados nos dedos.
Surpreendido pelo Maio de 1968, durante uma viagem à Alemanha, no dia de seu retorno, seu Guilherme ameaçara deserdar-me, caso eu insistisse em candidatar-me à ECA da USP. “Outro antro de comunistas!”, rosnou, e propôs um acordo: me pagaria uma passagem à Europa, e eu deixaria de lhe causar problemas.
A longa marcha
Desde minha tenra infância, seu Guilherme era um personagem ausente. Quando não viajava, escondia-se impenetrável atrás de seus jornais.
Em seu escritório, uma litogravura costumava infundir-me desconcerto. Nela, um soldado alemão carregava nas costas um companheiro ferido, imerso em paisagem desoladora. A gravura insinuava uma longa marcha, uma indecifrável fuga da União Soviética à Alemanha, sobre a qual seu Guilherme não conversava, mas em cujo heroísmo se espelhava.
Em casa, enigmáticas relíquias recordavam batalhas, entre as que me cativara uma estrela vermelha, forjada em metal e munida de um alfinete. Ela exibia uma estampa hieroglífica para meus 5 anos de idade: uma foice cruzada por um martelo. Achei o look do broche tão fascinante que o prendi a um enorme chapéu de palha com jeitão de sombrero de mariachi, usado por minha mãe quando estendia roupas no varal, e saí à rua, montado em um patinete, mas nu em pelo.
Recordações brumosas me devolvem a imagem do guarda de trânsito que, espantado com meu figurino, minutos depois me tomara pela mão, devolvendo-me à família. Após aquele incidente, junto com outras medalhas, que na parede do escritório costumavam espetar a bandeira tricolor do Kaiser, a estrela vermelha fora banida para uma caixa vazia de charutos Suerdieck. Lembro, como se fosse ontem, seu Guilherme berrar, escandalizado: “Quer ser preso?!”.
Treze anos depois, eu corria risco de prisão.
Por isso, naquela véspera de carnaval, no porto de Tubarão, em Vitória, com minha mala no braço, escalei o quebra-peito para o grande navio carregado de minérios. Quando o barco desprendeu-se do mole, pondo-se em movimento, do convés acenei para seu Willy, parado no cais, chupando seu cachimbo. Acenei-lhe até sua estatura reduzir-se à cabeça de um alfinete. Chorei muito, mas precisava daquele zoom de afastamento.
Começava minha própria longa marcha.
A pequena morte
Reduzindo bruscamente a velocidade, novo tranco do ônibus saracoteou minhas lembranças.
Pela janela, divisei uma barreira de tambores de piche, que ardiam como tochas − e mais uma vez o veículo rolou para o acostamento. Recortados pelas chamas, numa capoeira alta, atrás do acostamento, bruxuleavam veículos militares camuflados.
A porta do coletivo abriu-se e por ela irrompeu um oficial, que pareceu ignorar os passageiros das primeiras filas. Com um pé no corredor, olhou para o fundo do coletivo, desembestando em minha direção.
Tentando disfarçar a respiração ofegante, aguardei sua aproximação.
Com uma lanterna de mão, o militar perscrutou o documento, estudou minha fisionomia e quando passeou os olhos pela bagagem de mão, esparramada, pensei: “Fim da linha, me pegaram!”.
Gesto inesperado, o sujeito me devolveu o passaporte, retornou à entrada do ônibus e baixou os degraus, dizendo: “Não é o indivíduo que procuramos!”. Subserviente, o motorista respondeu: “À vontade, quando precisar, estamos às ordens!”.
Alguns passageiros pediram para esticar as pernas e tirar água do joelho. No acostamento, com a duração de um cigarro, pipocaram alguns diálogos. Perguntei a um homem de meia-idade o significado das barreiras, e ele retrucou com má vontade: “Diz que tem terrorista à solta por aí, né…”.
Quando reembarcamos, o motorista fitou-me com um sorriso velhaco.
Instantes depois, os faróis do ônibus clareavam uma placa com letras fosforescentes: “Vitória da Conquista, 5 km”. Conferi o relógio: fazia sete horas que rodávamos no asfalto.
De volta ao meu assento, senti que tinha morrido. Uma morte condicional, como na parábola de Os Dados Estão Lançados, de Jean-Paul Sartre. Após ser fuzilado e deambular pelo mundo dos mortos, ao herói Pierre Dumaine é concedida uma segunda oportunidade: retornar ao mundo dos vivos, mas sob a condição de que, na sobrevida obsequiosa, não repetisse sua primeira estada entre os mortais. Um desafio do livre arbítrio ao qual Dumaine sucumbirá – esse era meu terror!
A mulher do Mercado Modelo
O sangue martelava nas têmporas. Dúvidas me assaltavam. Tentei colocar ordem nos pensamentos, precisava juntar alguns cabos soltos.
Vagarosamente, uma agradável sensação de gratidão começava a inundar-me. Gratidão pelo sexto sentido que me alertara à estranha movimentação em Salvador e obrigara a embarcar naquele ônibus. Mas agradecimento também àquela mulher, que na noite anterior me salvara de uma grande encrenca.
Quarenta anos depois, com a ajuda de um amigo, creio tê-la reencontrado no Facebook. Não me lembrava mais de seu nome, justificando o esquecimento com a inutilidade de recordá-lo, pois certamente usara um nome de guerra. Mas contra essa desculpa barata, resistiu a lembrança do que tínhamos dividido. E aquilo tinha um nome – um nome belo.
Em setembro de 1971, fora apresentado a ela durante um pantagruélico almoço nos fundos do Mercado Modelo, regado a muita cachaça e embalado por sambas de Camafeu de Oxóssi, para o qual me convidara João, filho de Jorge Amado.
O sol se escondendo atrás da Cidade Alta, ela sugeriu que fôssemos a seu apartamento. Aceitar o convite fora um gesto descabeçado, matutei enquanto ela rodava a chave na fechadura. Já na sala, quando começou a narrar sua vida − aquele ano inteiro de solidão e recato –, consegui medir o profundo poço de seu desejo acumulado e reprimido.
Mas, então, uma revelação despertou-nos da embriaguez: o companheiro dela estava preso. Lembro ter prendido o fôlego e, de esguelha, estudado o primeiro atalho para a porta da saída. E se a bela fosse uma Mata Hari da repressão? Pensando melhor, ponderei: maldita ditadura que nos tornara tão desconfiados! Espantada a paranoia, ousamos conversar sobre o que no País se falava para o lado ou aos sussurros. Respeitamos nossos segredos, ela não soube o verdadeiro motivo de minha passagem pela Bahia. Porém, admito que, enquanto ela dormia, mantive um olho semiaberto, vigilante.
A viagem ao sertão
Em plena madrugada, despedi-me dela para tomar o trem a Juazeiro. O destino lhe soou extravagante, e estava coberta de razão, mas justifiquei a extravagância como missão científica; palavras que tocaram como pedras de gelo seu corpo quente.
Às cinco da manhã, na Estação da Calçada, com pernas bambas, deixei-me cair transnoitado sobre o assento de madeira limado e encardido. O vagão de terceira classe era remanescente da Compagnie des Chemins de Fer Fédéraux de l’Est Brésilien, cujo primeiro trecho datava de 1880, época das desvairadas pregações de Antonio Conselheiro pelo sertão baiano.
E foi minha viagem de expiação de pecados, mas também o rito batismal de meu genuíno abrasileiramento.
Quarenta anos e muitos livros depois, encontrei em Los Trenes se van al Purgatorio, do chileno Hernán Letelier, uma narrativa de imprevista semelhança com minha travessia da rude paisagem nordestina.
No romance chileno, durante quatro dias e quatro noites, seu protagonista Lorenzo Anabalón convive com personagens e incidentes insólitos, imerso no silêncio estelar do Atacama, “o deserto mais triste do mundo”.
Minha travessia do recôncavo até a caatinga durou apenas 15 horas dilatadas, mas com sabor de eternidade.
Imprensado no banco de madeira, tinha por vizinha uma anciã desdentada e maternal que, interrompendo longos intervalos de silêncio, me oferecia punhados de farinha seca ou nacos de rapadura, só em uma das cinco vezes aceitos, para não ofendê-la.
Contadas poucas paradas, o vagão atulhou-se de gentes morenas e falas guturais, que eu só conseguia adivinhar. No corredor apinhado de sacos de estopa com conteúdos indistintos, malas estropiadas e gaiolas com galinhas, espremiam-se e tropeçavam famílias com crianças, velhos e homens solteiros.
Intercalando seus longos intervalos esfíngicos, a velha a meu lado fazia o sinal da cruz em seu peito e murmurava: “Oh, Nosso Senhor do Bonfim, tende piedade de nós!”.
Lorenzo Anabalón conhecera uma pitonisa com dentes podres e hálito fétido, que lhe prenunciara a má sorte nos assuntos do amor. Do hálito da velha não lembro, mas do banheiro entupido sob sol escaldante emanavam pestilências que, abraçadas pelo aroma perfumado de uma enorme jaca esquartejada por um grupo de homens acocorados na plataforma entre os vagões, são reminiscências indeléveis do meu olfato.
Ali, na plataforma e, perseguindo-me teimosamente até meu assento, dois sujeitos com estampa de vigaristas, vaticinando que eu fosse um americano otário, perdido naquelas terras sem lei, insistiam em chamar-me de mister, tentando vender-me “umas pedras preciosas”.
O cerco
Dez dias mais tarde, bati à porta da mulher do Mercado Modelo. Com a mão esquerda às costas, eu escondia uma escultura de barro de Mestre Vitalino, trazida de presente. Ela recebeu-me com o rosto crispado. Minha aventura estava na ponta da língua, eu queria narrar-lhe meu deslumbramento com o São Francisco; a visita ao oásis de Bebedouro, onde vicejavam frutas bíblicas; as conversas com os ceramistas de Caruaru e dos dias alegres na companhia dos padres do Mosteiro de São Bento, em Olinda, aos que levara uma saudação da longínqua Europa em nome de Jan Honoré, o Padre Talpe, preso no início de 1969, acusado de subversão em fábricas de Osasco e finalmente expulso do País.
Mal devolvendo o abraço, ela arrastou-me à sala. Afastando ligeiramente a cortina da janela para a rua, apontou-me o carro estacionado na esquina contígua e disse-me: “Estão vigiando meu apartamento. Vá embora antes que seja tarde!”.
Com um beijo partido, fiz o que ela me pediu e nunca mais voltei a vê-la.
Na manhã do dia seguinte, os sinais de um inexplicável cerco se intensificaram. Bebendo café na Cidade Baixa, notei um sujeito à paisana, perscrutando a esquina e falando por rádio transmissor. Paguei o café e saí caminhando. À distância, ouvi sirenes e acelerei o passo. Recuei diante de uma perua militar em disparada, que desapareceu no labirinto urbano. Junto à calçada oposta, dentro de outra perua, homens com óculos escuros vigiavam a rua, seu motorista também falava pelo rádio.
Não pensei duas vezes. Corri até a casa dos meus anfitriões, fiz minha mala, desculpando-me pela despedida inesperada.
Lamarca, ou Filoctetes
em Macaúbas
Dois dias depois − deveria ser 18 de setembro de 1971 −, ao saltar do ônibus, na rodoviária de São Paulo, fui abraçado pelo irmão de um amigo, residente em Berlim. Contei-lhe da extenuante viagem, interrompida por tropas do Exército. Puxando-me para um canto, ele abriu o jornal que trazia debaixo do braço. A manchete dizia: “Terrorista Carlos Lamarca morto na Bahia”.
Fazia uma manhã primaveril às margens do Tietê, mas eu tremi como se me protegesse das nevadas em Berlim.
Quem, diabos, naquele trem, poderia imaginar que, a sudoeste da ferrovia, em Brotas de Macaúbas, o capitão caçado por todo o Exército do País, obrigava-se a noites ao relento, fitando o Cruzeiro do Sul, escrevendo cartas de amor à luz de uma lamparina, e sonhando com seu exército camponês de libertação?
Mais uma vez assaltou-me aquela miserável solidão estampada na foto do Che, fuzilado em La Higuera: com o corpo esquálido, crivado de balas, Lamarca parecia tão solitário como Filoctetes abandonado por Odisseu, apodrecendo na ilha de Lemnos.
Seria aquela solidão uma cruel metáfora da equivocada tática do foco?
A ditadura fazia fotomontagens, criava encenações, mas que história era aquela de MR-8, por acaso “Cirilo” não era comandante da nossa VPR? Por que a “O” não me informara? Anos depois, entendi que Lamarca estava na Bahia exatamente porque se insurgira contra o foco isolacionista. Que, apesar disso, ele e Iara tenham sido encurralados, deveu-se à irresponsabilidade de um militante carioca que está vivo, tem nome e endereço. Eu não trocaria a minha por sua pele, deve ser doloroso expiar essa culpa.
Ali, na plataforma da rodoviária, soletrei o enredo kafkiano: tivesse sido preso, teriam acabado comigo, pois o objetivo da “observação das paisagens” visava a incursões furtivas de alguns banidos no território.
Que desatino: eu, sem querer, no olho do furacão! De todo o modo, a viagem à Bahia fora escolha minha e a expiação do susto também o seria.
Atônito, o amigo, que não era nenhum militante clandestino, observava minha expressão crispada e não entendia nada.
Dias depois, no Sul, fiz as malas e saí à francesa.
Alcançado o Galeão, nova provação me aguardava: o mesmo braço que me protegera, primeiro em Salvador, em seguida, naquele abominável ônibus para São Paulo, guiava agora a mão do policial, ao carimbar o visto de saída. Eu estava liberado para o embarque, mas aqueles instantes tiveram a duração de nova eternidade.
Solilóquio na poltrona do avião: existem mesmo anjos da guarda?
“Nosso homem em Paris”
Semanas depois, a notícia ruim alcançou-me em Berlim: com longa epístola acusatória, seu Guilherme informava a prisão de Pedrinho, meu anfitrião em Salvador. Graças a seu pai, que conhecia um coronel na maçonaria, fora liberado. Pobre Pedrinho, logo ele que apenas gostava de jogar futebol de praia e, politicamente falando, era um completo alienado! Tinham-no “interrogado duramente” a meu respeito, foi o eufemismo empregado por seu Guilherme, que fechava sua missiva advertindo: “Seu nome está na lista negra, tão logo você não vai poder voltar!”.
Algum registro atrasado do meu nome na lista dos procurados, explicava por que eu escapara ileso? Impossível que tivessem ventilado a “missão matrioshka”. Restava, então, a hipótese da brutal coincidência: minha viagem pelo sertão e a presença em Salvador durante o cerco a Lamarca.
Meses mais tarde, fui chamado a Paris. Antonio Expedito Perera − um dos 70 presos políticos trocados, em janeiro de 1971, pelo embaixador suíço Giovanni Bucher −, naqueles dias “nosso homem em Paris”, queria falar comigo.
Recebeu-me em um apartamento localizado no elegante 16e, insinuando que o imóvel pertencia à sua namorada, Danda Prado, filha do eminente Caio Prado Júnior. Tive muita curiosidade em conhecê-la, mas ela não estava em casa, e era melhor não misturar as coisas.
Fumando um habano dos caros, pois Cohiba não era, e esbanjando largueza, Expedito advertiu-me que naquela noite seríamos convidados de uma recepção na embaixada de Cuba. Abrindo um guarda-roupa que exibia pelo menos vinte ternos do mais fino acabamento, disse: “Sirva-se!”.
À tarde, nosso homem queria surpreender-me com “uma celebridade”, como enfatizou, soberbo. E, de fato, sentada em um banco do Jardim de Luxemburgo, mirando de esguelha por cima das páginas do Le Monde, que escondiam seu rosto, estava Norma Bengell. Por mais que me esforce, não me lembro do que foi dito naquele breve encontro, mas o objetivo de Expedito era a sedução: mostrar-nos que a VPR era uma “organização de elite”.
Em um piscar de olhos dos prestidigitadores, nosso homem mudara os planos: a tal recepção na embaixada cubana foi cancelada sem explicações. Já na noite seguinte, surpreendeu-me com a apoteose, apresentando-me ao lendário sargento Onofre Pinto.
Guardo em minhas retinas seu sorriso tremeluzindo no centro do rosto moreno e nas sombras do anoitecer. Tinha um traço de ingenuidade, que se ampliou quando nosso homem esbanjou farofa, elogiando-me como “o grande sobrevivente do cerco”.
Mas não desfez minha indignação com a péssima comunicação nas instâncias da VPR. Na Europa, não tínhamos conhecimento do emblemático comunicado de Lamarca, de 22 de março de 1971, solicitando seu desligamento do comando da organização.
Eu queria saber o motivo de sua transferência para o MR-8, contudo, o que lembro com a certeza do meu sexto sentido, é que Expedito era um desconversador. Mitômano em grau extremo, fanfarroneou diante de mim e Onofre: “Somos a maior organização guerrilheira do País, temos quinhentos combatentes em armas!”.
Escrevíamos a primavera de 1972, e o que me pergunto, 40 anos depois, é o que Onofre deverá ter pensado naquele momento.
Será que não conhecia ainda o balanço da VPR, sobretudo o dramático apelo de 7 de agosto de 1971 emitido pelos sobreviventes na clandestinidade? Seu pedido de socorro dizia: “(…) Sem dinheiro, certamente não sobrará um único remanescente no Brasil. Esperamos, com urgência, a colaboração dos companheiros”.
Foi a última vez que me encontrei com Expedito Perera.
Desfecho esdrúxulo, tempos depois, “nosso homem” desapareceu, mergulhando na clandestinidade. Submergir no exílio, pensei, é atitude tão fantasmagórica como apagar a própria sombra.
Os “cachorros”
Deslumbrado com as “belas paisagens” de Paris (mulheres, bons tragos, comida e roupas caras), feito o traidor Debuisson na Jamaica, Expedito Perera retornara ao colo de sua classe de origem.
Talvez fosse 1975, quando seu nome cintilou como notícia de jornal: ora era visto na Suécia, ora no Oriente Médio, mas também na Líbia. As referências indicavam que o brasileiro se bandeara para o “terrorismo sem causa” do venezuelano Ilich Ramírez Sánchez, o mata-sete Carlos Chacal. À mera alusão a esse nome, os militantes exilados fugiam da VPR como o diabo da cruz; há quem diga que ali a cruz e o diabo inverteram seus papéis.
Adesista de primeira hora ao golpe de 1964 − depois, advogado bem-sucedido e defensor de presos políticos em São Paulo, anfitrião de Carlos Lamarca na clandestinidade e, finalmente, preso político no grupo trocado pelo embaixador suíço −, chegou a levantar suspeitas de que fosse um “cachorro”, como a repressão apodava os militantes dobrados na tortura e infiltrados como agentes em suas próprias fileiras.
Quarenta anos depois, o depoimento à Comissão Nacional da Verdade, do coronel da reserva Paulo Malhães continha uma acachapante informação: a criação em série de “cachorros” fora o principal motivo de derrota da esquerda armada.
Vagamente, recordo que o médico goiano e amigo Otto Brockes, que conheci na Alemanha como sobrevivente do golpe no Chile, advertira que, por momentos, até Onofre Pinto fora evitado pelos exilados, porque hesitava em afastar-se do “anjo da morte” Cabo Anselmo.
Nunca encontrei palavras para a repulsa que a personalidade canalha do Cabo Anselmo cravara em minha percepção. Sua monstruosidade supera o cast dos desonrados que compõem a narrativa da História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges. Bandidos, cujos atos são repulsivos, mas todos contextualizados por atenuantes. Lazarus Morrell traficava escravos negros, para depois vendê-los e até matá-los – sem dúvida, um patife vil, sem direito à absolvição. Podemos inferir que cometeu crime de lesa-humanidade, mas seus atos não foram “personalizados”, pois não compartilhava a intimidade de suas vítimas. Já ao entregar a própria namorada − a militante paraguaia, Soledad Barret − ao delegado Fleury, e 40 anos depois, em entrevistas à TV, justificar, sem remorso algum, o ato infame como “serviço prestado à pátria”, Anselmo atestou seu caráter mais vil e repugnante, traindo não apenas a confiança de seus companheiros, mas vilipendiando o elo sagrado do amor.
Psicopatas autocentrados, como o “cachorro” Anselmo e seus domadores, jamais travaram acertos de contas consigo mesmo. Réplicas caboclas dos Einsatzkommandos da SS nas campanhas de extermínio nazistas, justificaram o mal como banalidade, porque psicopatas não sentem.
Que Anselmo não tenha sido justiçado pela própria esquerda armada, é um mistério a desvendar. Talvez, deva ser concebido como encarnação maldita, um zumbi dos filmes B hollywoodianos, vagando entre vivos e mortos na catacumba sob a linha de algum metrô, condenado à eterna maldição dos predadores.
A lista dos infiltrados na VPR é arrepiante, e os “cachorros” mais célebres, como Gilberto Faria Lima, o Zorro, ou Alberi Vieira dos Santos, compartem com Anselmo a maldição dos mortos-vivos: Alberi, executado e mutilado, em 1979, em uma operação de queima de arquivo; e o Zorro, dado como morto desde 1972, foi personagem de “aparições” inusitadas, na França e no Brasil.
O guerrilheiro submergido
Onofre Pinto foi o último comandante vitimado pelos “cachorros”. Com um punhado de obstinados, em 1974 decide continuar a “missão”, cruzando a fronteira entre a Argentina e o Brasil, mas caindo nas garras do agente do CIEx, Paulo Malhães.
Custou-me anos entender seu inexplicável desaparecimento, e foram as penosas investigações de Aluizio Palmar − amigo de Foz do Iguaçu e ex-militante da VPR – que me confrontaram com a hipótese medonha: Onofre jaz no fundo do lago da hidrelétrica de Itaipu? Há quem afirme que foi assassinado com uma injeção de Shelltox (inseticida) em suas veias. Bestialidade característica do script dos torturadores da época, teve o ventre rasgado, uma caixa de câmbio de um jipe enfiada entre suas vísceras e seu corpo lançado ao Rio São Francisco Falso, afluente do Paraná, no município de Santa Helena.
Alertado não poucas vezes sobre a infiltração de Anselmo, Onofre não aceitara as evidências. Apenas em janeiro de 1973, após o Massacre da Chácara São Bento, em Recife – prisão, tortura e fuzilamento pelo delegado Fleury, de seis militantes da VPR delatados por Anselmo, entre os quais estava Soledad Barret –, é que finalmente cai a ficha de Onofre, inconformado com a confiança traída.
Humano, demasiadamente humano, sujeito a erro, como todos nós, durante seu retorno clandestino ao Brasil, Onofre comete fatal equívoco ao depositar sua vida nas mãos do facínora Alberi Vieira dos Santos, que o atrai para a emboscada no Parque do Iguaçu.
Há encontros e desencontros insólitos em nossas vidas. Uma parte de mim recorda Onofre sorrindo-me e despedindo-se ao crepúsculo de uma tarde primaveril em Paris, outra o supõe prostrado no lodaçal, debaixo do mar de Itaipu.
Eis uma coincidência: em 1983, como diretor do documentário Expropriado, eu acompanhava a submersão de centenas de pequenas propriedades rurais em Santa Helena, no Paraná, pelo lago da hidrelétrica de Itaipu. Se naqueles momentos (quando as copas das árvores engolfadas pelas águas arremetiam seus galhos nus ao céu, como fossem braços de náufragos desesperados, implorando socorro) alguém me dissesse que Onofre Pinto jazia junto às suas raízes, teria desatado um grito de pavor. Hoje, no lugar do grito, no peito habita um nó.
Como não ser tocado pelo silêncio perturbador e a vertigem, ao abrir uma página escondida do livro de história? Como acender uma lâmpada sobre essa página e não sentir o bafo escalofriante de água, escuridão e eternidade que engolfaram Onofre Pinto e movem as turbinas que geram essa luz?
Segundo a particular e irônica ontologia de Heiner Müller, é um equívoco supor que os mortos estejam mortos.
Entre bétulas e baraúnas
Quarenta anos depois do cerco na Bahia, vejo no YouTube o filme Lamarca. Tinha desprezado sua estreia, vinte anos atrás; temia que me causasse desconcerto. Agora, devo reconhecer a sensibilidade de Sérgio Rezende, seu diretor, mas antes dele, a laboriosa pesquisa, fiel à história, de Emiliano José – deputado federal, ex-preso político, ilustre jornalista e escritor baiano, coautor com Oldack Miranda do livro que inspirou o filme – de quem me tornei amigo.
Uma imagem emblemática no filme sacudiu minha própria história por um viés insuspeitado: esturricado pelo sol e surrado pela areia, os caçadores de Lamarca encontraram no caminho um exemplar de Guerra e Paz.
Perdido durante a perseguição, o sempiterno romance de Leon Tolstói foi o último livro de cabeceira do comandante encurralado. Imagino que o consultava sob uma perspectiva algo bíblica, extraindo da narrativa sobre a devastação dos exércitos de Napoleão na Rússia, lições para sua própria insurreição. Por vezes, frases, como “O poder é a soma total das vontades da massa, transferidas expressa ou taticamente aos dirigentes escolhidos pela massa”, alentavam seu otimismo, subitamente entrevado pela advertência do escritor russo: “Todas as coisas terminam em morte – tudo. A morte é terrível”. Talvez, o livro estivesse aberto na página, onde o guerrilheiro subnutrido, fragilizado e desalentado encontrara o último consolo de Tolstói: “Um homem empreendendo uma caminhada de mil léguas, deve esquecer seu objetivo e dizer a si mesmo, todas as manhãs ‘Hoje vou caminhar vinte e cinco léguas e então descansar e dormir’”.
Dormindo, o tronco de uma baraúna servindo-lhe de derradeiro amparo, foi como seus caçadores o encontraram em uma clareira de Pintada, e o metralharam.
Trinta anos antes, depois de fazer 600 mil prisioneiros em Kiev e Charkov, durante o tenebroso inverno de 1941, o general Heinz Guderian alcançava uma chácara na periferia da cidade russa de Tula, na qual instalou seu comando. A chácara chamava-se Yasnaya Polyana, literalmente: “Clareira limpa”.
Segundo os estrategistas da Wehrmacht, Tula era o último obstáculo a vencer para a conquista de Moscou, 200 km a noroeste. Mas Guderian não tinha os panzer que precisava, nem munição, e seus soldados estavam famintos e enregelados. Quando os alemães se aproximavam da porteira, viram escapar os últimos moradores, carregados com móveis, quadros e objetos de arte. Guderian sabia por que e ameaçou seus homens com severa punição para impedir a derrubada de galpões e casebres, cujo madeirame pretendiam queimar, para aliviar o choque térmico dos – 30 oC. Tudo ali tinha de ser preservado, ordenou o general que impedira o fuzilamento de judeus durante o levante do gueto de Varsóvia – aquela era a casa do grande Leon Tolstói!
Propriedade de seus antepassados, depois de cumprir o serviço militar, o escritor mudara-se para uma das casas de Polyana em 1856, onde Sofja Andrejewna Behrs, sua esposa, juntara-se a ele, em 1862.
Ali, nos fundos da alameda de bétulas, esbeltas árvores com vinte e tantos metros de altura, que os antigos chamavam de árvores da sabedoria e cujas folhas dentadas, feito coração de bordas esgarçadas pelo vento, ofereciam chás e unguentos curativos, entre 1862 e 1869, Tolstói escrevera Guerra e Paz.
Muitos anos antes de sua morte, ocorrida em 1910, Leon advertira sua família que desejava ser sepultado na pequena clareira aos pés do Bosque da Velha Ordem, como chamavam as árvores centenárias já protegidas por seu avô contra derrubadas. Nicolau, o irmão mais velho de Leon, batizara aquela clareira de “parede verde”, jurando que, a pessoa que encontrasse aquele recanto, jamais cairia doente, tornando-se imortal.
De Pintada a Tula: longa caminhada às origens
Adolf Hitler prometera a seus súditos um “império de mil anos” − em 12 anos ele ruiu. Metade desse tempo, os anos mais preciosos de sua vida, seu Guilherme guerreou as batalhas do Führer e as sobreviveu milagrosamente. Cinco anos após a carnificina, abandonou sua pátria em ruínas, apostando em uma vida nova no trópico brasileiro.
Em 1977, meu pai agonizava em um hospital de Curitiba. Viajei para o Brasil. Temendo ser preso no desembarque, com a amiga Márcia de Almeida (filha do memorável e saudoso jornalista Newton Rodrigues) montei um operativo de emergência, discretamente monitorado no Galeão pelo eminente jurista Modesto da Silveira.
Com Modesto, dois anjos da guarda escoltavam-me: na hora da consulta ao novíssimo IBM, recém-instalado no Galeão, a engenhoca travou! O policial praguejou e, preenchendo à mão o trâmite da emigração, carimbou-me o passaporte com bofes de quem diz: “Vá caindo fora antes que eu me arrependa!”.
Homem de constituição robusta, o corpo de seu Guilherme estava definhado, devastado pelo câncer. Saudou-me com um abraço e demorado sorriso. Não se surpreendeu com minha súbita visita, pareceu ter ansiado por ela, talvez quisesse despedir-se de forma digna. Ao cabo de cinco dias, deu seu último suspiro.
Semanas afora, me perseguiria o solilóquio iniciado durante o voo noturno e insone: “Que legado me deixas, pai?”.
Entretanto, na tarde após seu sepultamento, minha mãe estendeu-me algumas folhas de papel, presas por um clip: “É para você, pode ficar!”, disse-me sem mais comentário.
Datada em 29 de abril de 1948, tratava-se da sentença, datilografada e fartamente rasurada por correções, do Juizado de Des-Nazificação da cidade de Kassel. O Tribunal de Nuremberg me dizia muita coisa, mas tive de pesquisar e ser advertido que, instalados pelos aliados, a partir de 1946, aqueles juizados tinham a função de apurar as responsabilidades políticas de todos os alemães envolvidos com o nazismo, sobretudo os filiados ao partido NSDAP.
Julgado como “menos comprometido”, porque estava provado que não se envolvera em atrocidades, seu Guilherme fora condenado a seis meses de trabalhos comunitários, uma multa de 500 marcos e à assistência obrigatória de um “curso de reabilitação democrática”. Na justificativa exposta, a sentença fazia referências para mim desconcertantes: a de que seu Guilherme não fora apenas soldado raso, mas tenente da SS e membro do NSDAP; que sua avó materna fora judia, e que essa circunstância, revelada por seu pai durante uma licença do front, em 1943, primeiro, lhe infundira vergonha, em seguida, espírito de revolta, com punições de seus superiores.
Um descendente de judeus na SS? Probabilidade insólita, a pergunta não calou durante muitas décadas.
Desgraçadamente, durante minha mudança de retorno ao Brasil, o precioso documento, do qual não tinha feito fotocópia, se perdeu.
Trinta e três anos mais tarde, quando fui convidado a escrever um romance sobre a saga familiar, imaginei se em algum arquivo oficial alemão não haveria alguma cópia da sentença perdida. Diversas buscas falharam, até que, em 10 de janeiro de 2009, os Arquivos Centrais do Estado, em Wiesbaden, surpreenderam-me: “(…) No caso do documento que o senhor procura, presumo tratar-se não apenas da sentença emitida em 27/04/1948, mas também das atas da sessão do julgamento, totalizando 16 páginas”, escreveu-me o doutor Dieter Degreif.
Providenciado o atestado de óbito de seu Guilherme, sem o qual, segundo a lei, sua biografia estaria protegida por cem anos, dois dias depois, Degreif remetia-me as atas completas.
Para meu completo assombro, então desvelou-se o mistério: como combatente da Fortaleza de Breslau, seu Guilherme caíra preso em 7 de maio de 1945, de lá conduzido pelo Exército Vermelho a um campo russo de prisioneiros de guerra, na Tula de Tolstói!
Seu segredo de vida não revelado em tribunal, nem à família, mas levado ao túmulo, foi sua fuga de Tula, na madrugada de 1º de janeiro de 1946; o termômetro congelado na marca dos 30 ºC negativos.
Estou firmemente convencido de que em sua caminhada furtiva através das linhas soviéticas − que durou dez meses, mas da qual jamais se saberá, se passou pelos arredores de Minsk, ao norte, ou de Kiev, ao sul −, protegeram-no alguns fragmentos do linguajar russo e um casacão soviético usurpado, em cuja lapela luzia uma estrela vermelha, a tal estrela que alfinetei no chapéu de mariachi!
Quantos russos morreram para que seu Guilherme conseguisse sobreviver? Como viver em paz, sem retornar a essa guerra?
Generosa, minha editora presenteou-me com um contrato para escrever uma telemaquia (quatro cantos da Odisseia, de Homero), mas estou atrasado com a entrega dos originais, sempre reescritos. Não que pretenda me desculpar, apontando para Tolstói, que precisou de sete anos para escrever Guerra e Paz. Muito pelo contrário, não foram poucas as vezes em que me senti perdido e desejei bebericar um chá de bétulas com o Mestre, perguntando-lhe com o trocadilho, em qual senda se embrenharia do sertão baiano para encontrar O Caminho de Tula, assim o título provisório da narrativa.
Paz em Brotas
Na internet, aprecio um vídeo gravado em Brotas de Macaúbas, em 17 de setembro de 2011.
Ladeado pelo então prefeito, Litercílio Júnior, Olderico Barreto – irmão de Zequinha Barreto, o último fiel escudeiro de Carlos Lamarca – fala ao povo, na praça central, no aniversário do assassinato de seus familiares e do solitário comandante.
Com emocionante depoimento, lembra a seca e a fome de 40 anos atrás. Pontua as privações de Lamarca em seu precário esconderijo nas quebradas de Brotas, sua impaciência para estabelecer contato com os camponeses da região, sua humildade para juntar-se ao pilão e produzir farinha – atitudes, todas, generosas, mas derradeiras.
Finalmente, Olderico, ele mesmo barbaramente torturado pelo delegado Fleury e seus sicários, faz a defesa da memória e da verdade histórica. Diz: “Vamos trabalhar por um mundo melhor, e jamais voltarão esses grupos que assassinam seus adversários”.
O povo aplaude! E eu não me sinto mais sozinho.
“Ficaremos aguardando a confirmação de sua visita à Brotas”, escreve-me Litercílio.
Dizia Tolstói: “A memória aniquila o tempo: conduz à unidade aquilo que parece ter acontecido em separado”.
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