Eu não a conhecia. Mas ela é paulistana, doutora em Literatura Francesa, USP. De repente, flagro-me catando, feito rato, em livraria algo que me puxe os olhos. Daí, eu vejo Tenho um Cavalo Alfaraz (Editora WMF Martins Fontes), de Ivone C. Benedetti. Abro ao acaso e lá vem ela a me dizer:
“(…) Quem escreve se apossa da sua palavra ou da alheia e entrega essa palavra a quem não conhece, que também se apossa dela. Não é assim que gosto. Palavra minha. Se desmancha no ar antes que alguém tomar posse…”
Seus contos, em número de sete, tecem uma cambraia, ora organdi ou mesmo chita, apalavrando um social paulistano e sua geopolítica nacional e migratória. Ela sabe o que é escrever. Afinal, trabalha com as palavras, como carpinteira da mesma, em dicionários e traduções.
Como carpideira de palavras, e como toda enfeitiçada, tem a coragem de dizer em entrevista:
“Escrevi muita poesia a vida inteira, mas nunca me vi como poetisa… O exercício da prosa acabou esgotando a mina. Aproveitei alguns trechos de poemas meus como epígrafe dos contos de Tenho um Cavalo Alfaraz, porque havia relação entre eles e a temática desenvolvida em cada conto”.
Agora tento desdizê-la:
“…Um rosto veste sempre
a mesma cidade
a cidade só veste
o rosto que passa pelo momento (…)
(…) Seria uma lasca de madeira a prender mangas de quem passa?
Não fora uma faca a se esconder entre as barbas da oração.”
Ela dissimula, concorda? Esses versos abrem são as tias epígrafes dos contos.
Mesmo em Immaculada (Editora WMF Martins Fontes), romance finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2010, ela esconde em sua saga sua estética poética, da cidade de São Paulo dos anos 1920 a 1960, radiografando famílias de classes alta, média, média alta e seus mediadores de outras classes de um meio rural e urbano, costurando sua trama de modo seguro, dando-nos um retrato dessa cidade, em uma pesquisa histórica e tanto, mas como cerzideira da palavra, a autora nos dá um espelho da cidade em seus vértices sócio-político-econômico, sem perder jamais seu cerzir de construção da narrativa de fibra em seus personagens.
Ivone Benedetti não desiste de seu choro poético e assim nos diz no início da construção da saga: “(…) Mas erro só se comete quando é possível acertar. Quando o que se faz daria para não ser feito. Como deixar de viver o que tem de ser vivido, o que arrasta a gente porque insabido? Como tapar os ouvidos para aquilo que o desejo vai contando aos poucos, fechar os olhos para que o instinto vai mostrando sem mostrar?” (trecho de Immaculada).
A escritora é uma viola boa paulista que, sentada em seu cavalo de porte, vai cerzindo as palavras em suas lascas, no manso ou duro dos seus dedos quentes e vivos e vai dizendo:
“Tenho um cavalo alfaraz
levo uma espada de luz
nessa garganta um vulcão
dois feixes de sons nas mãos
e um ventre cheio de paz”.
*É paraibano, mestre e doutor pela ECA-USP. Professor de Teoria Literária na Anhembi Morumbi, professor colaborador da ECA-USP, Fundação Escola de Sociologia e Política-FESP, além de contista e poeta com livros publicados (paulo@brasileiros.com.br).
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