Uma nova história para o Brasil

A frase que abre esse texto poderia soar como uma desgastada retórica acadêmica, mas o historiador Jorge Caldeira, autor dessa provocação, tem total propriedade para torná-la um fato incontestável. Dono de um acervo que reúne mais de 13 milhões de documentos históricos e autor de obras respeitadas, como Mauá – Empresário do Império (Cia. das Letras), A Nação Mercantilista (Editora 34), e O Banqueiro do Sertão (Editora Mameluco), ele lançou, no final de 2009, História do Brasil com Empreendedores (Editora Mameluco) e comete o que, para muitos, soou como uma heresia, ao questionar o decreto de Caio Prado Júnior de que fomos condenados pelo latifúndio a amargar um atraso histórico.

Municiado de pesquisas e dados inimagináveis para o autor de Evolução Política do Brasil, ele reconstituiu fatos que compuseram as atividades mercantis do Brasil Colônia durante o século XIX, e concluiu que a economia brasileira resultava em um PIB equivalente aos índices apontados hoje. Ao reduzir as atividades econômicas brasileiras à exportação do que era produzido pelos dois extremos representados por latifundiários e escravos, Caio Prado ignorou o fato de que quase 70% da população do período era livre e economicamente independente. Caldeira defende que não quer enterrar o cânone e, sim, questionar e complementar a história registrada por ele: “Não podemos nos contentar com a história oficial. Assim como Caio Prado acrescentou coisas novas à obra de Oliveira Vianna, de quem tirou grande parte dos conceitos que defende, também temos de questioná-lo”.

Entre bambas e intelectuais
Jorge Caldeira nasceu em São Paulo, em 1955, e viveu uma juventude intensamente ativa nos anos 1970. Defende o período como um dos mais importantes da história recente, pois graças à articulação de várias frentes que se uniram para combater um inimigo comum – a ditadura -, o decênio foi decisivo para o processo de redemocratização do País.
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Em 1974, aos 18 anos, ele ingressou na Editora Abril, dando assistência à equipe que fazia pesquisas para o fascículo Nova História da Música Brasileira. Nas visitas em campo para desenvolver esse trabalho, descobriu algo que defende até hoje: que a história do Brasil está repleta de falhas e omissões, porque o brasileiro comum nunca teve voz em nossa história. Ao lidar com nomes como Donga, João da Bahiana, Nelson Cavaquinho e Assis Valente, Caldeira concluiu que esse Brasil semianalfabeto era tão importante para a formação da nossa música, quanto o olimpo musical formado por intelectuais da estatura de Caetano Veloso e Wally Salomão. Reconhecido pela importância do trabalho que realizava, tinha trânsito livre no asfalto e no morro. Varava noites em longas discussões no apartamento do compositor baiano, no Jardim Botânico, com a mesma intensidade que disputava acirradas partidas de bilhar com Paulinho da Viola em algum boteco da Lapa.

A paixão por nossa música popular, rendeu seu primeiro livro, em 1982, a biografia Noel Rosa, de Costas para o Mar (Editora Brasiliense). Em 2007, a obra foi reeditada pela Mameluco, sua própria editora, acrescida de A Construção do Samba, tese de dissertação de mestrado defendida por ele, em 1988. Hoje, apesar do foco na história colonial do Brasil, engana-se quem acha que Caldeira abandonou as pesquisas musicais. Está desenvolvendo para o IMS – Instituto Moreira Salles, a arquitetura de um banco de dados que vai digitalizar 12 mil títulos de discos em 78 rpm, reunir documentos herdados do acervo do polêmico historiador musical José Ramos Tinhorão, e jogar luz a 95% da produção de um período que compreende as décadas de 1910 a 1940 da nossa música popular. Mais uma lacuna histórica que será preenchida com o trabalho de Caldeira, que ainda esteve à frente de importantes projetos editoriais, como o caderno “Ilustrada”, da Folha de S.Paulo, no final dos anos 1980 e as revistas Bravo e Exame, no começo da década seguinte.

Em 1994, a carreira de escritor consolida-se, quando Caldeira inicia as pesquisas para a biografia do Visconde de Mauá e recebe o convite de Luiz Schwarcz, da Cia. das Letras, para que o livro integrasse a coleção que contaria a história do País por meio de grandes personagens. O mesmo projeto rendeu títulos como Chatô – O Rei do Brasil, de Fernando Moraes, e O Anjo Pornográfico, de Ruy Castro, acerca da vida e da obra de Nelson Rodrigues.

O historiador andarilho
Pai do arquiteto Júlio, 25, e da soció-loga e cientista política Violeta, 28, Caldeira é um homem simples e tem hábitos e predileções que podem soar excêntricos para muitos. A começar pelo time do coração. Por herança do pai – o médico Jorge Alberto, hoje com 82 anos e ex-lateral direito das categorias de base do clube, na adolescência -, ele e o filho Júlio torcem pela Portuguesa de Desportos, que hoje disputa a série B do Campeonato Brasileiro. Os três raramente perdem um jogo do escrete luso no Canindé.

Andarilho, Jorge evita ao máximo tirar o carro da garagem. Prefere se locomover a pé ou de bicicleta, de mochila nas costas, impondo impressionantes 20 km de caminhada e 40 km ao pedal da magrela como limite de distância a ser percorrido. Aos finais de semana, sai a pé de casa, no bairro de Higienópolis, e segue até Guarulhos ou até a divisa de São Paulo com Diadema, somente para conferir a rotina da periferia. Surpreende-se com o consenso comum de que a cidade tornou-se um território hostil: “As pessoas vivem uma vida de isolamento para se sentir seguras, e acho isso muito irônico. Cresci no Sumaré, quando o bairro ainda era considerado periferia, e vivia a brincar na rua. Fazia guerra de mamona em matagal com os amigos. Em meu tempo, a sensação de segurança vinha quando você deixava a porta de casa e as janelas abertas. Você vai, hoje, à periferia e percebe a mesma paranoia dos bairros de classe média. Todos vivendo atrás de grades”.

Com uma rotina diária de mais de dez horas de pesquisa, Caldeira ainda encontra tempo para ser um dos mais relevantes colaboradores da Brasileiros. Convidamos o historiador para discutir, em torno de uma mesa redonda, as novas e importantes interpretações do nosso passado, incitadas pelas descobertas defendidas por ele em História do Brasil com Empreendedores. O resultado – instigante – está nas páginas seguintes.

Brasileiros entrevista Jorge Caldeira

O Brasil da Tigrada

Brasileiros – Jorge Caldeira, seu livro está batendo de frente com um ícone da História do Brasil chamado Caio Prado Júnior.
Jorge Caldeira –
O livro bate de frente com Caio Prado, mas não por questões ideológicas. Questiona aquilo que do Caio Prado todo mundo sabe. Aquela história de que o Brasil se fez com latifúndio e exportação de matéria-prima barata, que a escravidão era o centro da produção econômica desse latifúndio e o mercado interno era uma coisa desprezível, pequena. Mais que uma explicação para o passado da colônia, sempre se defendeu que o Brasil ficou muito atrasado em relação ao capitalismo e aos outros países capitalistas, em função dessas questões. Caio Prado escreveu isso em 1933, quando não existia nenhuma universidade no Brasil. Ninguém estudava história econômica. As pesquisas não eram o que são hoje.

Brasileiros – E de onde ele tirou essa tese?
J.C. –
De um pensador conservador chamado Oliveira Vianna, que foi seu professor, contratado pelo tio, Paulo Prado que, além de empresário, tocava uma ordem de comissariado de café, em São Paulo e era dono de bancos e de ferrovias. Foi o tio quem publicou as obras de Oliveira Vianna, e Caio Prado o conheceu nessa época, quando ainda era adolescente. Vianna escreveu um livro chamado Evolução do Povo Brasileiro, em 1922, defendendo que o problema do Brasil era o latifúndio. Não somente pelas mesmas razões desenvolvidas por Caio Prado, mas dizendo também que o latifúndio, por ser desobediente do poder central, era o grande problema do Brasil. Esse poder isolado impedia que o Estado avançasse e impedia a civilização. Éramos selvagens, e o único jeito de resolver a vida brasileira era a concentração de poder na mão do Estado para combater os latifundiários. Esse era o argumento de Oliveira Vianna, foi ele quem inventou a ideia de latifúndio.

Brasileiros – E o Caio Prado era marxista quando fez esse primeiro livro dele, em 1933?
J.C. –
Não diria que ele não era marxista. Ele aderiu ao Partido Comunista, no começo de 1932, e terminou de escrever Evolução Política do Brasil em fevereiro de 1933. Percebi que havia uma grande semelhança nos textos de Evolução do Povo Brasileiro, de Vianna, e Evolução Política do Brasil, e dediquei um capítulo do meu livro a expor cinco páginas do texto de um, cinco páginas do texto do outro, sobre os mesmos assuntos. Em meu ponto de vista, é patente a semelhança, está na leitura, mas a origem de latifúndio para Caio Prado não vem de Marx. Estudei tudo o que ele leu durante o ano de 1932 e, como sabemos, Evolução Política do Brasil é tido como a fundação de uma interpretação marxista da História do Brasil. Para mim, a ideia de latifúndio em Caio Prado não veio de Marx, veio de Oliveira Vianna. Isso quer dizer que ambos estavam errados? Não. Quer dizer o seguinte: a hipótese do latifúndio é tão forte que todo mundo acreditou nela durante 90 anos. O século XX da História do Brasil se fez com base nessa crença.

Brasileiros – E o que mudou para que agora você conteste essa tese?
J.C. –
Hoje, com as universidades, você consegue fazer pesquisa econômica de pequenas regiões e reescrever essa história. Você vai a uma vila qualquer, estuda quem era rico, quantas pessoas havia ali e como era a renda desses moradores. Um trabalho feito no Brasil inteiro. Existem milhares de estudos dessa natureza. Voltando a 1800, que é quando você tem bastante certeza da espécie de números que vamos falar, o que acontecia? Os mais ricos do Brasil Colônia não eram os maiores proprietários de terra e sim os traficantes de escravos e os comerciantes que, muitas vezes, não tinham terra nenhuma. A estrutura e a propriedade da produção do Brasil em 1800 resultavam em uma economia maior que a de Portugal. Algo em torno de 60% maior. Por 300 anos, ficaram mais riquezas a circular por aqui do que o que foi para a metrópole. Caio Prado dizia: “Latifúndio é importante. Pequena propriedade é secundária”. E qual era a estrutura da sociedade no Brasil nesse período? Setenta por cento da população era livre. Dentro dessa sociedade baseada em uma população livre, devemos nos lembrar de que não havia empresas, o que fazia com que unidade produtiva e unidade familiar fossem a mesma coisa. A unidade familiar não era como agora, isolada. Família era quem morasse dentro de uma determinada casa – senhor, família, escravos agregados. Dessas unidades familiares produtivas, algo em torno de 75% era de pessoas livres, sem escravos. No quarto restante, a média de escravos por proprietário, no Brasil, era de cinco e os escravos representavam 9% da população. Estudos comparam essas três partes livres, com esses poucos que tinham escravos, e concluem que eles praticavam as mesmas atividades, viviam no mesmo lugar, negociavam entre si e tinham um grau parecido de riqueza. Do PIB no Brasil de 1800, 86% era mercado interno e 14%, importação. Em 2008, foi de 87% e 13%. A proporção de mercado interno era a mesma de hoje, basta olhar dados como esses para concluir que o Brasil sempre foi uma economia independente.

Brasileiros – A disponibilidade de dados hoje e em 1930. Essa é a grande diferença entre suas conclusões e as de Caio Prado?
J.C. –
Essa é a diferença central.

Brasileiros – E o que muda isso? Os livros escritos com fundamentação nessa tese não valem mais? Qual é a consequência dessas descobertas?
J.C. –
Temos um conhecimento que precisa ser adaptado, porque uma coisa é a realidade, outra é o modelo mental. Como a gente pensa. Pelo fato de eu escrever esse livro, as pessoas não vão mudar de ideia. Elas foram educadas assim. Seus professores aprenderam isso com os grandes mestres e os grandes historiadores do século XX. Todos acreditaram nisso e não posso ignorar esse fato. Essas questões precisam ser repensadas. É preciso jogar luz sobre essa omissão histórica.

Brasileiros – Quem eram esses empreendedores? Foi possível identificar as atividades realizadas por eles?
J.C. –
Esse livro trata da economia colonial, mas vamos adaptar isso, de uma maneira mais leve para a atualidade. Se você pegar aquele tipo da carrocinha, que sai à cata de papel no meio da rua e vende para reciclagem. Tecnicamente, o que representa essa atividade? Ele não é assalariado, pois não recebe salário e, em bom termo marxista, é dono dos seus meios de produção, no caso a carrocinha. Com essa propriedade, ele trabalha e recebe pelo resultado de sua produção. Tecnicamente falando, ele é um empreendedor. Na colônia, também não existia o trabalho assalariado. Não havia barreiras feudais no Brasil. Não só os que vinham de fora, mas também os que aqui estavam procuravam mudar de vida. Aquele que era tupi e se casou com o português, empreendeu tanto quanto o português. Saiu de um estado de civilização para viver em outro. A ideia do tupi era casar com o de fora e empreender. Entregavam a filha para casar com o português, porque o conhecimento que ele trazia melhoraria a vida dela. Esse jeito de aceitar o outro nos tornou uma potência cultural, e foi isso que fez o Brasil ser Brasil.

Brasileiros – Isso aconteceu sempre. Ainda hoje existem muitas mães querendo colocar seus filhos em escolas abastadas, porque ali estarão perto de quem tem dinheiro.
J.C. –
Isso é um hábito brasileiro. Mas o que fez o Brasil ser diferente de Portugal? Portugal colonial era uma sociedade fechada, feudal, atrasada, avessa à ideia de se casar com o de fora, avessa à ideia de receber gente. No Brasil, ao contrário disso, todo mundo que veio para cá se casou. Do século XVI ao século XXI, imigrante japonês casa, luterano, norueguês, libanês, iraniano, japonês, todo mundo aqui se casa. Isso não é invenção portuguesa, isso é parte da cultura tupi e deu ao Brasil uma sociedade aberta e democrática. Coisas que pouca gente nota. Eleger representantes foi algo que começou no Brasil com a fundação de qualquer vila. Em São Vicente, a primeira vila do Brasil, já em 1532 foi instituída eleição para vereadores. De três em três anos, havia eleição.

Brasileiros – E quem votava?
J.C. –
Votavam os chamados homens bons. Homem bom era um termo do Antigo Regime, sinônimo para nobre. Onde havia 1.500 habitantes, votavam por volta de 200 homens bons. Cada lugar fazia sua lista.

Brasileiros – E onde entra o tupi nessa história?
J.C. –
A semelhança está no fato de o tupi viver de assembleias. Só decidiam por consenso. Essa cultura tupi, do assembleísmo, da discussão em grupo, virou o que virou. Esse hábito do brasileiro arranjar consenso não é português, a história de Portugal é de irmão brigando com o irmão, e se matando em guerra. Aqui, a ideia de consenso funcionava na colônia inteira. Quando veio a independência, montou-se um parlamento do Brasil, que está em sua 53ª legislatura e por 51 vezes os deputados completaram mandatos. O Brasil teve apenas duas interrupções em sua vida parlamentar. Uma no Estado Novo, em 1937, e outra, durante o regime militar, em 1969. Para se ter uma ideia, a França não tem tamanha estabilidade parlamentar. Só Inglaterra e EUA têm mais. Perante esses fatos, você começa a perceber que não só essa economia, mas todas as instituições importantes do Brasil já estavam aqui dentro. Havia a elite, mas havia também uma base, uma comunhão nessas coisas imensas.

Brasileiros – Havia instituições de crédito nesse período?
J.C. –
O fiado. O famigerado “fio do bigode” era nossa maior instituição de crédito. Invenção brasileira e ainda hoje, em 2010, 20% de todas as vendas no varejo no Brasil se faz por meio de fiado, cartão de crédito ou dívidas em bancos. Era assim que funcionava a economia, crédito na base da palavra. Empréstimo dado de boca e qual era a garantia? A família. Quis pesquisar sobre o fiado, e no sistema das principais bibliotecas universitárias do País não existe nenhum artigo, nenhum livro sobre essa instituição, que é dominante na economia brasileira. Somente na Biblioteca Nacional vai aparecer um único livro sobre o fiado do pão em Portugal, de 1534.

Brasileiros- E o escravo também era um patrimônio que viabilizava crédito?
J.C. –
Somente os africanos. Os índios, não. Os escravos africanos eram definidos como propriedade pela lei e você podia usá-los como garantia de crédito. Recebia em dinheiro e se não pagasse “executavam” o escravo. Um bem com garantias legais para a concessão de crédito. Então, o escravo, além de ser o centro de trabalho na economia, era o centro de sistema de crédito, empréstimo e fortuna na colônia brasileira.

Brasileiros – Assalariados mesmo não existiam?
J.C. –
Não existiam. Ou o sujeito era o empreendedor ou o escravo. A ideia dessa economia agrária exportadora, com base na escravidão, não é propriedade exclusiva nossa. Também se fala isso, de alguma forma, em relação aos EUA.

Brasileiros – Você, então, está convidando todos a reverem nossas perspectivas históricas? Existe um movimento regionalista, nos EUA, que busca resgatar o dinamismo disso que você chama de empreendedor. Até por que a ideia do empreendedorismo americano é bem posterior. Do século XIX, não é?
J.C. –
Os EUA, como o Brasil, dividiram-se em regiões com grandes propriedades escravistas e outras dominadas pelas pequenas propriedades. Em Nova York, em 1800, 14% da população era de escravos. A mesma proporção que havia em São Paulo. Brasil e EUA, em 1800, também não eram tão diferentes em população. Quatro milhões aqui e cinco milhões lá. Durante a época colonial, os quadros eram muito semelhantes entre Brasil e EUA. E onde é que a coisa muda radicalmente de figura? No século XX. Já em 1900, a economia dos EUA era 15 vezes maior que a do Brasil.

Brasileiros – Perder esse rumo da história foi culpa do Império?
J.C. –
Não só do Império, mas esse é um dado inegável para entender nosso atraso. Qual era o projeto dessa gente? Eles foram tocados de casa pelas revoluções burguesas e o Brasil era um belo refúgio. A economia portuguesa tinha regime de Idade Média, a colonial crescia mais que a de Portugal. Mas do século XIX em diante, a economia brasileira fica estagnada. Continua do jeito que era. O mundo inteiro se refaz com o capitalismo. A economia americana cresceu muito mais, pois foi a que mais apostou no capitalismo e ganhou a aposta. Aqui, a gente perdeu e é fácil concluir por que não tivemos capacidade de ser tão grandes como poderíamos. No Brasil, até a década de 1930, não havia nenhuma faculdade. A primeira universidade do Brasil é a USP, de 1934. Trezentos e noventa anos depois da primeira universidade colonial espanhola, 300 anos depois da primeira universidade inglesa!!! Portugal conseguiu a façanha de cometer um atentando cultural e civilizatório ao proibir a máquina de imprimir no Brasil. Todos os que trouxeram prensas para o Brasil, até 1808, foram presos, processados e tiveram as máquinas entregues para Lisboa e destruídas por lá. A primeira prensa veio com Dom João VI, para publicar o Diário Oficial. Isso impede, até hoje, que a gente conheça nosso próprio passado. A cultura brasileira paga por isso até hoje de maneira violenta.

Brasileiros – Por que isso?
J.C. –
Uma pessoa alfabetizada e letrada no Brasil não conseguirá ler nada de como o pobre pensava, nem que queira, nem que busque muito. A cultura brasileira que interessa é a cultura oral. A cultura erudita brasileira é pobre, paupérrima, perante a cultura oral. Portugal fez uma política de ignorância, pois tinha a ideia de que se os brasileiros conhecessem a si mesmos, iriam fazer a independência muito mais depressa. Para fazer a biografia de um brasileiro que viveu em 1700 (o Padre Guilherme Pompeu de Almeida, personagem central de O Banqueiro do Sertão), levei quatro anos, e só a fiz porque tive um tremendo financiamento, que me permitiu pesquisar 400 mil páginas de documentos para conseguir arrancar 100 citações daquela pessoa. Escrever uma biografia de qualquer brasileiro do período colonial é uma pedreira inacreditável.

Brasileiros – Mesmo Dom Pedro não fez nenhum esforço para trazer educação?
J.C. –
O império começou com 97% de analfabetos e, quase 70 anos depois, reduziu este índice apenas para 88%. No âmbito mundial, 3% de alfabetizados, em 1820, era alguma coisa atrasada, mas não muito, mas 88% de analfabetos em 1889 era muito. No mesmo período, os Estados Unidos já tinham 70% da população alfabetizada e muitos países já estavam chegando a 100%. O Japão tem 100% da população alfabetizada, desde 1922.

Brasileiros – Isso contribuiu para ocultar essa camada fundamental da sociedade que construiu a história de nosso País?
J.C. –
Evidentemente, pois você não pode contar a história do Brasil como se não existisse 60% da população. O pior preconceito de Caio Prado foi interpretar essa gente como selvagens, populações semibárbaras, que viviam da pior maneira e que não tinham nenhuma participação na economia. É isso que ele falava dos pobres do Brasil. Uma herança da retórica dos anos 1930, que a gente não pode apagar. É inegável que era assim que ele a tratava. Você não pode contar a história do Brasil como se dois terços da população não existissem. Esses dois terços existiam e eram importantes, têm de ser incorporados à história, não podemos contar a história como se essa tropa não fosse nada.

Brasileiros – Não dá para esquecer a “tigrada”. É isso?
J.C. –
Quem fez o Brasil foi essa “tigrada” e, ao perceber esse empreendedor, ao perceber a vida do mais pobre, você incorpora essas figuras na história. Derruba um pensamento da elite conservadora do Brasil. Essa barreira mental de pensar o Brasil de dois jeitos diferentes só acabará quando a cultura erudita chegar ao nível da cultura popular. Nenhum pensador erudito pode mais escrever ou pensar sobre o Brasil sem levar em consideração um aprendizado de cultura popular. Com 20 anos de idade, fui posto para fazer a História da Música Popular Brasileira, na Editora Abril, uma coleção de fascículos, com a história dos músicos brasileiros. Era 1975, e ainda estavam vivos – João da Bahiana, Donga, Pixinguinha, Ismael Silva, Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus. Tive a sorte de entrevistar todos esses nomes ilustres da nossa música. A grande maioria semialfabetizado ou analfabeto, mas todos com a absoluta noção de que eram muito importantes para o Brasil. Entrevistei Ismael Silva em um boteco da Lapa, morto de fome, mas garboso, trajando terno branco, camisa vermelha, gravata branca e chapéu. Fez o papel de Ismael Silva até o fim da vida. Vivia na miséria, mas tinha total noção do que representava para nosso País.

Brasileiros – O fato de termos hoje um presidente como o Lula corrobora um pouco essa sua tese, não é?
J.C. –
O Lula para mim é uma figura engraçada. Um provocador nato. Com esse bordão – “Nunca na história desse país…” -, ele causa um negócio nos historiadores que é muito complicado, pois podemos criar uma lista de fatos nos quais o Lula não é inédito. Em primeiro lugar, ele não é o mais pobre presidente da história do Brasil. Diogo Antônio Feijó, nosso regente, ao nascer, foi rejeitado pela mãe, posto na roda dos expostos da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo. Era um buraco em um muro da Santa Casa, com uma base redonda onde se depositava o bebê, girava, tocava o sino e o abandonava lá. Esse bebê foi criado no meio de aldeamentos indígenas, aprendeu a ler e foi Regente do Império. O primeiro brasileiro eleito para ser Regente do Império prova que nobreza é uma besteira no Brasil, desde aquela época. O primeiro negro eleito no Brasil, José Rebouças, na Bahia, em 1829, 59 anos antes da abolição, foi Senador do Império. O Brasil tem uma elite caipira, local, não globalizada, que só tem sentido aqui dentro. A elite brasileira não é ativa para a globalização. A condição para o Brasil melhorar, daqui para frente, é pensar em uma totalidade, melhorar esse pensamento bipartido, essa coisa composta de duas metades e não uma totalidade. Voltando a Caio Prado, ele e também Oliveira Vianna expuseram um Brasil bipartido. Caio Prado defende a figura do latifundiário criada por Vianna, para mostrar que o sistema vigente era o de uma elite que governava isso aqui e o resto que obedecia.

Brasileiros – E Sérgio Buarque de Holanda, como é que fica perante a sua tese?
J.C. –
As três grandes interpretações do Brasil foram feitas no biênio de 1933 e 1934. Meses de diferença separam o que escreveu Gilberto Freyre, Caio Prado e Sérgio Buarque de Holanda. O Caio Prado defendia isso que a gente já discutiu. Já o livro de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala, é muito interessante, porque diz que a miscigenação é um valor positivo, justamente no ano em que os nazistas ascenderam ao poder. No mesmo ano em que Hitler começou a defender uma raça superior, ele dizia o contrário, que a mistura de raças era algo bom e fez esse livro defendendo que a miscigenação era um valor positivo – embora se leia como miscigenação, no caso dele, a mistura do negro com branco. Tem um capítulo inteiro em que você percebe que ele detestava índio e achava que eles não tinham nada a ver com miscigenação.

Brasileiros – Como assim? A miscigenação era algo bom, mas sem o índio?
J.C. –
Era um valor bom e não foi criado pelos índios. Os tupis não tinham nada a ver com isso, isso é o que diz Gilberto Freyre. Então, feita essa ressalva, isso torna Casa Grande e Senzala um livro bastante adaptável, e a miscigenação defendida por ele é mais um mito do que uma questão real. Darcy Ribeiro, em O Povo Brasileiro, é quem chega a uma interpretação mais próxima e fiel das estruturas de nossa sociedade. Darcy e Jaime Cortesão (historiador português) foram os primeiros a identificar a miscigenação com a cultura tupi. Sérgio Buarque de Holanda é o terceiro clássico do mesmo ano e é menos afirmativo que os outros. Não pretendia projetar nada sobre o futuro do País. Por ser mais ensaísta, não se preocupou em dar conta de uma explicação para a nossa economia, apegou-se a nossa sociedade, ao brasileiro.

Brasileiros – Entre os três, é possível mensurar trabalhos de pesquisa e concluir que um seja mais assertivo que o outro ou eles tecem visões complementares?
J.C. –
Acho que os três são importantes porque sobrevivem até hoje. Estamos em 2010, falando de três livros de 1933, como se fosse hoje, mas a metodologia de pesquisa de 2010 é radicalmente diferente da que era disponível então. O que você conhece de história do Brasil com os novos recursos é algo infinitamente maior. Hoje, um historiador médio vê em um ano mais documentos que eles viram durante a vida toda. Para escrever História do Brasil com Empreendedores, trabalhei com um volume gigantesco de documentação primária. Algo inacessível, para qualquer um dos historiadores que citamos. Um erudito daquela época, por mais rico que fosse, jamais teria acesso a 400 mil documentos. Algumas informações dessa natureza que chegavam a eles, muitas vezes não eram julgadas importantes. A família Prado, fundada por Antônio da Silva Prado, o Barão de Iguape, fez fortuna com trocas, e deixou um livro de contas de trocas, que estava em mãos da família, e Caio Prado, simplesmente, não consultou esses dados. Não achava importante.

Brasileiros – Mas tudo isso é uma hipótese tua ou você foi descobrindo em suas pesquisas? Você intuía isso?
J.C. –
Quando estava fazendo meu doutorado, em 1997, descobri que Caio Prado e Oliveira Vianna tinham essa semelhança de interpretação e me intriguei, pois não é uma coisa assim tão simples de entender como um fascista e um comunista se copiaram. A hipótese mais simples seria aceitar que o Brasil é o mesmo, tanto para o fascista, quanto para o comunista, mas na verdade acho que eles se copiaram, porque defendiam versões plausíveis do que se conhecia do Brasil em 1930. Algo que não se percebe da mesma forma hoje. Esse é um livro para repensar o Brasil. O Brasil não vai ficar mais rico do que é por conta dessa interpretação que estou defendendo. Você não fabrica riqueza na história. No Brasil, o desconhecimento da nossa história é muito maior que nos outros lugares e esse desconhecimento vem do analfabetismo, da falta de imprensa. A história do Brasil está mais aberta do que parece. Está aí para ser reinventada.


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