Desde muito ouço, leio, assisto a filmes e venho acreditando que o cangaço é um fato histórico que cabe naquela definição de “violência justa contra violência injusta”. Os cangaceiros praticaram sim a violência, mas era uma reação contra o coronelismo, os desmandos do poderio econômico, político e policial, praticantes das maiores barbaridades, das violências mais sórdidas.
Continuo acreditando, mas com outro olhar, um senso crítico maior, depois de ler Os Cangaceiros – Ensaio de Interpretação Histórica (Boitempo Editorial), de Luiz Bernardo Pericás. Foi uma leitura demorada, não daquelas de ir de ponta a ponta numa sentada. E o motivo não é que o livro não seja interessante, é muito. Nem que não seja bem escrito. Também é muito. É que é um livro denso, que, a todo momento, chama à reflexão.
Pericás toca em pontos polêmicos, se aprofunda neles e não atenua as análises sobre a violência dos cangaceiros – que incluía tortura. O livro é um levantamento enorme de tudo o que há sobre o assunto, e cada fato narrado é acompanhado de nota numerada com remissão no final da obra. São tantas as notas que elas ocupam 61 das 320 páginas. Tantas notas podem parecer um exagero, mas elas reforçam a fidelidade aos fatos e às fontes.
Quando trata dos motivos da entrada das pessoas no cangaço, o autor contesta algumas informações, como a de que os anos de seca e de crise econômica levavam mais gente ao movimento. Além de argumentar que o sertanejo tinha um forte sentimento moral, que o levava a preferir migrar ou até mesmo cometer o suicídio quando não tinha saída, em vez de entrar no cangaço. O autor conclui que nos anos de seca e de crise havia era migração em massa para as capitais estaduais e para a Amazônia e, depois, para o atual Sudeste. Nos anos de fartura, ao contrário, segundo ele, os assaltos rendiam mais e isso atraía mais gente para o cangaço.
Traz ainda uma documentação muito interessante, como análises de Luiz Carlos Prestes e da Aliança Nacional Libertadora (ANL) – protagonista do episódio que ficou conhecido como “Intentona Comunista”, de 1935 – sobre os cangaceiros e a tentativa de levar consciência política a eles.
Nessa documentação, que revela o clima de violência da região, há até uma sentença judicial que não está prevista em nenhum código penal: a castração de um acusado de tentativa de estupro. E seria castração a macetadas.
Diferentemente do que muita gente pensa, o cangaço teve início no século XIX, bem antes da Era Lampião. Entre as análises sobre os vários aspectos relacionados ao movimento, chama a atenção a que mostra que, ao mesmo tempo, o cangaço representou algo arcaico e os próprios cangaceiros tinham esse lado, eles também eram modernos, moderníssimos: “Sabiam das inovações tecnológicas e tinham noção do ambiente cosmopolita das grandes cidades”.
“Lampião”, conclui ele, “se apropriava de tudo o que pudesse representar uma novidade para melhorar a vida de seu bando, fosse um produto essencial ou supérfluo”. E é no supérfluo que surpreende: queijo holandês, cigarros das melhores marcas, charutos de marcas selecionadas, uísque White Horse, brandy Macieira 5 estrelas (português), relógios Omega, perfumes franceses – Lampião preferia o Fleur D’Amour -, sabonete Eucalol, etc.
Maria Bonita, que deu novo tom aos hábitos dos cangaceiros, tinha também suas preferências. Segundo o livro, “as luvas e os objetos de toalete de Maria Bonita são uma prova evidente de que os cangaceiros do Nordeste também são passageiros do trem do progresso”.
Enfim, é um livro para ser lido, guardado e consultado, concordemos ou não com as análises do autor. Ele provoca reflexões e traz à luz uma documentação incontestável.
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