Eu desci em Genebra na manhã do dia 12 de julho de 2006. Na maleta de mão, as cinzas de um amigo. Eu tinha documentação de tudo, estava tranqüilo. Meu trem para Aubonne sairia no dia seguinte às 9h20. Eu tinha bastante tempo. Fui para o hotel, tomei um banho e saí. Fui caminhar.

Passei por St. Gervais e suas joalherias. Andei pelo Jardin Anglais e pela Vieille Ville. Por fim, fui almoçar à beira do lago. Refeição levíssima com um Chardonnay, perfeito, no balde. Raramente fumo, mas arrematei tudo com um Davidoff e pensamentos. O vinho e as circunstâncias, outra vez, me conduziam. Desta vez ao Cimetière des Rois onde está Borges. Ou melhor, os restos materiais do que foi Borges. No dia seguinte peguei o trem para Aubonne.

Fui recebido na estação por M. Bouchard. Estava tudo já acertado. Na verdade eu nem precisaria ter ido lá. Apenas entregaria as cinzas, liquidaria tudo num instante e esperaria pelo trem de volta. Mas não foi assim. M. Bouchard me apresentou as instalações, os equipamentos, os urnários e ainda explicou o processo.

As cinzas do Samuel seriam inicialmente submetidas a um processo químico para separar o carbono das outras substâncias. Esse carbono, então purificado, seria submetido a altas pressões e temperaturas, e, assim, transformado em diamante. Processo russo, haviam comprado a patente. Depois, seria lapidado, resultando num brilhante, arredondado e levemente azulado. Eu já sabia de tudo, mas gostei. Achei a fala respeitosa. Assinei todos os papéis e voltei pra Genebra. No dia seguinte voei pro Brasil. Cheguei moído.

Passados dois meses, me chega a encomenda no escritório. Frete e impostos já pagos, o Samuca sempre foi organizado. Assinei tudo, o rapaz saiu e abri a caixa. Lá estava o brilhante, o meu amigo. Por bem uma hora, fiquei olhando aquela pedra, na verdade pensando aquela pedra. Nada de mais, considerei a princípio. Átomos de carbono reorganizados em altas pressões e temperaturas. Não há mais o amigo, ele era a organização anterior desta mesma matéria. Samuca era o nome que se dava à organização anterior dessa matéria. O problema era ser a mesma matéria, ali havia Samuca. Aquilo me incomodava. Afastei a questão trancando a pedra na minha gaveta, o que foi mais estranho ainda. Samuel era filho único de pais romenos, família única, não tinha parentes, nem mulher nem filhos. Eu era a família dele e fiquei com ele. Ou melhor, ele ficou pra mim.

Ele ficou ali trancado por uns seis meses, em que eu procurava ignorá-lo. Achei que não ia dar certo na minha casa também. Podia levar pra lá, mas lá não tinha cofre, nem gaveta com chave. Se sumisse eu ia ficar com uma culpa do cão. O melhor seria um cofre de banco e foi assim que o Samuca passou dois anos no cofre do Citibank. E eu pagando. Um dia achei tudo aquilo uma palhaçada e levei o brilhante pra casa.

Ninguém sabia dele. A questão era só minha, eu tinha que resolver. E resolvi. Doravante aquilo pra mim seria apenas uma pedra. Pronto. Que custou muito dinheiro, mas uma pedra. Nada mais que uma pedra.

Não passou uma semana e me peguei pensando nas joalherias de St. Gervais e em Giovanna, que estava comigo há uns três anos. Não demorou muito, bati o martelo. Um pendant de aniversário e não se fala mais nisso. Mandei fazer. Levemente azulado, refletiria seus olhos. Valorizaria seu colo.
Dei o presente e foi um sucesso. Ficou linda mesmo. A pedra derramou tons de azul sobre todo aquele busto de bronze. Um monumento iluminado. Eu fiquei encantado.

Mas durou pouco. O Samuca bem ali, encostado na pele dela, mexeu comigo. Não deu pra engolir. Não mesmo. Pegou forte.Decerto o desgraçado já pensava nisso. Vai saber.

*Marcos Rodrigues é engenhero civil pela Escola Politécnica da USP, Master of Sciences, pela University of Birmingham, Inglaterra, e Doctor of Philosophy pela University of Cambridge, Inglaterra. Desde 1990 é Professor Titular da Poli – USP, na área de Informações Espaciais.


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