No sobe-e-desce agitado da Rua Augusta, região central de São Paulo, um senhor com seus 80 anos, elegante, trajando paletó de corte correto, suspensórios bordô, lenço no pescoço e boina, chama a atenção dos passantes. Tem um sorriso fresco e um olhar de avô. É Maurice Plas. Parece fora de contexto quando pára e conversa com alguns meninos de rua jogados pela calçada. Lembra um personagem de filme francês de época quando me faz entrar pela porta de sua loja, datada de 50 anos atrás, encravada hoje entre bares e puteiros da movimentada Augusta.
Nos tempos áureos da rua, as vitrines de vidro e madeira da Plas tinham outros vizinhos. Maurice é belga. Veio para o Brasil fugindo do pós-guerra na Europa e encantado com as impressões do irmão Jean Plas, que meses antes havia aportado na provinciana capital paulista. Jean escreveu que a cidade era bonita, tinha um sol brilhante que iluminava pessoas, casas e, quem sabe, até negócios. Maurice estava com as malas prontas para partir – pensava no Canadá. Quando recebeu a carta do irmão, comprou passagem para o Brasil, foi para o Porto de Bordeaux, na França, tomou vinho e embarcou na última viagem do Formoso – navio conhecido por transportar franceses para o Vietnã. Na mala, lembra-se bem, trazia tesoura, máquina de costura e um cofre com todas as economias.
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A viagem durou três semanas e, das paradas que a embarcação fez antes de atracar no Porto de Santos, duas marcaram Maurice e estão impressas até hoje em seu trabalho: “As cores, as estampas das roupas vestidas pelos africanos de Dacar, que eram vivas, alegres”, conta. No Rio de Janeiro, o modo de vestir também o impressionou. Num passeio rápido pela Avenida Rio Branco, Maurice viu senhores bem-vestidos em seus ternos escuros – marinho, talvez -, sapatos pretos e chapéus. “Pensei: aqui vai dar para fazer roupa”, diz. E deu. Não no Rio, mas em São Paulo. Logo que chegou à cidade, encontrou o irmão. Juntos começaram um negócio: uma alfaiataria no Centro, o centro chique, que ditava a moda e os rumos do desenvolvimento do País.
O primeiro endereço foi no número 29 da Rua Conselheiro Crispiniano. Desconhecidos do povo e sem falarem português, Maurice e o irmão tiveram de adotar uma estratégia para conquistar clientela. Foram procurar os estrangeiros que estavam no Brasil temporariamente – ou em definitivo – e oferecer a eles seus serviços. Nos consulados, bancos e empresas, encontraram seus primeiros clientes – franceses, ingleses, alemães. Arregaçaram as mangas, afiaram as tesouras e começaram a trabalhar. “Chegamos a confeccionar 40 ternos por mês”, conta. Além dos ternos, faziam tailleurs, blusões e até vestidos de noiva.
O espaço na Rua Conselheiro Crispiniano foi ficando pequeno para tanta glória. Em andanças pela cidade, Maurice percebeu que seus clientes mais importantes sempre faziam um caminho: vinham dos Jardins para o Centro e usavam como principal via de acesso a Rua Augusta. “Passei várias vezes por lá observando as fachadas das lojas finas, de decoração, roupas, tapetes. Achei que era um bom lugar para montarmos uma filial da Plas”, lembra.
Em 1954, Maurice e Jean inauguraram, com toda a pompa, a nova loja. O letreiro com design da época, esculpido em ferro e fixado na fachada de madeira, e a vitrine glamourosa convidavam os transeuntes a entrar. O letreiro permaneceu por 53 anos. Foi tirado só agora, por causa da nova lei municipal. “Mas não tem problema. Se é para a cidade ficar mais bonita, eu tiro”, diz Maurice, defensor ferrenho da beleza. As marcas das letras oxidadas pela ação do tempo ainda sussurram o nome da loja a quem passa. “Não sei se a prefeitura vai implicar…”
Para trazer as novidades do mundo da moda ao País, Maurice viajava à Europa com freqüência, participava dos salões de Paris e Milão. Chegava sempre com um corte novo, um blusão diferente. De uma das viagens trouxe uma boina escocesa xadrez com um pompom vermelho – na época, a alfaiataria ainda era o carro-chefe da Plas. Maurice desfilou, exibiu o acessório nas rodas em que circulava.
Um cliente – o ator Tarcísio Meira, que desfrutava o sucesso de seu personagem João Coragem na novela Irmãos Coragem – viu a boina e a pediu de presente. “Eu disse que não podia dar, mas que faria uma igual”, conta. De lá para cá, não parou mais. Passou a desenhar modelos de chapéus de veludo, de algodão para homens e mulheres, boinas, chapéus de praia. Virou referência na cidade, passou a enfeitar as cabeças de atores e atrizes de novelas e se tornou presença certa nos editoriais de moda das revistas.
Com a morte do irmão, a loja da Conselheiro Crispiniano foi fechada. Com pesar. A da Rua Augusta sobreviveu. Apesar de a alfaiataria ter perdido sua clientela para o mercado de roupas prontas, os acessórios sustentaram as vendas e a vida de Maurice e sua família. “E pensar que muita gente me dizia que um negócio de chapéus nunca daria certo no Brasil, pois os brasileiros não gostam de nada na cabeça”, diz o otimista alfaiate, que nunca acreditou muito nessa teoria. “Faz sol, as pessoas usam bonés…” Hoje, os dois filhos ajudam a tocar o negócio – até introduziram vendas pela internet -, mas Maurice ainda escolhe cores, faz moldes, desenha modelos e acerta-os nas cabeças mais desavisadas que passam por lá esperando encontrar um chapéu ideal. “Estou pensando em criar outros modelos com novos tecidos para as pessoas usarem no dia-a-dia…”, reflete.
O otimismo de Maurice só entristece um pouco quando ele fala da Rua Augusta, olhando para os meninos maltrapilhos ali jogados. “Seria bom cuidar melhor dessas crianças.” Lamenta também que muitos de seus clientes não freqüentem mais a loja por causa da decadência, da prostituição na região. “As padarias portuguesas, onde se comia muito bem e se tomava um ótimo café, fecharam, mudaram de dono. Sobraram bares que servem um café ruim”, reclama com uma careta.
Maurice diz que até tenta fazer amigos com a nova vizinhança, mas nunca entrou numa boate dali. Puxa papo com as garçonetes dos bares diurnos, mas os sorrisos são escassos, as respostas, secas. Sem charme. Retorna à loja, com o relógio de parede grasnindo meio-dia, volta no tempo, coloca uma boa música, senta na sua poltrona cheia de retalhos de tecido espalhados, fala sobre a mesa cheia de gravatas que ficava num canto. Parece que a vejo.
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