Milton Nascimento ficou comovido às lagrimas quando soube que a Universidade de Música Popular surgida dentro do Grupo Ponto de Partida, de Barbacena, Minas Gerais, levaria seu nome. Quando chegaram os primeiros folhetos, o mineirão nascido no Rio vacilou. “Espera aí, Bituca? Eu levei décadas construindo meu nome, viajando pelo mundo, e vocês usam meu apelido de criança para batizar a escola?” O mal-estar, se é que houve, durou frações de segundo, segundo Regina Bertola, matriarca do grupo.
A escola funciona em um prédio da primeira fábrica de seda do Brasil, a Sericícola, vizinha da sede do próprio grupo, desde 2004. Quer dizer, surgiu dentro do Ponto de Partida e foi transferida recentemente para o casarão ao lado que estava para desabar e foi restaurado pelo grupo com o apoio de várias parcerias. Gratuita, com aulas semanais, funciona pelo método inventado por Regina e seus colaboradores, formação integral e construção coletiva. Os alunos podem optar por formação específica, com instrumentistas do nível de Lincoln Cheib, bateria; Gilvan de Oliveira, violão; Babaya, canto; Felipe Moteira, piano e teclado; formação complementar, com Ian Guest, o preferido das estrelas, fazendo musicalização pelo Método Kodaly, preparação para o palco, com o pessoal do Ponto de Partida, prática de conjunto com Gilvan e Cléber Alves, que ensina saxofone; além de cursos opcionais, que vão de leitura à primeira vista, com Enéias Xavier, que também dá aulas de baixo, à prática de estúdio com Cheib, que pilota uma mesa ultramoderna que acaba de chegar a Barbacena. A excelência é condimentada pela presença de craques do cenário musical que participam do processo dando shows e workshops, dentro do projeto Bituca Convida, caso de Arismar do Espírito Santo, Wagner Tiso, Benjamim Taubkin, Dori Caymmi. Um quê de medieval com os discípulos circundando o mestre em meio ao cenário estonteante da Serra da Mantiqueira. O projeto De Olho no Palco, que visa produzir shows e CDs dos alunos, tem como primeiro fruto O Menino e o Poeta, de Pablo Bertola, filho de Regina, um dos motivos da existência da Bituca. Uma história sedutora, palavra-chave para se entender o Ponto de Partida, inicialmente uma mera referência dentro desta pauta.
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Em 1980, Regina, o marido Ivanée, a colega professora Naná (Ana Alice Souza) e amigas como Lourdes Araújo sentiam-se desconfortáveis em relação à cidade. Tudo passava por Barbacena e nada acontecia ali. Nascia então o movimento cultural Ponto de Partida. A ideia era a realização de produções culturais, fazer a comunidade se mexer. Começaram com projetos de formação de público, conscientização. Tipo Bar em Cena. A ideia era ocupar o espaço do bar, reformular as luzes. Parar o trabalho dos garçons e trazer gente boa que tinha um trabalho legal mas não era reconhecido. Ou seja, viável economicamente. Veio a mineirada toda, Saulo Laranjeira, Paulinho Pedra Azul, Nivaldo Ornelas, além de nomes mais de ponta como Carlinhos Lyra, Nara Leão, Roberto Menescal, João Bosco. E teve a Titane, cantora que surgiu acompanhada por um certo Gilvan de Souza. O sujeito ficava em um cantinho, cabeça baixa, tocando, fora da luz, de óculos escuros. Mas como tocava. Quem diria que hoje estaria contracenando com o elenco. Mas até aí lá vai chão. Nesse período surgiu também o Roda Viva, uma discussão um sábado por mês na Câmara. Vieram entre outros intelectuais e escritores, Affonso Romano de Sant’Anna, Fernando Brant, Sérgio Britto e Luiz Linhares, da primeira montagem de Gota D’Água. O primeiro salto ocorreu quando Regina resolveu fazer um musical com as crianças da escola em que lecionava, inspirado em A Arca de Noé, de Vinicius de Moraes. O empresário de Elba Ramalho na época descansava na cidade, assistiu à apresentação e encasquetou de levá-la para Belo Horizonte. A peça era montada em cima de cacos que Regina recolheu com as crianças e funcionou embora ninguém tivesse a menor ideia do que era teatro.
Mais uma vez entra a sedução. Junto aos técnicos da capital que acabaram colaborando e ensinando as espevitadas interioranas, junto ao pessoal da própria cidade que ajudava a vender ingresso. O grupo, na época umas 20 pessoas, percebeu que tinha elementos para funcionar efetivamente. Produção, dramaturgia, elenco. Quer dizer, mal-e-mal. Fizeram oficinas, foram agregando simpatizantes, como Bete e Soraia, até hoje no grupo, e surgiram com um espetáculo, Um, Dois, Três, Agora É Nossa Vez. O verdadeiro ponto de partida do grupo que atualmente tem sete montagens no repertório, duas delas infantis, e prepara-se para montar o Ciclo do Ouro com estreia prevista para junho. A história do Ponto de Partida dá um livro, envolvendo nomes como Cacá Carvalho, Adélia Prado, Eva Wilma, Fernanda Montenegro, Jorge Amado, Carlos Drummond e Guimarães Rosa, com a aprovação de seus descendentes, Bia Lessa e, entre outros, Sérgio Brito, praticamente sequestrado no Rio por Ivanée Bertola e que se apaixonaria pelo grupo. Ivanée faleceria em 2003. É dele a frase, “em momentos de crise você chora ou vende lenços. Prefiro a segunda opção”.
Milton foi seduzido para participar de Ser Minas Tão Gerais, um espetáculo que também trazia meninos da comunidade carente de Araçuaí com quem o grupo se apresentou em São Paulo recentemente e com quem mantém um trabalho constante. Os meninos pertencem ao coro do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento, uma ONG criada por Tião Carvalho, quatro gerações se sucederam, sendo que alguns dos primeiros tornaram-se profissionais da área. O grupo tem vários projetos de cunho social. Seriam quatro espetáculos que se transformaram em quatro anos de apresentações. Milton chegou arredio cercado por sete assessores. Em poucas semanas dispensou o hotel, ficou só com um secretário e passou a ser tratado por Bituca. Em tempo, a Universidade Música Popular foi criada para os músicos do grupo atuarem como mestres e para Pablo ter uma formação.
E três décadas depois o Ponto de Partida, que já se apresentou com sucesso na América Latina e Europa, segue seduzindo. E vendendo lenços. De finíssima qualidade.
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