Uma vida pela paz

A . Roulet
História longa – Em 1972, durante operações da ONU no Sudão do Sul, na África, Vieira de Mello operando um rádio na cidade de Juba

Lembro bem. Seria um dia como qualquer outro aquele 19 de agosto de 2003. Era uma terça-feira. Dirigi-me à Pontífice Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), no bairro de Perdizes, logo cedo. Ali permaneci lecionando até por volta de 10h30min. No caminho de volta para casa, como de costume, liguei o rádio do carro e fui surpreendida com a impactante notícia de uma explosão que acabara de acontecer, resultado de um grave atentado terrorista, que fez ir pelos ares o Hotel Canal, no bairro Zeuna, em Bagdá, onde funcionava a sede da Organização das Nações Unidas (ONU), no Iraque, quando o país era ocupado pelas tropas do Exército dos Estados Unidos. Dezenas de pessoas, entre elas, o brasileiro Sérgio Vieira de Mello, Alto-Comissário para Direitos Humanos e representante especial da organização naquele país, estariam sob os escombros.

A expectativa era que muitos estavam mortos. Sérgio também, provavelmente. Ansiosa, atenta e chocada, acompanhei o noticiário durante todo o dia. Sérgio ficara vivo por um tempo. Não tivera morte imediata. Ele agonizou por cerca de quatro horas, enquanto, com seu telefone celular, dirigia orientações à equipe de resgate que, entre as ruínas, a fumaça e as chamas, tentava chegar até ele. Quando chegou, nada mais pôde fazer, já era tarde para salvá-lo. O que eu tanto temia aconteceu.

Tive a honra de conhecer Sérgio quando, na qualidade de promotora de Justiça, atuei no Tribunal Penal instituído durante a Administração Transitória da ONU em Timor Leste. Como chefe da administração interina, foi ele quem me deu posse no cargo em solenidade realizada em Dili, no mês de agosto de 2001. Nos sete meses que permaneci naquele país, pude constatar a magnitude do trabalho desenvolvido por ele, visando ao restabelecimento da paz, da democracia, dos direitos humanos e da justiça para o povo timorense, em um dos mais ambiciosos projetos da comunidade internacional. Éramos, de fato, amigos.

No gigantesco processo de reconstrução de Timor-Leste, os assuntos à sua volta se atropelavam numa melindrosa gerência de prioridades que ele soube conduzir com seu invejável talento para o diálogo e a capacidade de conciliação. Angariou, por isso, simpatia, respeito e gratidão do povo timorense que o tinha como  amigo verdadeiro. A sólida reputação do brasileiro nas Nações Unidas foi conquistada ao longo de mais de 30 anos de trabalho de campo em situações de alto risco, como no Sudão, no Líbano, no Camboja, na Bósnia e no Kosovo.

ACNUR/W. Van Ed Linde
Serenidade – Sérgio Vieira de Mello em viagem à zona de guerra no Camboja, em 1992. O brasileiro teve vida extraordinária na luta pela paz

Sérgio assumiu o Governo Transitório em Timor Leste em outubro de 1999, pouco depois do envio de tropas da ONU para conter a onda de violência que tomou conta do país após a realização de um referendo, em agosto, no qual 78,5% dos timorenses votaram a favor da separação da Indonésia. Cerca de mil pessoas foram assassinadas por milicianos pró-Jacarta. Permaneceu na condução do processo de transição até que o país obtivesse sua plena independência em maio de 2002, após a eleição de Xanana Gusmão. Em cerimônia de grande simbolismo, passou à Xanana a “chave” do país. Carioca, ele viveu mais tempo fora do que no Brasil. Contudo, nunca deixou de se sentir verdadeiramente brasileiro, condição que ostentava com orgulho e frisava sempre que possível.

Os únicos passaportes que possuia eram os do Brasil e o azul da ONU. “Não troco o meu passaporte brasileiro por nenhum outro”, afirmava sorrindo. Como bem observou Mario Vargas Llosa, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo de 24 de agosto de 2003, Sérgio tinha tanto encanto pessoal que, encontrando-o pela primeira vez, podia-se confundi-lo com um desses diplomatas de salão, pura fachada e nada dentro, aos que Jorge Edwards uma vez chamou de “os tigres do coquetel”. Na realidade, o homem elegante, que seduzia seus interlocutores de imediato com sua desenvoltura e suas maneiras, era excepcionalmente capaz e preparado – fez doutorado em filosofia na Sorbonne – que passou boa parte de sua intensa vida rodeado pelo horror das guerras civis e genocídios étnicos, matanças religiosas e fanatismos nacionalistas.

O brasileiro também vivenciou hecatombes sociais de refugiados, imigrantes e minorias perseguidas, trabalhando com tanta vontade quanto astúcia e habilidade para encontrar solução para os mais terríveis problemas de nosso tempo – e,  se a solução integral não fosse possível, pelo menos para aliviá-los e atenuar o sofrimento e a penúria dessas imensas massas de vítimas espalhadas pelo planeta a cada dia pela  intolerância, estupidez e cegueira dos fanáticos, donos das verdades únicas. Homem de confiança e amigo do secretário-geral da ONU Kofi Annan, era apontado como sucessor deste no comando da organização. Antes, porém, mais uma missão: coordenar a ajuda internacional e a devolução da soberania ao sofrido povo do Iraque. Com a experiência angariada no trabalho em territórios alvos de atuação de grupos terroristas, sabia, por óbvio, que na missão iraquiana arriscava a vida a cada instante.

Agora, a atuação de Sérgio visava à reconstrução das instituições de um país destruído. Seu desejo manifesto era de que Iraque fosse legitimamente entregue ao seu povo e recuperasse sua soberania. Como representante especial da ONU, não queria ver vinculada a imagem da organização à das forças de coalizão. Sobre o sentimento negativo do povo iraquiano em relação à ocupação, chegou a dizer certa vez: “Eu também não gostaria de ver tanques de guerra em Copacabana”. 

Se algum consolo pode restar diante de tão insano incidente, é o fato de Sérgio Vieira de Mello  haver morrido trabalhando pelo que fez ideal de  vida – a causa  da paz para a humanidade.


Comentários

Uma resposta para “Uma vida pela paz”

  1. Avatar de AMANDA VITORIA CAVALCANTE MACHADO RODRIGUES
    AMANDA VITORIA CAVALCANTE MACHADO RODRIGUES

    MINHA GENTE VOEIS TEM QUE TER MAIS INFORMAÇÕES PORQUE MINHA PROFESSORA DE ARTES MANDOU EU E MINHA AMIGAS FAZEREM UM TRABALHO FALANDO SOBRE A OBRA DELE DERA QUE E DIFICIO ENTEMDER OBRA OBRA DELE OBRIGADA E ESPERO QUE OUTRA VEZ QUE UE VIR NESSE CITE VOCEIS TENHAM ENTEDIDO ISSO.

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