Aos 83 anos, um brasileiro que nasceu na Alemanha e lutou na Segunda Guerra Mundial colocou uma placa de “vende-se”, à entrada da Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN), com oito alqueires preservados de Mata Atlântica, que criou em Rio Claro, no Estado do Rio de Janeiro, após se aposentar como empresário. Queria defender a natureza e os índios, o grande sonho da sua vida. Mas chegaram ao fim os recursos e a força dos braços de Nikolaus Heinrich Witt, um personagem incomum perdido no meio da estrada de Barra Mansa a Angra dos Reis, onde fica o “Sítio Fim da Picada”. Na varanda da casa onde mora sozinho, sem mulher e sem cachorro, cercado por fotografias de antepassados e objetos de artesanato indígena, ele contou à reportagem da Brasileiros sua longa, rica e acidentada trajetória de vida, até virar dono de um pedaço do que restou da Mata Atlântica, que agora pode ser comprado pelo módico preço de 700 mil reais. O problema é que ele vende a propriedade de porteira fechada, até com a réplica de uma aldeia tupinambá do século XVI, mas não quer sair de lá… “Posso ficar aqui como uma espécie de espírito, dando consultoria para o novo dono. Não sei se a pessoa vai concordar, mas já deixei até documento no cartório: quero ser enterrado aqui.”
“RPPN Sítio Fim da Picada”. Uma placa turística, às margens da rodovia RJ-155, indica o caminho das pedras: 10 km depois de Rio Claro, cidade de 17 mil habitantes, na bacia do rio Paraíba do Sul, a três horas e meia de viagem de São Paulo e duas do Rio de Janeiro.
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A estrada de terra que leva ao sítio, beirando as águas ainda limpas do rio do Braço que corre entre pedras, está bem conservada, apesar das intermináveis chuvas de janeiro. Em volta, pequenas propriedades, casas de campo de famílias cariocas que vêm passar férias e finais de semana.
No final de uma subida íngreme, encontramos a figura já nos esperando. Lembra um pouco o ex-presidente Ernesto Geisel, com quem já chegou a ser confundido. Caminhando com dificuldade, por causa das sequelas de uma ferida feita por estilhaços de bala no final da Segunda Guerra, que até hoje o incomoda e o obriga a tomar antibióticos, Nikolaus vem nos receber em um platô onde fica a sua casa de 50 m2, sem paredes internas nem escadas, com uma bela varanda em toda a sua volta.
“Construí esta casa já pensando em quando ficar velho…”, brinca, com seu humor brasileiro e organização germânica. Sobre uma grande mesa de angelim-pedra talhada por ele mesmo, com temas indígenas, da flora e da fauna e o brasão da cidade de Rio Claro, já deixou preparado o lanche para as visitas: biscoitos alemães amanteigados, damascos secos e suco de uva.
Antes de sentarmos à mesa para conversar, ele faz questão de mostrar seu pequeno museu indígena, com pinturas, armas e peças de artesanato dos tapirapés, em que se destaca uma canoa talhada em cedro, trazida do Araguaia de caminhão. Na entrada da casa, Nikolaus pintou, no ano passado, dois grandes painéis – um azul, representando a Lua (xá-y), e outro, amarelo, o Sol (auana-y). Ao lado da porta, encostada à cadeira, pontifica uma respeitável borduna. “É o meu vigia virtual, no mundo hoje tudo é virtual… Mas não escreve isso que vão pensar que estou ficando gagá…”
As vistas já fraquejam (sofre de uma doença chamada mácula), a memória falha e se embaralha, mas ele continua lúcido. Não perdeu a alegria de viver, apesar das dificuldades que enfrenta para embalar seu sonho. Em 2007, lançou, finalmente, A Estrada da Vida – Recordações, Sonhos e Esperança, seu livro de memórias, que passou anos escrevendo e reescrevendo. Orgulhoso da obra, faz questão de nos entregar o livro autografado antes da entrevista começar.
No prefácio, escreveu Dom Waldir Calheiros, bispo emérito de Volta Redonda, cidade fluminense onde Nikolaus viveu por muitos anos: “Gostei de observar seus sonhos, não precisa ser Freud para interpretá-los. Quem não sonha não vive. Outra riqueza que você nos revela: não há idade para os sonhos”.
Brasileiros – Muito bem, seu Nikolaus, agora nos conte como o senhor veio parar aqui no “Fim da Picada”?
Nikolaus Heinrich Witt – Meus pais faleceram, eu me aposentei e então resolvi realizar um antigo sonho: trabalhar pela manutenção da cultura indígena e, ao mesmo tempo, pela preservação do meio ambiente, defender a natureza.
Isto foi em 1997. Em Volta Redonda, Nikolaus vendeu sua loja de material de construção, que montou depois de desistir da indústria de tijolos refratários herdada do pai, Dietrich Witt, um químico que nasceu em Manaus, no final do século XIX. Os primeiros registros da família Witt no Brasil datam de agosto de 1825, como informa um contrato comercial que Nikolaus guarda em uma pasta de documentos e fotografias. Os Witt exportavam para a Alemanha algodão, cacau e açúcar, e importavam de lá implementos agrícolas.
Após a morte da mãe, Paula, que nasceu em Thüringen, na Alemanha, o empresário aposentado foi à luta em busca de uma terra para plantar seu sonho. Nikolaus gosta de dizer que é brasileiro nato, embora tenha nascido em Berlim, onde Dietrich foi estudar e conheceu Paula (pelas leis alemãs, o filho recebe sempre a nacionalidade do pai).
O primeiro estranhamento, dos muitos que Nikolaus provocou entre os vizinhos quando comprou o sítio, foi exatamente esse: “Como é que um brasileiro nato pode ter este nome e falar com sotaque de alemão?”. Embora tenha vindo para o Brasil ainda jovem, após a Segunda Guerra Mundial, ele nunca perdeu esse sotaque típico, assim como também aconteceu com minha mãe, Elisabeth, que por acaso se casou com um outro Nikolaus, meu pai. Ela morreu aos 87 anos, sem aprender a falar português direito, com dificuldades para acertar o masculino e o feminino, o singular e o plural e as conjugações verbais.
Brasileiros – E onde entram os índios nessa história, seu Nikolaus?
N.H.W. – Desde o começo da década de 1970, eu ia pelo menos uma vez por ano ao Mato Grosso para ajudar os índios tapirapés, que viviam na ponta norte da Ilha do Bananal. Aqui mesmo na região, eu fiz amizade com os ñandevas, da nação Guarani. Com a construção da Rio-Santos e da usina nuclear de Angra dos Reis, eles se espalharam e se perderam por aí.
Nikolaus sempre gostou de viajar pelo Brasil e pelo mundo todo. Na mesma época em que resolveu comprar o sítio, marcou uma viagem para o Egito. Ao encomendar uma calça na alfaiataria, em Volta Redonda, falou dos seus planos. Lá, ficou sabendo que tinha uma terra para vender no vilarejo de Santana, em Rio Claro, exatamente aqui onde estamos conversando agora.
No dia seguinte, o sonhador e o alfaiate pegaram a estrada rumo a Santana. “Ficamos andando, andando de carro, as estradas não eram boas como hoje, até chegarmos à divisa da Serra D’Água, onde havia várias nascentes. É aqui, ele falou, e eu fiquei encantado na hora. Fechamos negócio.”
Nikolaus voltou lá sozinho, várias outras vezes, para conhecer cada pedaço da sua nova propriedade. Certo dia, deu de cara com uma clareira no fundo do terreno, onde antigos proprietários produziam carvão. Foi ali que ele resolveu construir a réplica de uma aldeia indígena, antes mesmo de erguer sua primeira casa – na verdade, um casarão de 400 m2, que hoje serve de sede para a RPPN, mas está abandonado por razões que iremos conhecer daqui a pouco (nosso entrevistado costuma viajar no tempo e no espaço, e dá muitas voltas para responder às perguntas em ordem cronológica).
Montada a aldeia, e depois de abrir três trilhas na mata fechada, Nikolaus começou a trazer todo ano índios tapirapés da Ilha do Bananal para apresentações. Eles mostravam suas tradições culturais e seu cotidiano a grupos de estudantes e turistas, em sua maioria, europeus. Todas as despesas de transporte, hospedagem e alimentação eram bancadas por ele. Os índios podiam também vender as peças do seu artesanato e toda renda era destinada a eles.
Tudo ia muito bem, do jeito que Nikolaus planejara, com a ajuda de várias empresas alemãs, que patrocinaram seu projeto na RPPN, até o dia em que um vizinho, coordenador de turismo de uma faculdade particular no Rio, incomodado com o movimento de ônibus e de gente na região, resolveu denunciá-lo ao Ministério Público, por explorar os índios e “montar teatrinhos sem função pedagógica”.
“Ganhei uma denúncia, você pode acreditar nisso?…”, não se conforma até hoje. Em 2005, o Ministério Público acolheu a denúncia e somente em junho de 2009 o processo foi extinto, com Nikolaus sendo declarado inocente. Nesse meio tempo, proibido de prosseguir suas atividades ligadas à cultura indígena, ele perdeu os patrocínios, os recursos e o ânimo para cuidar da reserva. As trilhas e a aldeia foram tomadas pelo mato.
Até hoje, Nikolaus está abalado com esse processo e, cada vez que vai falar o que pensa sobre o assunto, corta a frase no meio. “Não vou falar nada. Isso pode dar outra denúncia.” O pior de tudo, para ele, é ser acusado de explorar os índios, seus amigos – justo o velho Nikolaus, que correu o mundo em busca de ajuda para a aldeia dos tapirapés (caminho da anta), amigos dos xavantes e inimigos dos caiapós. Conseguiu levantar recursos até no Principado de Liechtenstein para levar água potável à aldeia, que na época contava com 200 índios.
Foi uma saga levar os equipamentos até lá, nos fundões do Mato Grosso. A bomba d’água ficou presa durante meses na alfândega do Rio. Depois de liberada, levou três dias para chegar de caminhão e barco até Santa Terezinha, a cidade mais próxima da aldeia, junto com os equipamentos para produzir energia solar e os remédios, recursos fornecidos com a ajuda das empresas Mercedes, Volkswagen, Siemens e Bayer.
Nas voltas que a vida e o pensamento de Nikolaus dão durante a conversa, ele de repente volta ao tempo da guerra para contar que foi convocado no mesmo ano – 1944, já no final dos combates -, pelos exércitos da Alemanha e do Brasil, pois tinha dupla nacionalidade. Como estava na Alemanha, lá engajou-se na cavalaria e chegou até Varsóvia, onde um estilhaço de granada atingiu sua perna direita, que dói até hoje.
Feito prisioneiro no front russo, quando a guerra já estava acabando, foi liberado para voltar para sua casa em Berlim, por conta do ferimento. Lá, tornou-se tradutor na missão militar brasileira, chefiada por Aurélio Lira Tavares, um poeta que chegou a general, e que, em 1969, faria parte da junta militar que assumiu o poder após a morte do marechal Costa e Silva. Apesar desse trabalho na missão brasileira, foi considerado “submisso” quando chegou ao Brasil, em 1948, por não ter atendido à convocação do Exército.
As histórias dos seus nobres antepassados de Hamburgo no século XIX, as peripécias e desventuras na Grande Guerra do século XX e os embates para criar e defender a RPPN “Sítio Fim da Picada”, no século atual, foram contados em seu livro de memórias, que teve tiragem de apenas 200 exemplares e vendido a R$ 40. Não chegou a ser um best-seller. No capítulo 13, o último do livro, lê-se, à página 281, seu relato sobre os primeiros tempos no sítio:
“A mudança de Volta Redonda para Rio Claro praticamente era o início de uma nova vida. Sem conhecimentos, sem amigos. Tudo novo! De início, até a mão-de-obra eu tive de trazer de Volta Redonda. O processo burocrático para a legalização da RPPN, naquele tempo, era muito mais complicado do que hoje em dia.
(…) Organizei as primeiras trilhas da RPPN. Como eu poderia dar acesso à natureza sem ter um parque organizado? Minha intenção era mostrar aos jovens o efeito danoso do desmatamento e do ciclo do carvão vegetal para a região. Levei as trilhas perto dos fornos desativados que achei em toda parte.
Mostrando os fornos de carvão, as crianças compreendem o desmatamento da década de 1940. (…) Ao falar sobre a importância da preservação da fauna, um menino disse à professora que não freqüentava a escola porque, caçando passarinhos, ganhava mais dinheiro do que o pai que trabalhava na prefeitura.”
A mão de obra da RPPN “Sítio Fim da Picada”, uma das reservas pioneiras do Estado do Rio de Janeiro, hoje se resume ao faz-tudo Wellington Alessandro, de 32 anos, que Nikolaus chama de secretário-geral. Está lá desde o início. Vive com a mulher e um casal de filhos numa casa construída por ele mesmo dentro da reserva, no meio da mata.
Tendo por vizinhos apenas jacus, pacas, tatus, lagartos, cobras, gambás e jaguatiricas, entre outros bichos, Alessandro é pedreiro, motorista, jardineiro, encanador, eletricista e cuida de uma cisterna de 100 mil litros ao lado da casa de Nikolaus, que é alimentada só por água da chuva. No sítio já teve apiário e piscicultura para ajudar a pagar as despesas, mas tudo foi acabando com o tempo. Hoje, o “Fim da Picada” não gera nenhuma renda e não recebe ajuda de ninguém. Só restam dos bons tempos, pendurados nas paredes da casa, os muitos diplomas de honra ao mérito que Nikolaus recebeu.
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Brasileiros – E como o senhor sobrevive?
N.H.W. – Vou remando… – responde ele, sem amargura, apenas constatando uma realidade.
Brasileiros – O senhor ao menos tem um plano de saúde?
N.H.W. – Não, não preciso. Eu tenho saúde…
Espírito de carioca, diverte-se com ele mesmo e com as histórias que conta, lendas do tempo da escravidão, como a do padre que encontrou uma índia tupinambá, povo conhecido por seus rituais antropofágicos, assando um braço humano na panela. “É o fim da picada, vamos embora!”, gritou o padre aos seus acompanhantes, segundo Nikolaus. “Daí que veio o nome do sítio… A panela de ferro está lá na entrada, vocês viram? É o meu monumento…”
Brasileiros – De onde vem esse teu bom humor?
N.H.W. – O humor vem dos apertos que passei na vida. Se não fosse assim, não teria chegado até aqui… Por tudo que fiz pelos índios, a vida toda, mereceria um agradecimento, mas ganhei uma denúncia…
Ao saber do processo que estavam movendo contra ele, procurou a ajuda de um defensor público, mas o juiz negou seu pedido. “Ele falou que quem tem sítio, tem recursos, não precisa de ajuda. Só que eu não tinha mais dinheiro.”
Quem recebe o título de uma RPPN do governo fica isento do pagamento do imposto territorial rural e, em troca, é obrigado a manter a área cercada, livre de invasores. “De que jeito, se não podemos usar armas? A área é grande e o pessoal se acostumou a pegar madeira aqui para fazer lenha. Eles só não vieram mais quando baixou o preço do botijão de gás para o fogão. É curioso, o botijão de gás salvou a mata…”
A Secretaria de Meio Ambiente da Prefeitura de Rio Claro chegou recentemente a fazer um plano de manejo para que o “Sítio Fim da Picada” pudesse continuar recebendo visitantes. Custaria R$ 1.500 por mês o serviço de manter limpas as trilhas e pagar um guia para orientar os turistas e estudantes. “Mas a Prefeitura não tem esse dinheiro também… Até fazer 80 anos, eu mesmo limpava as trilhas. Depois que voltou o problema na perna, não consigo mais andar muito. O médico me recomendou repouso.”
Apesar do conselho para descansar mais, Nikolaus continua acordando todo dia às seis da manhã, sem precisar de despertador. Vive sozinho, depois que sua última namorada, com quem tinha um “relacionamento estável”, foi embora para Poços de Caldas para tratar do cachorro que ficou doente no sítio. Nikolaus nunca se casou, não teve filhos e não gosta de cachorros. Prepara suas próprias refeições.
No café da manhã, uma bisnaguinha de pão com geleia de jabuticaba ou laranja, que ele mesmo faz no sítio, uma cenoura crua e um copo de leite achocolatado. Na sua pequena horta, além de cenoura, planta taioba, batata doce, mandioca, mamão e ora-pro-nóbis, uma verdura muito comum em Minas, que cresce como mato junto às cercas. Ao meio-dia, serve-se o almoço: arroz, feijão, verduras e, às vezes, um pedaço de frango. Não janta, só faz um lanche à base de iogurte e banana. Não fuma e parou de beber cerveja quando fez 50 anos. Não ouve rádio nem vê televisão, desde que a antena quebrou e ele nunca mais mandou consertar. Apesar das enormes lupas sobre a mesa de trabalho, não consegue mais ler um livro. Como se vê, sua vida é cheia de “não”.
Brasileiros – O que o senhor faz então o dia inteiro para passar o tempo?
N.H.W. – Fico pensando como projetar coisas, tendo ideias…
De ouvir música ele gosta, tanto óperas italianas como as canções sertanejas de Sérgio Reis. Uma vez por semana vai à cidade para pegar a correspondência na caixa postal. Alessandro lê para ele, mas as cartas chegam cada vez mais raramente. Vai ao barbeiro, ao mercado e conversa com a mulher que vende cocada em frente ao cemitério. “É lá que fico sabendo o que está acontecendo no mundo.”
A mulher o trocou pelo cachorro, vive da aposentadoria do INSS, algo em torno de R$ 1.700, anda e enxerga com dificuldade, mas é um homem otimista, na grande mesa da varanda, ele talhou em algarismos romanos o ano em que acha que vai morrer: 2030.
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