Vida a céu aberto

Há pessoas que cambaleiam, mas não caem nas ruas do centro de São Paulo, cambaleiam para ir além. Alemão vem de longe em titubeios, pisa no Mercado das Flores com intimidade, caminha numa dança de braços estendidos ao ar. Sabe que o Largo do Arouche é lugar que suspende o tempo para que tudo venha a ser o que é. Lugar de múltiplas cidades, da violência e do romantismo da década de 30, de gays e skinheads, de travestis e costumes de velhos moradores. Desempregados, ex-presidiários e pedintes dividem os bancos da praça, cães e crianças correm atrás de bolas, todos buscam a luz do sol como a mulher nua de Brecheret e as árvores de raízes imensas presas ao chão que não deixam de apontar com seus galhos para o céu.

– Onde você quer sentar? Essa daqui é minha sala. Os olhos do migrante catarinense deitam sobre a casa sem paredes, de privacidade pública.
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– Sou artesão, trabalhava com couro, desenhava roupas, sandálias…

Um vira-lata malhado de branco e marrom lhe volta os latidos.

– Ele me reconhece, estás vendo?

Alemão ri sem deixar de sentir a agressividade do vira-lata esguio que passeia orgulhoso com seu dono de cabelos grisalhos. Os latidos são acusações que fogem da indiferença dos carros que disputam a dianteira na Rua Vitória e seguem em direção à Estação da Luz; dos pedestres que sequer se dão conta de sua presença e mantêm os passos apertados, sentido Metrô República; dos policiais que o percebem e feito cães com pedigree não se misturam, preferem delimitar o território com um andar que mais observa do que caminha.

Do outro lado da praça, três figuras ganham destaque:

– Aquele lá é o Roberto, ex-jogador de futebol do Palmeiras. Ele está com trombose nas pernas, por isso fica deitado. O outro ali sentado é o Cunha, contador, trabalhou em vários bancos, teve uma transportadora. E aquele, de pé, é o Cleber, foi jornalista da Globo.

Alemão os apresenta assim, nome seguido de profissão porque morar na rua não é só sentar na praça e olhar as pessoas que passam. Morar na rua é reconhecer-se o tempo inteiro. Raciocínio dolorido que mistura o real ao imaginário, de quem conta, de quem escreve e de quem lê. Invenção de verdades por onde a vida escapa e lembranças aparecem.

– Eu vim para a rua porque minha vida perdeu o sentido quando minha mãe morreu. Diz Roberto.
– Eu me revoltei com Deus, sempre fui comunista, diz Cunha.

– As coisas perderam o sentido aos pouquinhos… Diz Alemão.

– Eu cansei… Diz Cleber.

Ao narrar suas histórias, Alemão, Cleber, Roberto e Cunha nos convidam a caminhar com suas vidas. Suas histórias são fragmentos daquilo que viveram e recolheram nas ruas. Deixaram esposas, filhos e trabalho e uniram lembranças para esquecer.

Miséria da criação
O escritor carioca João do Rio já falava, em 1908, que a rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo, e que há suor humano contido na argamassa do seu calçamento, o que a transforma na mais igualitária, mais socialista e mais niveladora obra humana.

Herovaldo Beirão Cunha está há cinco meses nas ruas e sente nos nervos a miséria dessa criação: um talho cicatrizado no alto da testa e na palma da mão direita, um corte recente no pescoço e no braço direito, e olhos desconfiados a observar o que acontece num raio de quilômetros que vistas comuns pouco alcançam.

Comunista do PC do B, exilado na ditadura, aprendeu nos porões das cadeias a ficar meio ereto, sem deitar, por causa da água pelas canelas, e impedido pelo teto baixo de esticar o corpo. Agora nas ruas, inventa forças para erguer o peso do abandono que o quer tombar.

Não é magro, nem gordo, embora tenha bochechas carnudas e barriga saliente. Troca de roupa com freqüência. Um dia calça preta, noutro bermuda verde, blusa branca, camiseta amarela e sempre de sandálias. Os sulcos da pele dourada pelo sol convivem em harmonia com a barba mal-aparada, não tem o sotaque dos de Maringá, Paraná, terra onde nasceu.

Ainda menino mudou-se para Mato Grosso do Sul, e logo depois, São Paulo. Antes do golpe de 1964 abriu uma transportadora que trabalhava com importação e exportação, e lhe rendeu viagens para o Chile de Salvador Allende. Sendo militar, conviveu bem com o golpe até a chegada de João Baptista Figueiredo. Foi quando entrou clandestinamente para o PC do B e acabou sendo preso ao fazer panfletagem contra o presidente. Não foi expulso do País, mas convidado a se retirar. Voltou para o Chile, que dessa vez já estava sob o domínio de Pinochet.

– Não parei mais de viajar, evitava capitais, como Santiago ou Buenos Aires, por medo que soubessem do meu histórico.

Aos 49 anos, Cunha conhece boa parte da América Latina: Iquique no Chile, Machu Picchu no Peru, Caiena na Guiana Francesa, Georgetown na Guiana Inglesa, Colômbia, onde trabalhou com as Forças Armadas Revolucionárias (Farc), Paraguai, Uruguai e por ai enveredou-se ainda com a transportadora.

Naquela manhã de outubro esperava um ônibus que o levaria para São José dos Campos. Pela segunda vez se internaria numa clínica de desintoxicação, se o ônibus tivesse vindo.

A primeira foi em 2002, quando sua empresa faliu. Ao sair da casa de recuperação Cunha deixou para trás dívidas, seis ex-esposas, sete filhos e o vício em cocaína.

Pela frente tinha Roberto sentado no Largo do Arouche, bebendo.

– Tropecei na perna dele e cai num copo de pinga. Desde então, fiquei por aqui.

Cunha não pretende viver para sempre nas ruas, diferente de Roberto, que já escolheu o lugar onde vai morrer.

– O Beto quer morrer ali naquela luminária. Cunha aponta para o centro da praça. Na morte, Roberto escolheu sair da margem; seu corpo seria velado pelos olhares de quem passa, numa cerimônia involuntária.

Roberto Ari Pereira da Silva é negro, um grande homem deitado no chão. Traz as canelas enfaixadas por causa da trombose, sorriso de dentes separados que procuram espaço entre o bigode, cavanhaque comprido que acentua o jeito matreiro, mistura de menino e malandro que aprendeu cedo. Foi ali no largo que, aos 13 anos, Roberto iniciou uma carreira sem sucesso de pequenos roubos. A praça ainda guardava um banheiro público, onde conseguiu o seu primeiro relógio, roubado de um senhor que urinava. Se diz irmão de Carlos Eduardo da Silva, o Edu Bala, que ganhou o apelido por causa de sua velocidade em campo. Edu nega o parentesco. No entanto, entre as histórias de Roberto, ficou gravado o dia em que mostrou para o pai que não só o irmão poderia ser jogador.

– Foi no Pacaembu, eu era reserva da Portuguesa, enchi tanto o saco do treinador que entrei no jogo. Parei no meio do campo e chutei, a bola entrou na junção das traves. Foi um gol lindo, que dediquei ao meu pai. Roberto coloca a mão espalmada no coração e em seguida aponta para a arquibancada imaginária, onde o pai estaria sentado.

Esse teria sido o começo de sua carreira no futebol, a qual a Portuguesa não guarda registros.
(Roberto é um nome muito comum e é difícil guardar nomes de reserva. Diz João Marques, coordenador administrativo do clube, que não nega nem confirma a presença de Roberto no time.)

Coincidência ou não, a trajetória descrita por Roberto foi a mesma feita por Edu Bala, que, descoberto pela Portuguesa, foi emprestado para o Palmeiras, onde ficou conhecido, e terminou sua história no São Paulo.

A diferença é que Roberto seria reserva. Aos 30 anos tudo já estava acabado, ele teria pedido para a sua esposa ficar na casa de uma tia, fecharia o apartamento em Taipas, zona norte paulistana, e iria embora. Logo arranjaria um trabalho como caboman na TV Bandeirantes, onde ficaria por cerca de um ano. Aos 43 anos e há quase quatro nas ruas, Roberto ainda não conseguiu se livrar da incompreensão que o levou para lá. Tanto esforço para sair da Brasilândia, cuidar de 24 filhos de 18 casamentos diferentes, e de repente não havia esforço suficiente para evitar que dona Castalha morresse em seus braços de um tumor cerebral.

Cleber entende Roberto, os dois foram os primeiros a fazer amizade ali na praça. Se conheciam da tevê. Cleber trabalhava na produção do programa de calouros infanto-juvenil do Darcio Campos e Roberto no conhecido Clube do Bolinha.

Cleber Lacerda Pinto tem 58 anos, olhos castanho-escuros, cabelos lisos, pretos, já bastante grisalhos. É um lorde inglês. Educado, não se mistura à garotada que circula pelo Largo do Arouche em busca de drogas mais pesadas. Diante de palavrões malcriados, Cleber dispara frases em línguas diferentes para colocar cada um em seu lugar:

– Do you speak english? Parlez vous français? Hablas español?

Com uma mochila azul gigante nos ombros, ele entra e sai da praça. Seu humor se alterna entre depressivo e altivo. Já não lhe resta documento algum que comprove que atuou como figurante para Mazzaropi.

(Ele trabalhou em vários filmes produzidos na Boca do Lixo, na Rua do Triunfo, conta o diretor do Sindicato dos Artistas, Paulo Delmondes, amigo de Cleber desde a década de 80.)

Cleber também foi jornalista da Record, Cultura, Bandeirantes, Rede Globo, mas teve toda a sua documentação roubada numa noite no início desse ano: DRT, RG, CPF, Carteira de Trabalho e Título de Eleitor.

Há cinco anos nas ruas por causa do alcoolismo, Cleber briga com a tristeza que volta e meia lhe racha o rosto, esculpindo a saudade das três filhas, das cinco ex-esposas, do trabalho, de seus sapatos engraxados, de suas roupas limpas, de suas aventuras em Cuba, onde, exilado, conheceu Fidel Castro, de suas viagens pela América Latina.

Só que o maior fantasma que Cleber enfrenta desde a hora em que acorda até o instante em que fecha os olhos é a ausência de sentido que a vida tem.

– Não sei ao certo por que vim parar aqui, desespero de causa, talvez… Tudo perdeu o sentido. Estar e não estar em casa, trabalhar e não trabalhar, comer e não comer.

Com Reinaldo Camargo, o Alemão, também foi assim. Há sete anos no Arouche, busca um jeito de viver à sua maneira. Quando veio para São Paulo, não tinha a malícia que hoje, aos 42 anos, o faz andar como quem não pisa no chão e o permite guardar no olhar a ingenuidade de quem espera que o mundo o surpreenda.

Buscou a rua pela primeira vez quando seu filho, antes de completar um ano, morreu ao cair numa vala atrás de sua casa, em Perequê, Santa Catarina.

(“Ele havia comprado dois cabritos para a festa de batizado do guri. Depois disso se revoltou, não tinha como segurá-lo aqui. Cada um escolhe o seu caminho, não é?”, indaga Frida Fernandes, mãe de Alemão, que não sabe que o filho mora na rua. Há tempos ele não liga, esqueceu do aniversário do pai no dia 1o de novembro e o da mãe, no dia 30 de março, o que é pouco comum, segundo a mãe: “Ele sempre ligou para a gente nesses dias”.)

O que Frida sabe é que o filho está bem, que conseguiu um trabalho no Bar do Português, localizado na esquina entre a São João e a Timbiras, e vive a comer frutas: laranja, banana, manga.

Ela não espera que ele volte para casa, Alemão sempre foi da rua, se algo o incomodava punha o pé na estrada. Foi essa comichão que o levou ao Paraguai, onde conheceu e abandonou a sua segunda esposa, grávida de seu possível quarto filho; ao Rio de Janeiro, onde morou por dois anos; e a Brasília, onde aos 21 anos entrou para o 1o Regimento da Cavalaria de Guardas Dragões da Independência (RCG).

– Eu fui ver o meu filho lá, a farda era branca, bonita. Ele sempre gostou de andar arrumadinho, não sei se ainda está assim em São Paulo. Como ele está, hem? Ele está gordo?

Alemão tem o corpo magro e forte, o rosto se alterna entre absorto em pensamentos e jovial, numa inquietude onde as mãos a todo instante cobrem os cabelos castanho-claros, num movimento de traz para frente que termina com os dedos espalmados sobre o rosto, numa espécie de tique nervoso voluntário. Ao redor da boca, vincos de quem gosta de sorrir. Com as pernas abraça o mundo.

– Faz 16 dias que eu não bebo. Quero reescrever minha história, passado, presente e futuro.

Quatro dias depois, Alemão voltaria a beber, seria espancado na mesma rua do bar e ficaria por cinco dias na Santa Casa, para tratar do baço, órgão que mais sofreu com a violência. Ninguém nas ruas toca no assunto. Para Roberto a coisa é bem simples:

– A gente vê coisas na rua. O Alemão é teimoso, fala do que vê.

Novos jeitos de existir
Era feriado e o centro estava vazio. Os quatro estavam tristes. Morar na rua é difícil, mas sem se dar conta, os quatro apostam que a vida pode existir na praça e nas ruas porque foram elas que os acolheram. A rua, lugar de vazio entre as casas, e a praça, lugar de encontros entre pessoas.

Eles reinventam o Arouche nos moldes da ágora grega, espaço de discussão de idéias dos homens livres. Livres, porém, sem cidadania, eles sentam-se à praça todos os dias e insistem em buscar dentro de si alternativas de existir. E agridem aqueles que têm medo de ver, ao estraçalhar angustias e sonhos, e inaugurar possibilidades em praça pública.

Então, na manhã daquele feriado, fazia todo o sentido sentarem-se numa roda junto a outros companheiros em frente à Rua do Arouche e fazer o desjejum.

Acomodados sobre tapetes estendidos em canteiros, travesseiros malcheirosos, cobertores sem cor e pedaços de papelão, esperavam Alemão que, instantes depois, chegaria com um pacote de pão doce e uma bandeja de balas e pés-de-moleque conseguidos numa mercearia ali perto. Para acompanhar, pinga escondida dos policiais numa garrafa de refrigerante.

– Se eles vêem a garrafa de vidro, quebram… Conta Roberto.

– De pé, oh, vítimas da fome! De pé, famélicos da terra! A idéia do povo já consome a crosta bruta que a soterra… A pedido de Cunha, Cleber, que foi do Partidão, invoca a Internacional Comunista, hino dos movimentos anticapitalistas do mundo.

Mastigando a realidade
Morar na rua não é para qualquer um. Com o passar o tempo é fácil perder-se em meio à poeira que resseca a visão e sobe pelos pés igual assombração em busca de alma.

– Morar na rua é uma briga para não desistirmos de nós mesmos.

Roupas limpas e perfume de banho recém-tomado. O asseio de Cunha era reflexo de alguns cuidados transformados em regras pelos quatro: banho três vezes por semana, roupas lavadas periodicamente, por alguns moradores do Arouche, nada de comer restos do lixo, a alimentação vem dos restaurantes, que lhes cedem marmitas, e nada de pedir dinheiro. Cunha:

– Meias e cuecas nós lavamos nos estacionamentos. Deixamos secar sobre galhos de árvores e no mato.
Eles saíram de um mundo de regras e inventaram outras, que lhes garantem existir além do que lhes é reservado. Insubordinam-se numa ousadia de sobreviver.

– Ninguém do nosso grupo fuma crack, ou cheira cola e solventes. Não mendigamos, não agredimos ninguém. E somos moradores de rua.

Cunha sabe que uma vez na rua é difícil fugir disso porque é isso que invocam quando não o deixam usar o banheiro público, ou quando o dono da primeira floricultura da praça joga água em seu rosto ao vê-lo cochilar atrás de sua loja.

E mesmo assim, os quatro preferem resistir. De dia fazem bicos, sobem a Avenida Paulista a catar latinhas, papelão, cuidam dos carros estacionados nas praças e às vezes conseguem trabalho como auxiliar de reformas de bares e apartamentos.

De noite não se juntam aos “nóias” que vão para a praça no largo. Se não encontrarem vagas nos albergues, o combinado é irem dormir na Rua Dr. Cesário Mota, logo depois da Santa Casa.

Naquele 12 de outubro, os quatro esperavam pelo ônibus com Cunha, que só voltaria dentro de seis meses. A pinga era o único vício que, até então, nenhum dos quatro ousou deixar. Naquela manhã esqueceram de Cunha, e Cunha ficou o dia inteiro na praça, na roda de amigos.

– Não queira ficar um dia inteiro na rua, é triste mesmo. Diz ele a rir pela metade.

A rua fala da solidão de não ser, espaço só de chão onde se pisa com a maestria de um malandro, que numa distração, quebra os dentes da realidade num soco, para que ela o engula sem mastigar.


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