Certo dia, após a morte dos pais, três irmãos decidiram abandonar seus empregos e toda a vida que levavam em São Paulo. O motivo: queriam partir rumo a distantes rincões do País, desbravar sertões e florestas até então desconhecidos.
A viagem em questão é a Expedição Roncador-Xingu que, em 1943, partiu de São Paulo rumo a regiões inóspitas do Brasil Central. Seus nomes: Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Bôas. Impulsionados, em princípio, pelo desejo de aventuras, descortinaram o misterioso mundo dos povos indígenas. Um mundo que, como poucos, eles compreenderam e ajudaram a preservar. E ao qual, apaixonados, dedicaram – de corpo e alma – suas vidas.
[nggallery id=15106]
Embora a portaria no 77, que criou a expedição durante o governo de Getúlio Vargas, não cite as populações indígenas em nenhum momento, a caravana terminou por descobrir que as regiões, que se pensavam desabitadas, eram na verdade habitadas há séculos pelos índios. Eles não imaginavam que a viagem, da qual pouco depois se tornariam chefes, mudaria não apenas suas próprias vidas, mas a de milhares de indígenas que encontraram pelo caminho. A aventura, que durou 42 anos, resultou – décadas depois de muita luta dos três irmãos – na criação do Parque Indígena do Xingu, em 1961, por decreto (quem diria?) do então presidente Jânio Quadros. Parte dessa saga, registrada por eles em um diário chamado Marcha para o Oeste chega agora ao cinema.
Com direção de Cao Hamburger (O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias), Xingu – O Filme, ficção inspirada no relato de viagem escrito por Orlando e Cláudio, chegará às telas em 2011, ano em que o Parque Indígena completará 50 anos. Desde o último mês de julho, durante dez semanas, o diretor e mais 140 pessoas, entre equipe e atores, seguiram as trilhas dos sertanistas. As filmagens foram realizadas em São Félix, Caseara, Palmas, Parque do Xingu e, por fim, São Paulo. Como já era de se prever, não faltaram desafios, disse Hamburger em entrevista à Brasileiros. “Os locais em que filmamos são bastante inóspitos. Tivemos de enfrentar a natureza bruta, um calor fortíssimo e até incêndios, em Palmas, por causa do ar muito seco.” Mas, segundo ele, também não faltaram disposição, bom humor e muitas emoções. “Sentimos na pele um pouquinho do que os irmãos Villas Bôas sentiram ao desbravar o Centro-Oeste brasileiro. É como uma operação de guerra.”
O convite para filmar Xingu veio de Fernando Meirelles, que tinha recebido das mãos do Noel Villas Bôas, filho de Orlando, o livro Marcha para o Oeste (Editora Globo, 616 páginas). “Não tem como não se interessar por essa história. É uma saga com elementos dramáticos e de aventura com questões filosóficas e políticas muito contemporâneas como pano de fundo, apesar de ser um filme de época”, conta Hamburger.
“O contato com os índios é transformador”
Na pele dos irmãos Villas Bôas estão os atores João Miguel, que interpretará Cláudio; Felipe Camargo, no papel de Orlando; e Caio Blat, como o caçula Leonardo. Escolha que, aliás, foi outro desafio, conta Hamburger. “Encontrar atores para interpretar irmãos é sempre difícil. Já havia passado por essa experiência em Filhos do Carnaval (série da HBO). É preciso não só a identificação do ator com o personagem, mas também, entre eles, deve existir uma unidade, uma química, que torne verossímil a relação consanguínea.”
Entretanto, a grande dificuldade mesmo, segundo ele, foi conseguir retratar em cerca de duas horas uma viagem, sem paralelo na história, com batalhas, 1.500 km de picadas abertas, 1.000 km de rios percorridos, 19 campos de pouso abertos, 43 vilas e cidades desbravadas e 14 tribos contatadas, sem falar das mais de 200 crises de malária. “Durante dois anos, ficamos fazendo a pesquisa sobre a história, lendo livros, pesquisando na imprensa, fazendo entrevistas com quem conviveu com os irmãos e com quem fez parte da história, entre índios e brancos.”
Além da pesquisa, coordenada pela antropóloga Maíra Bühler, foram mais dois anos até o roteiro final, assinado por Cao Hamburger e Elena Soares, com a colaboração da dramaturga Chris Riera, que acompanhou todo o processo e de Anna Muylaert, nos primeiros esboços do roteiro.
Hamburger conta que conhecia pouco sobre a história de Orlando e seus irmãos, por isso fez questão de uma pesquisa minuciosa. “Sabia que era algo muito grandioso e por isso, em um primeiro momento, fiquei receoso. Não queria falar de heróis nacionais superficialmente, sem poder aprofundar os conflitos e as contradições humanas. Precisávamos entender as vertentes dessa história, as nuances e o potencial dramático do enredo. Logo me apaixonei pela história e pelos personagens.”
Os obstáculos enfrentados pela equipe de Cao Hamburger no caminho transformaram a filmagem de Xingu também em uma saga. Além de enfrentar o calor extremo, o roteiro colocou no caminho uma grande variedade de cenas de ação. Teve até um acidente durante a decolagem de um avião da produção que sobrevoaria Palmas para captar cenas.
Ainda assim, Hamburger só agradece. “Pode parecer piegas dizer isso, mas não tem como não sair dessa experiência transformado. Meus conceitos de vida já não são mais os mesmos desde que cheguei aqui. O contato com os índios é transformador.”
Esse relacionamento ocorreu especialmente durante a formação do elenco indígena de Xingu, conta Hamburger. “Os atores indígenas vão surpreender. São seis personagens com maior expressão, além de 20 secundários e mais de 200 de figuração. Foi um processo muito estimulante de oficina de atuação no Parque do Xingu e em outras aldeias.” Trinta aldeias de nove etnias participaram. “Depois da escolha, houve muito trabalho e dedicação dos índios para aprenderem a atuar em cinema.”
“Morrer se for preciso, matar nunca”
Apesar de decididos a embarcar na Expedição Roncador-Xingu, as dificuldades começaram ainda em São Paulo para os irmãos Villas Bôas. Ao consultarem sobre a possibilidade de serem incluídos na caravana, tiveram como resposta apenas uma recusa ríspida. Segundo o coronel responsável pela seleção, só contratariam analfabetos, ou sertanejos, pois supostamente teriam mais resistência. E não era o caso dos irmãos Villas Bôas, que, apesar de não terem nível superior, possuíam boa formação cultural.
Não conformados, seguiram por conta própria até o ponto de partida da viagem. Para isso, saíram de São Paulo rumo a Uberlândia (MG) – também conhecida, à época, por “boca do sertão”, ou a última parada confortável no caminho para o Brasil Central. Depois, foram até Goiás e de lá, para chegar à Vila de Leopoldina (onde hoje é a cidade de Aruanã), encararam dezenas de quilômetros a pé – e mais outro tanto em um “fordinho” resfolegado, como conta Orlando em sua autobiografia. Mas, para tentarem uma vaga na viagem, ainda foi preciso subir remando por 22 dias o rio Araguaia até a antiga Barra Goiana (hoje Aragarças), onde estava localizada a base da expedição.
Chegando lá com barba por fazer e mal vestidos, foi só dizer serem analfabetos. Ninguém duvidou, e eles foram finalmente aceitos. Na primeira etapa da saga, que começa com a travessia do Rio das Mortes, foi quase um ano de caminhada. Logo no início, os irmãos Villas Bôas encontram os índios Xavantes, sem que houvesse nenhum conflito.
Contrariando a pressão do coronel Mattos Vanique, chefe da expedição, que queria uma expedição militar para “limpar o caminho”, Orlando e seus irmãos imprimiram à expedição o ideal pacífico defendido pelo Marechal Rondon – pioneiro na defesa de uma política indígena: “Morrer se for preciso, matar nunca”.
Profissão: sertanista
O encontro com os Xavantes foi apenas o primeiro de muitos. Logo depois, a caravana deparou-se com os Kalapalos, famosos e temidos por matarem o explorador inglês Fawcett. Mais uma vez, para surpresa geral, contrariando as previsões dos mais céticos, os irmãos Villas Bôas conquistam a amizade do chefe da aldeia, o índio Izarari. Porém, nem tudo foi festa. Ali, sofreram a primeira tragédia de suas vidas: um surto de gripe, trazido por eles mesmos, quase acaba com a aldeia.
Após muitas andanças por matas e sertões, foi graças a seu livre trâmite por importantes esferas políticas e militares que o sertanista Orlando Villas Bôas viabilizou a criação do Parque Nacional Xingu, em 1961 – ano da morte do irmão Leonardo. No mesmo ano, Orlando chegou a administrar o parque, onde hoje vivem mais de 6 mil índios de 16 etnias, segundo a Funasa. “O Xingu acentuou a consciência de que o Brasil é habitado por povos com grandeza cultural, com uma surpreendente diversidade linguística, uma das maiores do planeta”, afirma a antropóloga Betty Mindlin, que atua em projetos indígenas da Amazônia.
Mas, segundo o próprio Orlando Villas Bôas conta em sua autobiografia Histórias e Causos (FTD, 216 páginas), além do contato com os índios e a criação do Parque Indígena, a expedição levou um desenvolvimento surpreendente para um Brasil ainda inóspito. No livro, ele afirma : “Nasceram 40 cidades e vilas, sem falar nos pontos estratégicos, que constituem hoje pontos de apoio na segurança de voos nas rotas internas e internacionais. Até Brasília, inaugurada em 1960, foi nascida da Marcha para o Oeste“.
Orlando e seus irmãos não se transformaram apenas em heróis, são sobreviventes. Nas últimas décadas, mais de uma centena de sertanistas e auxiliares da Funai morreram na selva. Afinal, vida de sertanista não é nada fácil. Além de ganhar cada vez menos e das viagens eventualmente durarem meses, os perigos são vários e vão desde o risco de doenças até ataques de cobras, onças, ladrões e de índios.
Apesar de sobreviver a todas as agruras do ofício, Orlando foi demitido da Funai, por fax, em fevereiro de 2000, causando comoção nacional. A polêmica fez com que o então presidente Fernando Henrique Cardoso se retratasse formalmente. Além de diversas homenagens, como uma indicação ao prêmio Nobel, as aventuras do sertanista e seus irmãos renderam 14 livros. Entre eles, A Marcha para o Oeste e a autobiografia Histórias e Causos, lançada após sua morte. Orlando morreu aos 88 anos, em 2002, na capital paulista, por falência múltipla dos órgãos.
|
Deixe um comentário