Violando o silêncio

Retrato de José Rufino, junto a obra - Ad extremum, 2012. Foto: Adriano Franco
Retrato de José Rufino, junto a obra – Ad extremum, 2012. Foto: Adriano Franco
A recente história política do Brasil ainda há de ser analisada, compreendida e reescrita. Somente em novembro de 2011, a presidenta Dilma Rousseff criou uma Comissão da Verdade, a fim de investigar violações dos direitos humanos, ocorridas entre 1946 e 1988 no Brasil. Muitos ainda exigem reforma da Lei de Anistia, de 1979, que garante impunidade aos torturadores que atuaram entre 1964 e 1985. As novas medidas adotadas são essenciais para o resgate da verdadeira história do País, principalmente se atentarmos para o fato de que o ano de 2014 marcará os 50 anos do golpe militar.

A busca pela verdade e pela reconstrução de uma memória nacional tem aproximado pesquisadores, historiadores e artistas. Grandes artistas brasileiros que vivenciaram o período autoritário construíram obras que discutiram o contexto político vigente, como Antonio Dias, Antonio Manuel, Artur Barrio e Cildo Meireles. No entanto, a geração nascida imediatamente após o golpe de Estado, de modo geral, manteve certo silêncio e permaneceu afastada das questões nacionais.

Há, porém, interlocutores que se deixam envolver por essa temática. Não somente em momentos estanques, mas, conscientemente, em seu cotidiano. Um desses exemplos é o artista José Rufino. Em suas obras, desde o final da década de 1980, vê e revê seu histórico pessoal, partindo tanto do microcosmo familiar quanto do macrocosmo de caráter nacional.

No âmbito pessoal, José Rufino trabalhou um material inusitado herdado de seu avô paterno, José Rufino (cujo nome foi apropriado pelo artista), um senhor de engenho. O legado era composto de cartas, anotações, mobiliários e outros objetos que remetiam às suas recordações de infância no Engenho Vaca Brava, situado em Areia, na Paraíba.

Em contrapartida à postura senhorial do avô, os pais de José Rufino seguem uma ideologia comunista e lutam pela igualdade social. Por essa opção política, foram perseguidos durante a ditadura. Esses contextos dicotômicos, gravados na memória de José Rufino, passaram a ser um dos instrumentos de sua pesquisa e criação artística e como suporte conceitual de sua obra, dando forma, cor e volume a tantas inquietações, vividas não necessariamente pelo artista, mas por tantos outros atores anônimos, algumas vezes passivos ante a força bruta.

Alinhando-se na vertente política, há obras emblemáticas produzidas por José Rufino, como Plasmatio, instalação exposta pela primeira vez em 2002, na Bienal de São Paulo, passando ainda pelo Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, no Recife, e no Museu de Arte Contemporânea de Niterói. Plasmatio resgata a memória e a saudade dos desaparecidos durante a ditadura militar ao reapresentar cartas e documentos das vítimas doados ao artista, muitas vezes por seus familiares. Nelas, José Rufino resgata corpos desfigurados, desenhados com a técnica de Rorschach*, sendo esses uma simbologia ou homenagem aos protagonistas dessas mensagens passadas de geração a geração sem uma resposta possível. Inúmeras cartas formam um todo e dão corpo ao desaparecido por meio da pintura criada por José Rufino. Essa pintura preserva, em partes, o conteúdo das cartas, sem que nós, observadores e leitores, possamos decifrar. O conteúdo pleno não é necessário para conhecer o todo aí exposto. O suporte da pintura, criado pelas cartas guardadas e veladas há anos, carregando os últimos vestígios das vítimas, não são expostas isoladamente, porém como totens monumentais amparados pelo próprio aparelho da burocracia oficial utilizada pelo sistema político e pela sociedade.

Plasmatio é composto por um empilhamento inusitado de móveis de escritório, como uma cadeira de ponta-cabeça a expelir uma mancha negra corporal, originando assim um dos seres ausentes, aplicado sobre as últimas linhas por ele escritas aos seus amigos e familiares. Essa instalação possui diversos formatos, sendo sempre amparada no sistema burocrático representado, ora por uma mesa de escritório, ou ainda uma torre de escrivaninhas, sempre dando vazão às últimas anotações dos oprimidos pela ditadura no Brasil.

Planeja para 2014, ano do repúdio aos fatos de 1964, uma continuidade de Plasmatio. Nesse mesmo segmento, José Rufino tem realizado novas obras, como é o caso de Lexicon silentii, composta por pedras retiradas originariamente dos locais onde ocorreram as Ligas Camponesas, na década de 1960, na Paraíba, exposta recentemente em uma mostra coletiva na Galeria Nara Roesler, em São Paulo, sob curadoria de Moacir dos Anjos, intitulada Cães sem Plumas. Essa mostra seguirá ainda no primeiro semestre de 2014 para o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, no Recife, e de lá parte, ampliada, para a América Latina, focada em conflitos, direitos humanos, arte política sob uma ótica poética e forte.

O próprio artista nos relata a importância de sua produção atual com base na obra Lexicon silentii respaldada em um tema recorrente de sua produção – o resgate da memória:

As raízes da obra Lexicon silentii vêm de algumas outras já realizadas (Respiratio, Vociferatio, Sudoratio), cujas motivações partiam de pensamentos sobre as condições das coisas inanimadas (gavetas, cadeiras, escrivaninhas, malas, papéis velhos) e seus possíveis humores. O sentido dessas obras anteriores era o de tentar dar voz àqueles objetos, mesmo que uma voz muda e inventada a partir do contexto sociocultural e histórico de onde eram recolhidos. Em Lexicon silentii, o sentido não é tão diferente, mas a voz muda que emana dessas pedras aparenta-se mais com aquelas da instalação Plasmatio (memória de desaparecidos políticos), visto que não é fala melancólica de passado evocado, é som de grito mudo, de grito que não foi ouvido e que ainda ecoa. Cada uma dessas pedras ainda grita uma coisa que pertence ao campo do grito ideológico, deixando de ser grito de pedra-indivíduo para ser grito coletivo.

Lexicon silentii é um tipo de prosopopeia abafada, cujos personagens-pedra representam alguém, o ideal e a luta de alguém. O título da obra sugere um conjunto de entradas de um léxico e cada pedra é, assim, um verbete silencioso. Esse léxico silencioso é uma enumeração poética de um movimento social ocorrido na Paraíba até o início da ditadura: as Ligas Camponesas. As pedras e restos de alvenaria de Lexicon silentii foram coletados nos principais locais de atuação das Ligas Camponesas (Sapé, Café do Vento, São Miguel de Taipu, Cajá, Espírito Santo). Todas as pedras estão marcadas, em graus variados, pelo contato humano, apresentando feições de desgaste, quebra, queima, corte ou construção (no caso dos restos de alvenaria). O que se vê, formalmente, é a topografia dessa enumeração lexicográfica. Todas as 49 peças da obra receberam uma pintura sob a forma de uma barra de 7 cm em curva de nível, realizada com uma mistura de pigmentos minerais e pó de mirra, criando para o conjunto uma sugestão de exumação e um suave odor”.

José Rufino produz incansavelmente e na sequência de Lexicon silentii criou as obras Ad corpus I e Ad corpus II, expostas atualmente na mostra individual Violatio. Essas obras inéditas foram feitas com blocos de concreto exumados, pintura à base de pigmentos e mirra e cunhas também de concreto. Sua existência não é casual, e sim um depoimento vivo: elas foram retiradas, assim como Lexicon silentii, de locais onde ocorreram os conflitos agrários, até o início da ditadura. São testemunhas silenciosas ao emanar um “som de grito mudo, de grito que não foi ouvido e que ainda ecoa”, conforme depoimento do artista. Aqui, elas representam sua relação com aquele palco de conflitos sociais. A força de Ad corpus I e Ad corpus II está justamente na identificação e busca desses pedaços de uma construção violada no seu espaço natural e na presença marcante que carrega. A estranha massa corpórea, com suas marcas, rachaduras e intervenções recorrentes de tentativas de implantação de divisórias de terras, confirmam a possibilidade de existência, simbologia e narrativa, a partir da fragmentação e isolamento. Essas obras assumem o caráter de monumento às Ligas Camponesas, sem serem monumentais.

A mostra Violatio, exposta no MuBE, em São Paulo, que pode ser visitada até o dia 26 deste mês de janeiro, apresenta um conjunto inédito de esculturas, objetos, desenhos e gravuras, outros provenientes do ateliê de José Rufino e de acervos privados, tratando de forma individual as inquietudes, pesquisas e perseverança do artista diante de temas recorrentes em sua produção, focada na memória particular, desdobrando-se para contextos amplos, sendo esses sociais, institucionais ou políticos. Violatio abrange tanto o micro, quanto o macrocosmo profanado, desobedecido, invadido, maculado.

As obras expostas foram selecionadas como um todo, porém são autônomas, exercendo tanto um diálogo entre si, quanto com o local expositivo, devido à disposição espacial, como nascer, crescer ou fincar seus tentáculos na arquitetura singular do museu. Ao público, a tarefa de desbravar esse universo já violado.

José Rufino dedica-se ainda à literatura, mais um meio para dar vazão a suas inquietações e denúncias, tendo sido convidado a executar a direção artística de um número especial da revista de literatura do SESC Palavra, sobre os 50 anos da ditadura, com um texto seu ficcional chamado Gravura, em que a voz de um torturado descreve sua experiência. Esse conto complementará as imagens de sua obra Plasmatio e outras obras artísticas de sua autoria, que estarão ilustrando a revista e os textos dos demais autores convidados. I


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