Visita a Roberto Freire

Sabe o Roberto Freire, aquele escritor que na década de 70 balançou o coreto com o livro Sem Tesão Não Há Solução? E que escreveu outros best-sellers, como Ame e Dê Vexame, Cleo e Daniel e Coiote? Ele foi repórter da revista Realidade na década de 60. Depois, celebrizou-se como psicanalista, tendo criado um método de tratamento que considerava revolucionário, a somaterapia. Atualmente, está em um período de descanso. É compreensível, ele já fez mais de 80 anos. Roberto, “o Bigode”, passa uma temporada numa casa de repouso confortável, perto de Cotia, na Grande São Paulo.

Cheguei atrasado ao nosso encontro. É que me perdi por ignotas vias vicinais que formam um emaranhado em volta da Raposo Tavares, essa rodovia-avenida de trânsito nervoso e quase sempre congestionado. Dei de cara com bairros populares, loteamentos precários, antes de consultar o dono de uma barraquinha que vendia coxinhas, café e cachaça, diante de uma garagem de ônibus. Ele me deu orientação certeira. E logo me vi rodando por uma rua de terra rumo a uma colina coberta por vestígios de Mata Atlântica. Um portão eletrônico. E aí estou, seguindo lentamente por uma alameda calçada com pedrisco, cercada de grandes árvores. Como testemunha, um simpático cachorro perdigueiro, o que me faz duvidar da placa que adverte: “Cuidado com o cão”.
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Estaciono no pátio deserto e nem sinto a necessidade de fechar o carro. O que, como se verá, vai haver conseqüências. Na recepção não há ninguém. Ao lado, numa sala envidraçada, um grupo de pessoas idosas senta-se em poltronas lado a lado e frente a frente, mas reparo que não se falam. Todas, em silêncio, esperam. Talvez o jantar…

Aparece, afinal, uma atendente, morena gorda e bonita e, me tratando por “querido”, me guia por um labirinto de salas até uma rampa cimentada cor-de-rosa, colorida, possivelmente pelo que antigamente a gente chamava de roxo-terra. O terreno é inclinado, mas não há escadas, só alamedas em rampa cercadas por canteiros de flores, algumas árvores grandes, inclusive um eucalipto daquela variedade perfumada, cujo cheiro me faz lembrar o antigo sítio de Roberto Freire em Mauá, ao lado do Pico das Agulhas Negras.

Uma grande foto domina o cenário: transgressão
Encontrei-o num pequeno apartamento, recostado em uma poltrona-cama. Havia uma pessoa lendo para ele O Estado de S. Paulo, que, à minha chegada, se retirou.

Um objeto domina a cena, uma grande fotografia que ocupa a parede atrás de Roberto. É uma rara e famosa foto de Rimbaud aos 17 anos, o poeta que revolucionou a poesia francesa na segunda metade do século XIX. A foto, uma reprodução de um metro e meio de altura por outro tanto de largura, mostra um cartaz colado a uma típica parede francesa. Nessa parede se lê: “Interdit d’afficher”, quer dizer, “é proibido colar cartaz”. A foto registra, portanto, uma transgressão. E tem mais: na parte de baixo, num pedaço rasgado de outro cartaz, pode ser lido: “autogestão” e, ao lado, está rabiscado aquele “A” que simboliza o anarquismo. É a síntese da contestação que Rimbaud representa como ninguém.

Ali está o Roberto. Dois pares de óculos, um deles com a lente da direita escura para cobrir um olho perdido. Cabelos brancos, já não é a cabeleira de antes, e ele está deixando a barba grisalha crescer.

Recebeu-me carinhosamente, em voz baixa, e num tom familiar como se tivéssemos nos visto poucas horas antes. Na verdade, havia anos que não nos víamos. Nem sei quantos, talvez uns seis, desde que Bigode se afastou da revista Caros Amigos, que ajudou a fundar em 1997.

Convida-me a sentar. E, antes que eu diga qualquer coisa, vai comentando:
– Veja só que descalabro, como fiquei. E olha que eu fui um sujeito esperto!

– Mas eu vou bem. Afora ter perdido uma vista e que enxergo mal da outra; afora que estou sofrendo de Alzheimer, o que me faz esquecer as palavras e faz minhas mãos tremerem, de modo que não consigo escrever mais, e também não posso segurar um livro e, portanto, também não posso mais ler. Afora a hipertensão, os problemas do fígado e do intestino, e da fratura no fêmur que me impede de andar, enfim, afora essas coisinhas, vou bem…

E ajunta, como se eu houvesse perguntado:
– Não tenho tristeza, não tenho depressão, não reclamo da sorte. Afinal, fiz uma porção de coisas, fiz da minha vida o que eu quis…

De fato. Lembramos juntos de algumas peripécias. Sempre me espantou saber que Roberto estudou medicina (diz que não queria, mas era um menino cordato e se formou médico por imposição dos pais), que se especializou na França, no College de France, na Sorbonne, e fez pesquisas biológicas no Instituto Pasteur. Após 12 anos, repentinamente deixou tudo e voltou para o Brasil. Terá sido ali que tomou contato com a obra e a biografia de Rimbaud?

Casou, teve três filhos homens, especializou-se em psicanálise, começou a clinicar.

Meteu-se no teatro e chegou a ser presidente do Serviço Nacional de Teatro. Católico de esquerda, enveredou pelo jornalismo, escrevia no Última Hora e depois ajudou a criar o jornal da esquerda católica, Brasil Urgente. Foi ali que o conheci, eu era redator desse jornal. Com o golpe militar de 1964, tudo isso acabou.

Sem Tesão Não Há Solução. Ame e Dê Vexame
Reencontramo-nos depois de alguns anos na revista Realidade. Ele entrou na revista “por cima”, o patrão queria que alguém, mais maduro, fosse um elemento de sua confiança e fizesse contraponto à nossa equipe de jovens rebeldes. Mas, em pouco tempo, Roberto havia virado “o Bigode” e aderido completamente ao grupo. Lembra-se disso com um sorriso moleque.

Ainda no tempo de Realidade, em 1966, participou da montagem de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, musicada por um quase desconhecido Chico Buarque, dirigida por Silnei Siqueira e representada por estudantes da PUC. Foi um sucesso estrondoso. Os militares não gostaram, mas não puderam impedir que a peça corresse o País e logo estivesse sendo apresentada num festival de teatro amador em Paris! Em seguida, lança um livro, Cleo e Daniel, sucesso de vendas entre a juventude. Algum tempo depois o livro iria virar filme.

Terminada a aventura de Realidade, nos perdemos de vista outra vez. De vez em quando recebia notícias dele. Fazia sucesso, se tornara celebridade. Havia voltado a ser terapeuta. Conta agora que naquele período conheceu a teoria de Wilhelm Reich e foi um deslumbramento. Disse: “É isso que estou procurando!”, jogou Freud para o alto e foi criar um novo método terapêutico, que chamou “somaterapia”, em que pregava o amor como remédio para tudo. Grande sucesso entre a juventude! Por esse tempo, escreve Coiote, um best-seller. Algum tempo depois, Sem Tesão Não Há Solução. Lá, de sua poltrona, comenta agora, em voz baixa, a trajetória desse livro:

– Trinta edições. Cem mil livros vendidos.

Em seguida, outro sucesso: Ame e Dê Vexame. Mais 100 mil exemplares vendidos em muitas edições.

– Ganhei muito dinheiro. Vivia como rico, ia para onde queria!

Cleo e Daniel continuou sempre sendo reeditado. Fala de algo como 37 edições. E Coiote, talvez seu livro mais emblemático, acaba de chegar à 9a edição. Ele me conta, agora mais animado, que está negociando com uma produtora de cinema. Coiote pode virar filme. Sendo tarado por cinema, vai querer dar palpites no roteiro e na filmagem, diz. Quanto à somaterapia, continua a existir, comandada por antigos discípulos.

Um telefone verde começa a tocar. Apanha-o com gestos, um tanto vacilantes, numa mesinha instalada ao lado da poltrona. É o filho mais velho, Paulo. Quer saber notícias, combinam alguma coisa. Mandam-se beijos.

Dos três filhos – Paulo, Pedro e Roberto -, convive com os dois primeiros. Beto, o mais novo, mora muito longe, na Austrália, e praticamente perderam o contato. Foi o único momento naquela tarde que pressenti nele um sinal de dor, sofrimento pela ausência do filho.

– Era o filho mais grudado, ia para todo lugar comigo! Silencia. Parece engolir um soluço.

Covardia. Fugiu de uma reportagem por medo de aranha
Voltamos ao passado, terreno mais tranqüilo. Ele se recorda das minhas reportagens com os índios. E confessa o que chamou de “covardia”. Recusou fazer o perfil de um pajé no Xingu, em reportagem junto com o fotógrafo Luigi Mamprin. Na hora da viagem arranjou uma desculpa e não foi para a floresta. O motivo: tem medo, pânico de aranha. É tanto medo que perde o controle, como aconteceu numa viagem anterior, ao interior de Minas Gerais, onde fora para entrevistar um médium então famoso, o Zé Arigó. Segundo diziam, esse espírita curava cegueira, operando os olhos das pessoas com uma velha tesoura e sem anestesia. Mas não vem ao caso. O fato é que, à noite, no hotel, Roberto estava tomando banho quando avistou uma grande aranha escondida na toalha. Pôs-se a gritar e a correr, deixou o quarto completamente nu e foi até a recepção do hotel, onde se agachou num canto, em estado de choque. Foi acudido, vestido, acalmado. Trocaram-no de quarto, mas, logo que pôde, Roberto abandonou a cidade. Por mais que o pessoal do hotel procurasse, a aranha não foi encontrada.

Contou a seu psicanalista, que era freudiano e alemão, seu medo de aranha. O alemão só disse: “Hã, hã”.

Tempos depois, em outra sessão, falava ao médico de seu fascínio pelo órgão genital feminino. E o alemão:
“Hã, hã, como arranha, non?”

– Fiquei indignado, abandonei a consulta imediatamente e nunca mais voltei!

“É falso dizer: eu penso. O correto é eu me penso porque eu é um outro”
Comento a foto na parede de seu quarto. Roberto explica:
– Rimbaud é o herói da minha vida.

Para entender essa idolatria, alguma indicação de quem foi Rimbaud: seus poemas começam a circular em 1870, quando ele tinha 16 anos. Revolucionou a poesia francesa. Escandalizou a sociedade conservadora. Simpatizou com a Comuna de Paris (1871). Viveu uma paixão tempestuosa com o poeta Paul
Verlaine. Brigaram. Verlaine deu-lhe um tiro de pistola que causou um ferimento leve. Rimbaud partiu em viagens por muitos países. Fez e refez seus poemas até os 22 anos, quando deixou repentinamente de escrever. Viajou para a África, onde iria viver o resto da vida como comerciante. Promoveu até um contrabando de armas para um rei africano. Nunca mais escreveu, exceto cartas familiares. Permaneceu até sua morte, aos 37 anos, completamente afastado de todos. Enquanto os meios literários da França ferviam com a repercussão de sua obra, ele ignorava tudo. Mas era um fato consumado: graças a ele, a poesia, não só na França, mas em toda cultura ocidental, nunca mais seria a mesma.

Não sei por que Rimbaud mais inspirou Roberto, se por sua poesia ou por sua vida de contestação, seu anarquismo, ao qual, a propósito, “Bigode” também haveria de se converter. Tentando entender Roberto, transcrevo aqui algumas frases de Rimbaud. Elas são de transtornar e vêm transtornando gerações.

Em suas cartas da juventude, Rimbaud se refere ao poeta como a um ser de sensibilidade excepcional, uma espécie de profeta, de farol:

“Digo que é preciso ser vidente, fazer-se vidente. O poeta se faz vidente por um longo, imenso e pensado desregramento de todos os sentidos. Todas as formas de amor, de sofrimento, de alegria; procura a si mesmo, esgota em si mesmo todos os venenos para guardar tão-somente as quintessências.” (…)

“É falso dizer: eu penso: dever-se-ia dizer alguém me pensa(…) Porque eu é um outro. Se o cobre se desperta como clarineta, ele não tem nada a ver com isso. É evidente para mim: eu assisto à eclosão do meu pensamento. Eu a vejo, eu a escuto: dou um toque com o arco do violino: a sinfonia repercute nas profundezas ou vem de um salto à cena.”

Provavelmente inspirado nessa expressão – “Car je est un autre” (porque eu é um outro) -, Roberto escreveu um de seus livros mais recentes, .Eu É um Outro..

A tarde vai caindo. Ensaio ir embora. Mas Roberto me oferece uma dose de uísque. Johnnie Walker, rótulo preto, 12 anos. Despejo eu mesmo um pouco num copo de plástico que ele me estende. Sem gelo, desce duro como um pedaço de pau pela garganta. Ele confidencia:
– Não sei por que Rimbaud.

Despedimo-nos, aperto suas duas mãos e as percebo muito brancas, sem rugas nem veias saltadas, mãos jovens e fortes, unhas aparadas bem rente. Saio, encosto a porta do apartamento e lá fora me esperam a luz fina do entardecer, o sol bem inclinado que rasteja entre uma fileira de bananeiras magras e um sabiá, que canta pertinho. A visita me fez bem. Respiro no ar quase frio um perfume vegetal. Sinto o corpo leve e uma certa perplexidade.

Na recepção, peço para abrirem o portão eletrônico. A mesma moça vem ao meu encontro, dizendo:
– Sim, abro. Mas antes tenho que tirar aquela mocinha dali.

Vai em direção ao meu carro e tira da poltrona do motorista uma velhinha de ar travesso que estava a brincar de dirigir. As duas se despedem rindo. A velhinha no colo da atendente. Rimbaudiano.


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