Visita aos monstros do passado

Mike Peters
Criador e criatura – Carr, o homem que revirou sua própria história, e o resultado dessa investigação

Destacado repórter e colunista do The New York Times, o americano David Carr decidiu, alguns anos atrás, dedicar-se à maior e mais complexa reportagem que já escreveu: sobre sua própria vida. Não se trata de uma autobiografia. Viciado em cocaína e álcool por mais de dez anos, tendo chegado ao uso intensivo de crack, Carr não tinha memória do período para relatá-lo. Lembranças vagas e distorcidas de dias virados sob o efeito de químicos, marcados por prisões, brigas, envolvimento com o tráfico, relações amorosas conturbadas e passagens por redações de jornais e revistas: tudo estava misturado e um tanto apagado. Por isso (e com certa dose de coragem), decidiu confiar na memória de quem estava por perto na época do vício para visitar os monstros do passado.

Utilizando métodos jornalísticos, foi a partir de entrevistas – cerca de 60 ao todo, com amigos, traficantes, parceiros de vício, parentes, ex-mulheres e colegas de trabalho – e de relatórios médicos e policiais que Carr pôde reconstituir com precisão em A Noite da Arma os seus anos de delírios. Publicado em 2008 nos EUA, o livro chegou recentemente ao Brasil, quase 20 anos depois de Carr se livrar dos vícios. Foi preciso ver suas filhas gêmeas nascerem prematuramente, em 1988 (momentos após ele e sua namorada grávida consumirem uma pedra de crack), e constatar que a mãe não tinha condições de criá-las, para que ele iniciasse seu último e bem-sucedido processo de desintoxicação, depois de várias tentativas fracassadas.

Carr relata, com impressionante sinceridade, em texto claro e fluente, o que descobriu durante sua pesquisa. Primeiro, que o passado era muito mais sombrio do que imaginava: mentiras, degradação e violência (inclusive contra suas mulheres) traçavam o perfil de “um cara” quase desconhecido para “o novo cara” – o respeitável e premiado repórter, com uma vida comum em Nova Jersey. “Todos com quem falei estavam cheios de remorsos quando falavam sobre os velhos tempos”, escreve a certa altura.

O jornalista descobriu ainda que boa parte das histórias vividas nos anos de vício havia ocorrido de modo bem diferente do que ele se lembrava. Era o caso da noite que intitula o livro, na qual ele foi ameaçado pelo melhor amigo, com uma arma, após tentar invadir a casa dele. A verdade, revelada agora, é que quem apontou a arma – que nem se lembrava de ter possuído – foi o próprio Carr, completamente chapado e fora de si.

O livro registra em detalhes desde os primeiros tempos de uso da cocaína, entre loucuras e festas, até os últimos – e piores – anos do vício, entre 1988 e 1989, quando Carr abandonou de vez qualquer trabalho e passava os dias injetando cocaína e fumando crack. Descreve, também, o doloroso e longo processo de desintoxicação, quando a busca não era apenas por se livrar do vício químico, mas voltar a se conhecer, a se reconhecer como gente e a ter prazer nas coisas da vida – como cuidar das filhas e trabalhar. A Noite da Arma é um relato impressionante sobre uma vida quase jogada no lixo, escrito sem moralismos ou tons de autoajuda. É também um valioso material sobre o submundo das drogas nas cidades americanas e sobre o vício, além de uma aula de bom jornalismo.


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