A situação parecia conspirar contra. Crise política, crise econômica, estado de calamidade pública na cidade do Rio de Janeiro, zika, obras inacabadas, poluição da Baía da Guanabara, protestos por todo o canto. Para piorar, às vésperas da abertura da primeira Olimpíada da América do Sul, no Rio de Janeiro, um grupo de homens que supostamente tramavam um ataque terrorista foi preso. Ao baixo-astral, que já vinha contaminando o País desde o afastamento de Dilma Rousseff da Presidência, se aliou um clima de tensão. A torcida estava brava e se preparava para uma resposta visceral contra esse estado de coisas.
Sem ser anunciado, Michel Temer, ainda na condição de presidente interino, disse uma única frase – “Após esse maravilhoso espetáculo, declaro aberto os Jogos Olímpicos do Rio, celebrando a 31ª Olimpíada da era moderna” – e foi vaiado por um coro eufórico. Havia a suspeita de que o som dos fogos de artifício e das músicas abafaria a revolta. Não foi exatamente o que aconteceu. “As vaias a Temer vieram e se foram. Mas o show de abertura foi mais que isso”, disse o diretor de cinema Andrucha Waddington, um dos diretores artísticos da cerimônia, junto aos cineastas Fernando Meirelles e Daniela Thomas, que também é cenógrafa.
Começava ali a vitória do alto-astral contra o baixo-astral, contra a tristeza, em favor da alegria, para três bilhões de espectadores. Até a imprensa internacional, que torcia contra, amarelou. A gambiarra para superar as limitações orçamentárias e até arquitetônicas ganhou momentos de glória. Daniela Thomas conta: “Nosso objetivo era mostrar algo sobre uma qualidade perene da alma do Brasil. Algo que vem lá de dentro da floresta e vem se transformando, se recriando a cada dia. Políticos vêm e vão. Um povo é muito maior que isso”. Meirelles, o Fernando, também quer falar: “Durante o processo, ideias foram derrubadas e outras encolhidas. Tudo foi realizado dentro do previsto, sem aditivos. Melhor assim do que estourar orçamento. Sim, é possível”.
Com esse espírito, o Maracanã foi o palco de uma mega-apresentação: florestas e ocas imaginárias, prédios virtuais surgiam do chão, Santos Dumont, como em um passe de mágica, apareceu para saudar a multidão e a supermodelo gaúcha Gisele Bündchen deu o ar de sua graça ao som de Garota de Ipanema. Teve Paulinho da Viola, teve Elza Soares, Caetano, Gil e Anita, mas quem eletrizou a galera foi Jorge Ben Jor. Sim, com País Tropical.
As delegações foram anunciadas e a Rio 2016 foi a primeira a ter uma delegação de refugiados entre os competidores. Os dez atletas de quatro países – dois nadadores sírios, dois judocas da República Democrática do Congo e seis corredores, um da Etiópia e cinco do Sudão do Sul – deixaram seus países devido a conflitos, perseguições e violações dos direitos humanos. Encontraram refúgio na Alemanha, Bélgica, Luxemburgo, Quênia e no Brasil. Eles não ganharam medalhas, mas arrasaram no assunto participação.
Estavam abertos dias de respiro, apesar do que viria pela frente: a volta do Fla-Flu político, o impeachment da presidenta Dilma, o desmanche de direitos conquistados, os índices de desemprego, as eleições municipais… Mas quem queria pensar nisso?
Os ouros
Sem dúvida, o melhor da Rio 2016 não foi uma coisa ou outra. Foi o todo. Mesmo não tendo batido a expectativa do Comitê Olímpico Brasil de ficar entre os dez primeiros, o País chegou à 13ª posição no ranking geral, com 19 medalhas, a melhor participação até agora.
A conquista das sete medalhas de ouro caiu como um bálsamo. A primeira veio no tatame, por conta dos golpes precisos da carioca Rafaela Silva, que nasceu na violenta comunidade Cidade de Deus, famosa pelo filme homônimo de Fernando Meirelles e Kátia Lund, baseado no livro de Paulo Lins, e se tornou a melhor judoca que o País já teve. Rafaela derrotou a mongol Sumiya Dorjsuren, líder do ranking mundial dos leves (até 57 kg), e relembrou as ofensas racistas das quais foi alvo no Twitter quando derrotada em 2012. “O macaco que tinha que estar na jaula em Londres hoje é campeão olímpico em casa.”
O segundo ouro foi tão lindo quanto. Aconteceu no duelo travado no salto com vara entre o brasileiro Thiago Braz da Silva, de 22 anos, que estreava em Olimpíada, e o veterano francês Renaud Lavillenie, 29 anos, recordista mundial (6,16 m em 2014). O menino nascido em Marília, no interior de São Paulo, que fora abandonado na infância pela mãe, e o francês não muito chegado a se mostrar simpático fizeram a gente dormir mais tarde naquela noite de agosto, que ainda teve elementos de sobra para amedrontar: ventos fortes e chuva pesada interromperam a prova. O equipamento eletrônico que muda a altura do sarrafo parou de funcionar e o jeito foi solucionar no braço, um pouco mais de gambiarra só para manter o tom.
Thiago esperou um tempão para dar o primeiro salto. Salta um, salta outro, sarrafo cai, arruma o sarrafo, outro sarrafo cai… Sobraram na arena Thiago e Lavillenie. Doses extras de emoção quando, no tudo ou nada, o sarrafo alcançou a marca de 6,08 m. Thiago passou lindamente, deixando Lavillenie espantado com a prata. Em um gesto pouco elegante, não cumprimentou o campeão e ainda reclamou das vaias da torcida – elas teriam atrapalhado o seu desempenho.
O tio de Thiago, Fabiano Braz, ex-atleta de decatlo, conjunto de dez provas olímpicas, conta que, de certa forma, incentivou o sobrinho a seguir no esporte. “Enquanto eu treinava, ele brincava com os iniciantes, dando cambalhotas no colchão.” Mas, por trás dessa medalha dourada tem uma equipe eficiente: a força da mulher, a atleta Ana Paula Oliveira, o amor dos avós Maria do Carmo e Orlando, que criaram o menino, e a sabedoria do treinador ucraniano Vitaly Petrov, que já trabalhou com outros astros, como Yelena Isinbayeva e Sergey Bubka, que, no dia seguinte ao pódio, juntou os dois atletas, Thiago e Lavillenie, para uma conversa.
Depois de uma semana inteira de competição, a festa aconteceu na Marina da Glória. Martine Grael e Kahena Kunze deram um show, vencendo disputa acirrada com as rivais neozelandesas Alex Maloney e Molly Meech. Ouro, diga-se, histórico. Jamais mulheres brasileiras tinham ficado com o lugar mais alto do pódio na vela. As duas são filhas dos ex-velejadores Torben Grael, o maior medalhista olímpico do Brasil ao lado de Robert Scheidt, e Claudio Kunze, campeão mundial júnior em 1973.
Nova página foi escrita por Robson Conceição no boxe. O baiano, hoje com 27 anos, que entrou para o esporte para deixar de apanhar nas brigas que arrumava nas ruas de Salvador, venceu o francês Sofiane Oumahi, na final da categoria leve (até 60 quilos). A vitória foi fácil: mandou no combate desde o primeiro round e levou o ouro por decisão unânime dos juízes.
Mais alegria com a dupla Alison e Bruno Schmidt, que agitou a arena em Copacabana com o vôlei de praia. Desde Atenas 2004, o Brasil não ocupava o ponto mais alto do pódio com a modalidade, mas os dois bateram os italianos Nicolai e Lupo, que até chegaram a ameaçar o placar. Mas o resultado ficou em 2 sets a 0.
Ah, os italianos. Foi de tirar o fôlego a partida final de vôlei de quadra masculino com eles. A seleção de Bernardinho, que começou a Rio 2016 meio desacreditada, cresceu e não deu chance para os “poveri bambini”. Destaque para Serginho, maior medalhista olímpico brasileiro em esportes coletivos, com duas pratas e dois ouros, que emocionou a galera ao dizer: “Sou um cara normal, sou o Sergio, filho da dona Didi, de Pirituba. Amanhã, eu volto à vida normal, de buscar os filhos na escola e tomar Tubaína lá em Pirituba”.
Capítulo à parte foi o futebol de campo masculino. A seleção, liderada por Neymar, chegou à final justo contra a Alemanha – impossível não se lembrar do fantasma 7 a 1 da Copa de 2014. O jogo foi duro. Apesar de não contar com os grandes jogadores da seleção principal, os alemães deram trabalho logo no primeiro tempo: duas bolas bateram no travessão. Mas o Brasil marcou o primeiro gol aos 26 minutos. O empate aconteceu no segundo tempo, e fomos para os pênaltis. Uma angústia que resultou em 5 a 4 para o Brasil e no título inédito para o futebol.
O Maracanã explodiu. Neymar, que marcou o gol da vitória, chorou muito, comemorou com os outros jogadores e, na saída da festa, desabafou: “É uma das coisas mais felizes que aconteceram na minha vida. Agora vão ter de me engolir”.
As pratas e os bronzes
O atirador paulistano Felipe Wu, de 24 anos, fez bonito e marcou história: depois de 96 anos sem o tiro esportivo levar nada em jogos olímpicos, ele subiu ao pódio para receber a prata. Em sua estreia em Olimpíadas, Ágata e Bárbara se deram bem no vôlei de praia, superando grandes favoritas. Prata.
E o que dizer do baiano Isaquias Queiroz, de 22 anos? O primeiro brasileiro a conquistar três medalhas em uma Olimpíada: prata na prova de 1.000 m de canoagem individual, bronze nos 200 m e mais uma prata na prova dos 1.000 m de duplas, com Erlon de Souza.
Muita gente esperava um bom resultado de Arthur Zanetti nas argolas. E foi mesmo. É medalhista de prata na modalidade e o primeiro brasileiro a ganhar duas medalhas olímpicas na ginástica artística. Mas quem ganhou, além da prata, uma boa dose de coragem foi Diego Hipólito. Depois de tropeços em Pequim e Londres, ele apresentou performance impecável na ginástica artística de solo. Dividiu o pódio com o estreante Arthur Nory, de 19 anos, que ficou com o bronze. Foi uma comoção. Os meninos choraram, agradeceram, choraram mais um pouco.
Aos 25 anos, a judoca Mayra Aguiar repetiu o mesmo resultado de Londres: bronze. Superou a cubana Yalennis Castillo. Eufórica com a conquista, a gaúcha pulou a grade que separava a área da competição da arquibancada e comemorou com um beijo no namorado, o engenheiro Vinicius Coelho. O tatame também premiou Rafael Silva, o Baby, na categoria +100 quilos. Ele, que quase ficou de fora da Rio 2016 por causa de uma lesão muscular, superou o uzbeque Abdullo Tangriev, ganhando o bronze.
Mais uma luta surpreendeu: taekwondo, que até aqui só tinha dado uma medalha para o Brasil, em Pequim 2008, com Natália Falavigna, bronze. Ninguém botava fé que o mineiro Maicon Andrade Siqueira levasse alguma medalha porque ele não estava nem entre os dez primeiros do ranking mundial. Mas Siqueira ganhou o bronze e deu uma injeção de ânimo em muita gente que não conhecia sua história: caçula de oito irmãos, sete homens e uma mulher, ele já ganhou a vida como ajudante de pedreiro e garçom, sempre mantendo os treinos.
Quem emocionou mesmo foi Poliana Okimoto, que nadou no mar de Copacabana por quase duas horas e, por dois segundos de diferença, terminou em quarto lugar. Foi melhor do que em Londres 2012, quando saiu da competição em uma maca do rio Serpentine depois de desmaiar por hipotermia. Em minutos também, algo inesperado aconteceu: a francesa Aurelie Muller foi desclassificada por ter dado uma braçada na adversária italiana. Assim, Poliana ganhou o bronze merecido.
Outros destaques
O nadador americano Michael Phelps, que já estava na história olímpica, brilhou mais uma vez e se despediu do Rio maior do que era. Conquistou 28 medalhas, 23 de ouro, e o título de primeiro nadador tetracampeão olímpico. Teve também a energia contagiante do jamaicano Usain Bolt. Além dele, a brasileira Jady Duarte também foi parar nas páginas dos jornais. Quem? Jady Duarte, a mulher que encantou o atleta durante uma festa e depois apareceu em fotos íntimas com o homem mais rápido do mundo. Bolt sagrou-se tricampeão dos 100 m, 200 m e do revezamento 4×100 m. Antes de largar, pedia silêncio para a torcida e o estádio se calava. Simpático, ensinou os brasileiros a fazer o raio e a cantar reggae.
No tênis, o argentino Juan Martin del Potro mostrou a que veio. Ele, que chegava aos Jogos como número 145 do ranking mundial, carregando um histórico de lesões nos últimos anos, bateu um bolão e levou a prata. A medalha de ouro ficou, de novo, para o britânico Andy Murray depois de quatro horas de jogo.
Destaque também para a nadadora americana Simone Manuel, que conquistou o ouro nos 100 m livres, quebrando o recorde olímpico da prova e ganhando o título como a primeira mulher negra a vencer uma prova individual de natação. Sua xará, a também americana Simone Biles, 19 anos, 1,45 m e 47 quilos, encantou com saltos e piruetas, graça e talento de sobra. Faturou quatro de ouro e uma de bronze.
O Brasil teve sua estrela na ginástica artística. A pequena – ela foi a mais baixinha dos Jogos do Rio, com 1,33 m – Flávia Saraiva encantou o mundo. Com apenas 16 anos, não ganhou medalha no Rio. A torcida tinha esperança que ela levasse na final da trave – teve a terceira melhor nota, superada apenas por Biles e Lauren Hernandez. Não deu. Terminou na quinta colocação, mas encantou o mundo com seu sorriso sincero e graça de movimentos.
Deu o que falar o caso da dupla brasileira Ingrid Oliveira e Giovanna Pedroso, que competiu nos saltos ornamentais sincronizados, quando as duas anunciaram que não saltariam mais juntas. Depois, mudaram de ideia, participaram como uma equipe e terminaram em oitavo e último lugar.
A final
O bloqueio Rússia-China foi furado na Rio 2016 pela Grã-Bretanha, que terminou em segundo lugar no ranking geral com 65 medalhas (29 de ouro), ganhando destaque e atenção como potência olímpica. Ficou atrás dos Estados Unidos (121 medalhas, 46 ouros), mas superou a China (70 medalhas, 26 ouros). A Rússia terminou em quarto lugar (56 medalhas, 19 ouros), seguida pela Alemanha (42 medalhas, 17 ouros).
O encerramento, dirigido pela carnavalesca Rosa Magalhães, teve muita dança, música e carnaval. A festa tentou aplacar a saudade que os Jogos já, naquela noite, deixavam na gente. Natureza e ocupação urbana – referências também da abertura – reapareceram na despedida. Martinho da Vila esteve por lá chamando grandes clássicos – Noel Rosa, Pixinguinha, Braguinha. Depois, foi hora da execução do Hino Nacional em um ato cívico emocionante e totalmente diferente. Um coral de crianças integrantes de projeto social de Niterói cantou o Hino Nacional ao som de atabaques, em um ritmo para Ogum, o orixá guerreiro, como explica Iuri Passos, músico, professor, etnomusicólogo e alabê – homem do candomblé que canta e dança para os orixás.
Iuri Passos tocou um dos 21 atabaques. “Foi uma oportunidade única. Muita gente não sabe o que é candomblé, confunde com maldade. Mas não existe nada disso. Lidamos com as forças da natureza, com o amor, a saúde, a água, o vento, o mar e a terra.”
Entre tantos momentos marcantes, um em especial causou apreensão. O que parecia ser a comemoração pela medalha de prata conquistada na maratona masculina, na verdade, era um pedido de ajuda. O atleta etíope Feysa Lilesa, ao alcançar a linha de chegada, levantou os braços cruzados sobre a cabeça, gesto associado à luta de seu povo Oromo, maior grupo étnico do país, contra violações de direitos humanos cometidos pelo governo da Etiópia. Ele explicou: “Se eu voltar para a Etiópia, posso ser morto”.
Desde o final do ano passado, cerca de 400 pessoas morreram e milhares ficaram feridas na Etiópia, vítimas de enfrentamento com tropas do governo com a etnia Oromo. Os protestos começaram depois da aprovação de um plano urbanístico para expandir os limites da capital Adis-Adeba . Essa expansão colocaria em risco as terras agrícolas dos Oromo. O governo recuou e suspendeu o projeto.
No início de agosto último, várias cidades reiniciaram os protestos, mostrando descontentamento com as prisões e os abusos contra opositores, ativistas e políticos. As autoridades etíopes dizem que os manifestantes têm conexão com grupos terroristas estrangeiros. Por causa disso, Feyisa Lilesa decidiu não voltar mais para o seu país com a delegação da Etiópia – uma realidade que, aliás, não é só dele (leia mais sobre o assunto na página ). Milhares de pessoas em todo o mundo querem deixar seus países.
Uma campanha nas redes sociais foi criada para arrecadar fundos para o atleta. O Rio de Janeiro acolhe hoje mais de quatro mil refugiados e 2,6 mil solicitantes de refúgio – pessoas que não podem voltar para os seus países por causa de conflitos e perseguições.
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