Viver sob o vento

“Muitas vezes, ter uma carreira profissional de sucesso nada mais é do que vender a alma para o sistema. Cheguei a coordenar equipes, tinha um cargo de confiança e a expectativa de um plano de carreira, mas vivia insatisfeito. Vivendo aqui ganhei, de cara, três a quatro horas do meu dia, pelo simples fato de trabalhar a cinco minutos de casa. Trabalho de chinelo, bermuda, camiseta e feliz.”

A conclusão é do jovem paulistano, Leandro Diego Lima Pequeno, de 28 anos. Funcionário da companhia aérea TAM por 12 anos, e formado em Marketing, Diego, como é conhecido em Jericoacoara, decidiu abandonar carreira profissional e bens materiais, e ainda convenceu a noiva Bruna – única filha mulher, para desespero de seus pais que moram em São Paulo – a partir com ele para viver na antiga vila de pescadores, em março de 2012. 

Diego esteve em Jericoacoara pela primeira vez em 2010 e voltou no ano seguinte para pesquisar oportunidades de trabalho e mensurar o custo de vida. Ao decidir mudar-se para a vila, já no primeiro dia que procurou emprego, encontrou três ofertas. Uma delas era de recepcionista na pousada Ibiscus, sua atual ocupação. Como fala inglês fluente, recebe “gringos” de diversos países – franceses, austríacos, alemães, italianos e holandeses, entre outros. 

Se o domínio do idioma anglo-saxão garantiu a Diego um trabalho com grade de seis horas, seis dias por semana, tal predicado é dispensado pela aposentada Geralda Juliano Ferreira de Souza. Nativa, dona Geralda vive há 77 anos em Jericoacoara. É casada com José Assis Melo, o seu Tirinha, de 81 anos, também aposentado, que transformou três quartos da modesta casa onde vivem em hospedagem. Dona Geralda tem uma tática infalível de comunicação para lidar com os gringos que passam por sua pensão: “Quando eles querem comer alguma coisa, por exemplo, como eu não entendo a fala deles, vou até a cozinha, mostro as panelas. Eles abrem uma por uma, se viram e escolhem o que quiser”. 

Motivo de orgulho para dona Geralda, o neto Danilo Menezes da Silva – “tenho um bocado deles, precisaria contar” –, conhecido por Chico Bento, é mestre de capoeira e windsurfista profissional, ranqueado como o 17o melhor do mundo na categoria free style. Chico fez várias viagens para fora do País – “foi até na casa do Papa, em Roma!” – e hoje ganha a vida com uma pick-up 4×4 fazendo o que é conhecido por lá como “transfer” – o capoeirista leva turistas de Jericoacoara para Fortaleza. Tímida, a avó emite um sorriso ao comemorar o fato de o neto, famoso na vila, ser resistente aos convites à perdição, feitos por amigos do windsurf e da capoeira: “No wind e até na capoeira tem tóxico, o pessoal gosta dessas coisas de beber, de fumar, mas o Chico não se envolve com isso. Quando os outros dizem pra ele ‘Chico Bento, vamos dar aqui uma pitadinha?’, ele diz ‘Não, tô fora disso’. Ele não tem vício nenhum”, garante dona Geralda.

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Compenetrado em meio a uma jam session do Festival Choro Jazz, o austríaco Benjamin Reischer, de 31 anos, profissional de teatro em seu país, endossa a seguinte tese de dona Geralda: “Tem muita moça e rapaz que vem pra cá passear, se engraça com o lugar e não volta mais”. Reischer foi a Jericoacoara praticar kitesurf por um mês, mas já faz planos para permanecer na vila até abril de 2013. “Dependerei de dinheiro, mas já tenho um ‘trabaio’. Conheci uma mulher que aluga buggys e quadriciclos e, como falo inglês, francês e alemão, vou tentar fazer locações para os gringos. Este é um dos melhores locais do mundo para fazer kitesurf, mas não vim aqui só por isso. O lugar é incrível e toda essa música na vila é muito massa”, conclui, em bom português, adotando uma das gírias locais mais utilizadas. 

Apesar das poucas palavras, o garoto Iaron Matheus Junior certamente concorda com o austríaco que sua terra natal é mesmo “massa”. Iaron tem 15 anos e desde os 13 é instrutor de kitesurf e exímio praticante do esporte. O interesse surgiu na infância com o pai, também nativo e adepto do esporte. Hoje, o menino divide manobras de tirar o fôlego com aulas em que o gestual – como no caso de dona Geralda – é a principal forma de comunicação. “Não sei falar inglês, mas mostro para eles como se faz. Não tem muito segredo”, defende Iaron. 

Quando entra no mar e rasga o vento com suas peripécias, Iaron faz mesmo tudo parecer fácil. Seu despojamento e serenidade precoces parecem irradiar o espírito do lugar. Uma vila onde convivem em harmonia jegues, cavalos, vacas, cabritos, gatos e cães – que sintomaticamente não latem, “são evoluídos e ‘desneurotizados’”, como brincou o cartunista Paulo Caruso, ao ouvir tal comentário de sua mulher, Maria Eugênia. “Dá para ser feliz, aqui, dando valor às coisas simples. Este não é um lugar para quem quer da vida apenas ganhar dinheiro. Aqui, você não se preocupa se o vizinho tem um carro melhor que o seu ou se lançaram uma TV maior que a sua. É possível ser feliz com muito pouco em Jericoacoara”, garante o paulistano Diego.


*O repórter Marcelo Pinheiro foi a Jericoacoara a convite do Festival Choro Jazz


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