Volta às origens

Relatos de paulistanos mais antigos contam que antes dos anos 1940 havia uma praia à beira do Rio Pinheiros, onde a garotada jogava bola e dava para ver o pôr-do-sol. Moradores da área tinham pequenos barcos para passear no rio e, às suas margens, clubes organizavam regatas e até campeonatos de natação. O Tietê tinha uma paisagem e uma ocupação semelhante. A praia era o que os técnicos chamam de várzea, áreas inundáveis que recebiam as águas das chuvas e para onde o rio se alargava nas cheias. Até que os dois rios foram canalizados e retificados. Em suas margens foram construídas as avenidas marginais e as várzeas que, depois de drenadas, foram loteadas. Movimento semelhante aconteceu em toda a cidade. Com seu território original integrado ao bioma da Mata Atlântica, a paisagem natural de São Paulo, formada por grande número de morros e vales, tem um exuberante sistema hídrico, hoje quase todo canalizado ou simplesmente encanado, correndo por baixo da terra, longe das vistas da população.

Desde os anos 1930, com o Plano de Avenidas, elaborado na gestão do prefeito Prestes Maia, os fundos de vales, leito natural dos rios, passaram a ser ocupados por grandes avenidas. Sob a Avenida 9 de Julho corre o rio Saracura; sob a 23 de Maio, o Anhangabaú; a Avenida do Estado, corre ao longo da rio Tamanduateí; e o mesmo ocorre em outras avenidas, como a Pacaembu, a Sumaré ou a Aricanduva.
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Hoje, quando chove, as águas continuam correndo para os mesmos lugares, com mais velocidade e maior volume. Sem encontrar as várzeas e o rio, acumulam-se, provocando as enchentes.

Para Pérola Felipette Brocaneli, especialista em Paisagem e Ambiente e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie, um rio é local de afloramento do canal freático e ao ser canalizado é isolado e passa a ser um corpo estranho. Normalmente, quando isso acontece, a expansão urbana já produziu a impermeabilização do solo – o asfalto, as calçadas concretadas ou ladrilhadas e as edificações impedem a absorção da água das chuvas. O relevo, no entanto, continua o mesmo e, quando chove, sem poder penetrar na terra, a água corre mais rapidamente para onde antes era a várzea e o leito dos rios.

A canalização dos rios já foi entendida como uma solução para as enchentes. Nos últimos 20 anos, porém, nosso urbanismo tradicional precisou recorrer a mais um expediente para conter as cheias: os piscinões – grandes reservatórios que acumulam a água das chuvas. O primeiro a ser construído em São Paulo é o que fica embaixo da Praça Charles Miller, em frente ao Estádio do Pacaembu, mas outros vêm se multiplicando pela cidade. Projetos caros e de manutenção difícil e custosa, que facilmente se transformam em focos de mosquitos, ratos e outros seres indesejáveis para a saúde humana.

Atualmente, porém, se começa a testar aqui um novo conceito, o de renaturalização dos rios, já praticado na Europa desde os anos 1970. “Esse é um novo parâmetro de planejamento urbano em que se busca recuperar as condições naturais do rio”, explica Pérola que, junto com a também especialista Monica Machado Stuermer, é autora do artigo “Renaturalização de Rios e Córregos do Município de São Paulo”, publicado na Exacta, revista de divulgação da produção científica da Uninove. Segundo Pérola, a segunda fase da Operação Urbana Águas Espraiadas, que envolve a urbanização do córrego com o sugestivo nome de Águas Espraiadas e a construção de uma via que deve ligar a atual Avenida Jornalista Roberto Marinho à Rodovia dos Imigrantes, já foi planejada com esses parâmetros.

Renaturalizar um rio é procurar recriar suas condições originais, com a recuperação de várzeas e da vegetação de suas margens, o que pode ser combinado com a transformação dos terrenos em parques e áreas de lazer para a população. Com isso, o rio vai recuperando parte de suas funções naturais, como refrigerar a cidade, alimentar uma ampla fauna, além de receber as águas das chuvas e permitir sua evaporação. É caro, envolve investimentos e desapropriações, mas na ponta do lápis e pensando no futuro, deve ser mais sustentável que as grandes obras de canalização e construção de piscinões.

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