Vôos de um grande repórter

William Waack está no céu. Como Clark Joseph Kent, ele é um repórter que voa. Mas dispensa a cabine telefônica mais próxima e o uniforme azul do homem de aço. Prefere as asas brancas de seu Cessna 172, monomotor arrematado de segunda mão em Curitiba, ao preço, segundo ele, de um bom automóvel. Pelo menos no motor – de quatro cilindros horizontais -, o Cessna é realmente semelhante a um Fusca.
dá para ir para a guerra e com você não”.

Na defesa dos amigos, William, que é chamado de “Alemão” na Globo, segundo ele equivocadamente, é passional e até emotivo. O sobrenome Waack provém de um bisavô cujo último destino antes do Brasil foi um porto do norte da Europa – portanto, não se sabe ao certo sua origem exata. “Na verdade sou a piada de paulistano”, diz brincando com o hábito infantil de “ver avião subir e avião descer” em Congonhas, ironizado pelos cariocas como lazer de uma cidade desprovida de praia.

William ainda se ocupava de anotar compulsivamente os prefixos dos aviões flagrados. Na sua ascendência, consta ainda um bisavô quatrocentão, da linhagem Bueno de Almeida, que trocou a aristocracia pelo amor de uma imigrante italiana. O jornalista-aviador fala das origens, e flutua o pensamento para o futuro. Aos 55 anos, diz que “o avanço da idade não evitou que cometesse erros graves”. “O amadurecimento não é sinônimo de mais tolerância, acomodação, e nem é capaz de evitar que se cometam grandes besteiras.”
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“Miséria intelectual”
Com 37 anos de profissão, reconhece que poderia ter ido mais longe, se fosse “mais disciplinado e mais aplicado”, para, em seguida, também reconhecer que os prêmios – entre eles dois cobiçados Essos – vêm do trabalho e do gosto pelos desafios. “Sempre trabalhei pra cacete e gosto de situações novas, de enfrentá-las e dominá-las. Ainda tenho uma inquietação enorme e gosto de mudança, do momento da ruptura e do conflito.”

William é um caso raro no jornalismo brasileiro, por várias razões. Mantém um tom politicamente incorreto, recusa-se a caminhar com a “manada” e expressa opiniões vigorosas. Os mandatários latino-americanos estão no centro de sua indignação atual. “Eles são uma farsa grotesca. Morales, Kirchner, Chávez são políticos atrasados, expressão da nossa profunda miséria intelectual, uma tragédia.”

Sobre Lula, confessa uma certa angústia em não conseguir decifrá-lo, assim como tem dificuldade em entender o momento político brasileiro. “Vivemos um momento grave. A capacidade de acomodação está no caráter do brasileiro, assim como essa visão imediatista, a falta de um sonho. Não há indignação, situações de ruptura. Por que a mesa não vira de cabeça para baixo no Brasil? Como essas mazelas do governo passam sem conseqüências?”

Também se revolta com a péssima mania petista de rotular de “golpismo” qualquer tentativa de contestação ao governo. Um ultraje para um jornalista que sempre se esmerou em incendiar debates, sem se alinhar a grupos ou tribos ideológicas, embora tenha sido militante estudantil na juventude e a mãe, uma ativa militante da Ação Popular (AP), grupo de esquerda ligado à Igreja Católica.

Dois de seus quatro livros são especialmente polêmicos, mas sempre tendo como alicerce uma ampla pesquisa em arquivos antes inacessíveis. As Duas Faces da Glória (1985) fornece uma visão crítica da campanha brasileira na Segunda Guerra Mundial. Camaradas (1993) – segundo ele próprio, seu melhor trabalho – causou ainda mais rebuliço. Escrito com base nos arquivos da KGB em Moscou, William desmitifica o romântico heroísmo que cercou o levante comunista de 1935 no Brasil.

Segundo documentos, todo o movimento – até mesmo um de seus líderes, Luís Carlos Prestes – agia sob as ordens do Partido Comunista Soviético, num estado de obediência plena e servil. Prestes teria inclusive sido conivente com o assassinato de uma militante de 18 anos, envolvida numa suspeita traição. Curiosamente, foi Yuri Prestes, filho do “Cavaleiro da Esperança”, quem auxiliou William na tradução dos arquivos. Em determinado momento da pesquisa, o jornalista voltou-se para Yuri e sentenciou: “Seu pai mentiu para você”.

O livro provocou a ira de comunistas históricos, artigos indignados, mas ninguém foi até a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) conferir os arquivos então doados por William. Boa parte dessa disposição para a pesquisa e para o livre pensamento veio do filósofo, jornalista e escritor Oliveiros Ferreira, de quem ele é enteado. Com uma respeitada carreira acadêmica, paralela a uma atuação destacada na direção de O Estado de S. Paulo, Oliveiros – um intelectual independente e difícil de ser classificado ideologicamente – incutiu em William a idéia de que a convicção e a honestidade intelectual são patrimônios inoxidáveis e é sempre melhor não aceitar as verdades prontas ou as versões oficiais.

William não descuidou da formação intelectual, acima da média entre jornalistas. Formado em Jornalismo pela Universidade de São Paulo (USP), é mestre em Relações Internacionais, disciplina que leciona na Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), já foi professor de Mídia Comparada na New York University e graduou-se em Ciências Políticas, Sociologia e Comunicação na Universidade de Mainz, Alemanha.

De Mainz, lembra-se de um certo zelador do enorme Ginásio de Esportes da Universidade, ex-mecânico dos temíveis caças Messerschmitt 109 alemães na frente russa. “Ele me contou que trocava o motor do avião à noite, sem enxergar quase nada, para não serem percebidos.” Os aviões e William sempre voaram juntos. E mesmo quando se convertiam em armas mortíferas e ameaçadoras, ele continuava interessado neles.

Os olhos de Khomeini
Na cobertura da guerra de libertação da Eslovênia, um dos capítulos mais sangrentos da desintegração da ex-Iugoslávia, viu jatos iugoslavos acertarem em cheio caminhões. Viu ainda um piloto iraquiano solitário atacando Teerã, capital do Irã, e aviões israelenses bombardeando posições palestinas dentro de Beirute Ocidental em 1982, cidade pela qual tem enorme carinho – voltou a visitá-la recentemente e ficou feliz com sua tranqüila recuperação.

Sua maior façanha, antes de comandar o Cessna, foi pilotar um Mig-29, acompanhando um piloto russo numa base da Ucrânia, em manobras de simulação de combates. Fora dos aviões, tem histórias de arrepiar. Como quando fitou o aiatolá Ruhollah Khomeini, líder espiritual da Revolução do Irã, em 1979. “Eu o vi sentado, sem turbante, cercado de pessoas agitadas ao seu redor. Ele tinha um magnetismo no olhar, exercia um fascínio naquelas pessoas e parecia ter uma capacidade de antecipar os fatos históricos.”

Diante de emoções tão fartas, é curioso saber o que William quer fazer no futuro, quem sabe quando estiver cansado de guerra: escrever novelas – segundo ele, o produto televisivo que melhor consegue traduzir hoje o País. “Elas estão muito mais à frente. Pegam o que está acontecendo, a violência doméstica, a droga, o alcoolismo, a amoralidade e a imoralidade, a deterioração do comportamento político. Eu tenho muita vontade de escrever novela para televisão.”

Estranho imaginar William debruçado sobre aventuras comezinhas. Por enquanto, porém, seu anseio passa pelos céus. Quer passar a voar por instrumentos e à noite – próximo passo de seu aprendizado – e acertar os pousos com seu Cessninha. “Avião é perigoso, sim. Tem que tomar a decisão rápido. Ser explosivo e improvisar é o caminho para o desastre. Tem é que antecipar a situação e jogar o olho para o horizonte e nunca para a pista”, ensina.

William gaba-se de ter feito pousos “lambidos” – no jargão dos pilotos, aquele que afaga a pista de tão suave – e de “ter matado dois cachorrinhos”, ou seja, fazer as duas rodas tocarem juntas a pista, num exercício de precisão cujo barulho parece de dois ganidos. Como se vê, para o “Alemão”, portanto, nem o céu é mais limite.

“É o vento, estúpido!”
O australiano Peter Weir fez alguns dos filmes mais legais dos anos 1980, como o quase esquecido Galípoli (1981), grande história de amizade e guerra, com um então ainda desconhecido Mel Gibson. E o ótimo policial A Testemunha (1985), que valeria só pela cena em que a amish vivida por Kelly McGillis dança com Harrison Ford ao som de Sam Cooke num celeiro, num dos momentos mais sensuais do cinema.

Isso sem contar o cultuado A Sociedade dos Poetas Mortos, de 1989. Nos anos 1990, Weir emplacou o sucesso O Show de Truman, e depois, em 2003, veio outro filmaço, Mestre dos Mares – O Lado Mais Distante do Mundo, não por acaso um dos filmes prediletos, senão o predileto, de William Waack. Ele gosta do filme porque toca sua alma de velejador.

E entende as sutilezas estratégicas que sopram na mente do astuto comandante do velho navio da Marinha inglesa H.M.S. Surprise, Jack Aubrey, também conhecido como Jack, o Sortudo, vivido com plácida virilidade por Russel Crowe.

O ano é 1805. As guerras napoleônicas estão em curso. Inglaterra e França brigam por novos mercados marítimos na costa brasileira, no tormentoso Cabo Horn e até nas Ilhas Galápagos, onde um médico e naturalista, amigão de Jack Sortudo, sente-se como um pinto no lixo.

Boa parte do filme – extraído do livro de Patrick O’Brian (1914-2000), escritor irlandês que tem uma série de volumes sobre a Marinha inglesa daquela época – é uma caça de gato e rato entre o H.M.S. Surprise e a bem equipada fragata francesa Acheron.

Caso perguntássemos ao velejador William por que Jack tira tantas vantagens de seu depauperado H.M.S. Surprise, ele certamente responderia, abandonando sua habitual delicadeza: “É o vento, estúpido!”, referindo-se ao domínio que Jack tem dos movimentos do vento e como utiliza esse artifício a seu favor. O comandante sabe, como poucos, a hora de recuar, avançar ou refugiar-se na névoa, numa metáfora náutica de como a existência pode ser conduzida com sabedoria.


Comentários

2 respostas para “Vôos de um grande repórter”

  1. Avatar de Orlando de Almeida Calado
    Orlando de Almeida Calado

    Um cara bem antipático. Não aprecio suas colocações .

    1. Avatar de tattiana salles
      tattiana salles

      É antipático, mas é o jornalista mais bem preparado da TV brasileira.

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