Voz das quebradas

Você pode até procurar, mas certamente não encontrará nenhuma linha, ou bem poucas, nos cadernos culturais dos principais jornais sobre a mostra Militância Teatral na Periferia, que acontece durante todo o mês de julho no TUSP (Teatro da USP), em São Paulo. Omissão da grande imprensa que só se ocupa com superproduções para o grande público? Ou, então, descaso com o circuito independente? Nem uma coisa nem outra.
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Por opção, parte dos grupos presentes na mostra não divulga seus eventos a nenhum grande jornal. É o caso do Engenho Teatral, coletivo marginal que começou ainda nos inglórios anos de ditadura, em 1979, no bairro do Bexiga, e que hoje está localizado no Tatuapé, Zona Norte da capital paulista. “Essa mídia não nos representa”, ataca Luis Carlos Moreira, diretor da companhia.

Para eles, a divulgação funciona mesmo por meio de um informativo distribuído no metrô e por arredores da região em que atuam. “Nosso público não é leitor de jornal”, completa Iraci Tomiatto, do mesmo grupo.

E a antidivulgação funcionou. Na plateia menos de 100 pessoas. Mas, para o efervescente teatro da periferia, nada disso importa. Passar longe dos guias culturais, estar distante geograficamente, ou a pequena quantidade de pessoas para assistir à abertura da mostra, tudo isso são problemas periféricos.

Choradeira geral
O que dificulta um bocado o caminho do teatro produzido nas periferias, segundo eles, é a distância entre esses grupos e os recursos de que precisam. “Tem pouca verba para a cultura e a maior parte dela é usada para patrocinar atividades que não deveriam usar dinheiro público”, observa Iraci Tomiatto.

A choradeira é geral entre os grupos. “O que chega não paga nem a nossa produção, mal dá para a manteiga do lanche”, lamenta Fábio Resende, da Brava Companhia, que atua desde 1998 no extremo sul da cidade.

Com tanta dificuldade para seguir em frente, não é de se estranhar o clima político do evento, com forte ar panfletário e muitas citações marxistas. Um espírito de luta expresso também no nome do evento, Militância Teatral na Periferia.

A questão política deve explicar também porque a abertura da mostra teatral, nesta quinta, 6, não teve nenhum espetáculo. Em seu lugar, o público assistiu ao documentário Pulsações Periféricas, da série “Teatro e Circunstância”, realizada pelo canal SESC TV, com direção de Amilcar Claro e roteiro de Sebastião Milaré, curador do evento.

Foi desse documentário que Milaré tirou a inspiração para a concepção da mostra. O filme expõe a luta desses grupos pela sobrevivência, mas ressalta também a força criativa da abundante produção que emerge da periferia. “Não se trata apenas de criação teatral, vai além. Uma de suas características mais importantes é a intensa integração com as comunidades”, diz o crítico.

O filme foi seguido de um debate com integrantes dos coletivos teatrais, Buraco d’Oráculo, Brava Companhia e Engenho Teatral, mediado pela diretora e atriz, Ana Roxo. Ideologias à parte, problemas reais vieram à tona. Questões como a democratização do acesso ao teatro, políticas públicas e fomento ao setor aqueceram a discussão. “Pessoas que moram na periferia não querem só pegar ônibus e trabalhar”, diz Resende, sobre a falta de equipamentos culturais nas regiões mais distantes do centro.

Não faltaram críticas ao teatro convencional. “O que fazem hoje é melodrama, base de espetáculos comercias são os conflitos privados”, alfineta o diretor do Engenho Teatral. “Vivemos em um tempo conservador, como dialogar sobre novos rumos nesse contexto?” Ele defende que a mola propulsora do novo teatro que brota da periferia é justamente o experimentalismo.

Teatro horizontal
Localizados em regiões onde o teatro, como a cultura, ainda não está inserido na vida das pessoas, artistas perceberam a necessidade de ir até o público e dialogar com ele. “Não faremos um teatro novo em uma sociedade velha, precisamos de mudanças, sobretudo nas pessoas”, afirma.

O resultado é uma subversão dos modelos mais tradicionais e a criação de um teatro mais horizontal, desde o rompimento com o espaço – muitas peças são encenadas na rua – até a dramaturgia produzida dentro do próprio grupo, na maioria dos casos. “A busca por novas linguagens teatrais em comunidades é uma tendência na América Latina, seja nas periferias, favelas ou mesmo em áreas rurais”, analisa Milaré.

Segundo o crítico, por força da necessidade, esse movimento tem alcançado resultados inovadores, como derrubar antigos códigos teatrais. “Conseguem, por exemplo, trabalhar temas antigos com valores simbólicos atuais”, diz.

Ele cita a peça A Brava, da Brava Companhia, que traz a saga da heroína francesa Joana d’Arc para o ambiente das quebradas. “Ao tom épico, é adicionado uma série de referências à cultura popular”, diz.
“E fazem isso, sem se prender em esquema convencional, pautado pelo mercado, eles abrem espaço para a plateia, conseguindo assim uma interação importante com o público”, arremata Milaré. Brecha por onde temas relevantes são introduzidos e discutidos.

No espetáculo, vozes misteriosas que a personagem ouvia, bem como a luta trágica contra os ingleses, que culminou em sua morte na fogueira aos 19 anos de idade, servem ao objetivo de ressaltar – e debater com a comunidade – a ousadia de trilhar caminhos contrários aos impostos pela sociedade.

Programação
O teatro, propriamente dito, começou mesmo nesta sexta, 8. O espetáculo que abriu a mostra foi Insônias de Antônio, do grupo Dolores Boca Aberta Mecatrônica das Artes.

O evento apresenta também o trabalho de outros seis coletivos teatrais. A Brava, da Brava Companhia; A Farsa do Bom Enganador e Ser TÃO ser – Narrativas da Outra Margem, do Buraco d’ Oráculo; Hospital da Gente, do Clariô; Pequenas Histórias que a História Não Conta, do Engenho Teatral; Histórias para Serem Contadas e Mingau de Concreto, do Pombas Urbanas; e Brasil, Quem Foi que te Pariu, da Trupe Artemanha.
O principal critério de escolha, segundo o curador, foi destacar trabalhos mais consolidados. Todas as companhias que participam da mostra têm mais de dez anos de atuação e espaço próprio.

Documentários e debates sobre produção teatral também fazem parte da programação que segue até o próximo dia 31 de julho. No conjunto, a mostra apresenta um recorte considerável de uma pujante vertente teatral que vale conferir.

Serviço:
Militância Teatral na Periferia
7 a 31 de julho
TUSP – Teatro da Universidade de São Paulo
Rua Maria Antônia, 294 – Consolação
Tel. 11 3123-5233
blog: www.tusp.blogspot.com
site: www.usp.br/tusp/index.php
Capacidade: 96 lugares.
Estacionamento conveniado: R. Maria Antônia, 176, R$ 10,00 – 3 horas)


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