No dia 6 de novembro de 1644, nascia, às margens do Pyrajussara, na Villa de São Paulo, o menino Belchior de Pontes. Foi criado com o temor santo de Deus, mas também com a cordial devoção a Nossa Senhora. Os pais, observando a natureza de seu espírito, encaminharam-no para a Companhia de Jesus. Lá, teve toda sua formação espiritual e levou a palavra de Jesus pelos sertões. Mas não só isso.

Foi adorado. Não só por suas palavras, mas porque atendia prontamente, em confissão, os moribundos. Livrava os aflitos do lago do Inferno, do reino do Belzebu. Percebia que dele precisavam e acudia sempre em tempo. Em qualquer parte. Para ele, não havia distância nem tempo.

Certa feita, caminhava o padre Belchior acompanhado de huns Indios para o Collegio de S. Paulo, e chegando a hum Capaõ, ou pequeno bosque, que fica junto ao rio dos Pinheyros, em hum lugar, em que teve Sitio Bartholomeu Paes, se apeou do cavallo, dizendo aos Indios que esperassem alli, porque hia a huma necessidade. Dada esta ordem, entrou no Capaõ.

Supuseram os guaycurus que se tratava de necessidade própria, mas vendo que o padre demorava, foram atrás dele e nada encontraram. Seguiram caminho e, como chegaram sem o padre, a eles perguntaram o que passara. Os índios contaram. Não tardou muito e o padre Belchior chegou com seu cajado. O Padre Reytor, reparando em o ver a pé e sem os companheiros, lhe perguntára daquelle excesso, e que elle sincéramente respondera que tinha ido ao Certão do Cuyabá a confessar o Padre Joseph Pompeyo, o qual, desamparado dos seus em huma Ilha, acabava a vida sem Confissaõ. Passou o tempo e chegaram notícias. O padre Pompeyo, de fato, morrera. Meses mais tarde, alguns homens, em suas andanças pelo sertão, chegaram a uma ilha e viraõ junto a huma arvore hum breviario sobre um altar feito de varas, e junto ao altar huma sepultura pouco funda, mas bem povoada de ossos, que pela dispoziçaõ entenderaõ serem reliquias de corpo humano. Visto isto, tiveraõ curiozidade de registar o terreno, e acharaõ escritas em uma casca de pao estas palavras: Aqui jaz enterrado o Padre Joseph Pompeyo confessado pelo Padre Belchior de Pontes.

Estava ali entalhada aquela mesma data em que o padre Belchior se ausentara de S. Paulo.
A esse impressionante milagre seguiram-se outros e assim viveu o padre Belchior. Pelas freguesias de Baruery, Sant’Anna do Parnahyba, Araçaryguama e Pyrapora do Bom Jesus. Pelas picadas que passavam ao pé do Vuturuna, sobranceira montanha que domina a região. Dizem que por lá ainda faz milagres.

Há muitos anos que soube disso tudo, na casa de meu tio. Foi debate religioso com documentos históricos e acalorada discussão. Ele achava o padre um calhorda, desavergonhado. “Imagine o desespero de um moribundo no sertão, a momentos da chama eterna! Imagine, fazer crer às pessoas que por falta de uma confissão arderão eternamente no inferno!” E assim ele seguiu, irado, falando do pilantraço, que com uma mão semeava o terror dos infernos e com a outra colhia a adoração. Acolhido e promovido pela poderosíssima Companhia de Jesus que produzira, ela própria, estes documentos que o exaltavam! Que o elevavam! Me lembro do rosto do meu tio. Irado, irrigado, vermelhão.

No tempo em que expressou seu juízo era jovem, meu tio. Pujante, destemido e resoluto. Mas o tempo passou. Hoje, ele está um caco. Uma ruína do que foi. Preocupado com as consequências de sua grave heresia, montou casa no sopé do Vuturuna. Diz que na hora “H” pode sentir a necessidade de uma confissão final ao próprio injuriado. Assegurando, assim, uma remissão inequívoca que o livre do suplício eterno. Sabendo disso, eu, bem mais moço, que na época acolhi aquelas barbaridades, ando assustado. Inquieto e preocupado. Penso até mesmo em comprar meu terreninho ao pé daquele morro. Vai saber.

*Engenheiro civil, professor titular da Escola Politécnica da USP. Dedica-se
também à literatura.

Nota: reprodução de trechos do livro A Vida do Venerável Padre Belchior Pontes, do Padre Manoel da Fonseca, Companhia de Jesus da Província de São Paulo.


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