A editora Cosac Naify lançou o livro Marcados, da fotógrafa Claudia Andujar. Com 154 páginas, a obra traz retratos feitos nas comunidades Yanomami, quando Claudia trabalhava como coordenadora da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY). As fotografias serviram para a identificação dos índios que já tinham sido vacinados pelos médicos Rubens Brando e Francisco Pascalichio, da CCPY. Em um primeiro momento, em 1981, eram vacinas contra sarampo. Cada índio que era vacinado, era fotografado com um número no peito e sua foto era colada em uma ficha com seu histórico médico. Era o Cadastro de Saúde Yanomami, uma ficha indivi-dual que, nos anos seguintes, foi usada para registrar a aplicação de vacinas Sabin, BCG e antitetânica. Segundo a fotógrafa, esse trabalho deu início a um atendimento de saúde continuado em regiões onde não havia médicos.
Claudia Andujar nasceu na Suíça e veio para o Brasil em 1955. Antes disso, na infância, viveu na Romênia e parte da adolescência, nos Estados Unidos. Em Nova York, aos 17 anos, trabalhou como balconista na Macy’s, vendendo sutiãs e logo foi trabalhar na Organização das Nações Unidas, como guia. Claudia então falava quatro línguas, francês, alemão, inglês e húngaro. Hoje, com o português são cinco. Aqui no Brasil, ela se tornou conhecida quando fez parte da equipe de fotógrafos da Realidade, revista de reportagens da Editora Abril, lançada em 1966.
Brasileiros – O que é Marcados ?
Claudia Andujar – Quando comecei o trabalho com os yanomami, no território deles, era um trabalho para tentar ajudá-los a sobreviver. Os números tinham um sentido prático. Eram números para compor uma ficha de identificação com um histórico médico.
Brasileiros – Há um texto no começo do livro, bastante emocionante, onde você lembra de sua infância em 1944 (leia na pág. ao lado). Lá, você diz que aos treze anos teve seu primeiro encontro com os “marcados para morrer”. Eram seus parentes, seus amigos e seu primeiro namorado. Judeus e “marcados” pelos nazistas. Quando você fotografou os yanomami, com os números para as fichas médicas, você pensou em sua infância. Você fez alguma relação naquele momento?
C.A. – Não naquele momento. Não quando eu fazia as fotos. Aqueles eram números pela vida. Eram marcas pela vida. As da minha infância, não. Elas eram bem diferentes…
Brasileiros – Qual é sua ligação com os yanomami?
C.A. – Eu me identifico muito com eles. Intuitivamente, eu me identifico com a gente marginalizada, com as minorias. Desde criança. Então, acabei trabalhando durante 20 anos para os yanomami. Imagine, 20 anos, quase 30! Eu decidi começar o trabalho de saúde dentro da terra indígena dos yanomami porque os índios estavam sem nenhuma assistência de saúde, estavam numa situação muito precária, eu estive lá nos anos em que construíram a rodovia Perimetral Norte e vi pessoas de aldeias inteiras morrendo.
Brasileiros – Isso em que ano foi?
C.A. – A construção da Perimetral foi entre 1973 e 1977, 1978. Mas eu conheci essa situação em 1974, 1976 até 1977. Isso me tocou profundamente, então decidi me dedicar a esse povo. Para lutar para que eles pudessem sobreviver. Na verdade, eu quase abandonei a fotografia. Porque não tinha tempo…
Brasileiros – O que você fazia antes disso?
C.A. – Antes de conhecer os yanomami, antes de eu vir para o Brasil, eu morava nos Estados Unidos, em Nova York, e lá eu nunca pensei em fotografia, isso aconteceu aqui. Eu trabalhava para sobreviver.
Brasileiros – Em que você trabalhava?
C.A. – Eu trabalhava na Macy’s, uma loja de departamentos.
Brasileiros – O que você fazia lá?
C.A. – Era balconista.
Brasileiros – E vendia o quê?
C.A. – Espera um pouco… Em certo ano, eu vendia sutiãs (risos).
Brasileiros – Que idade você tinha?
C.A. – Tinha dezessete, dezoito. Depois, fui trabalhar na ONU, nas Nações Unidas, como guia, como intérprete.
Brasileiros – Que línguas você falava?
C.A. – Desde criança, francês, alemão, húngaro. Nos Estados Unidos, aprendi o inglês e aqui o português. Nas Nações Unidas era intérprete e guia por causa do francês e do alemão. Muito pouco húngaro.
Brasileiros – Por que você resolveu vir para o Brasil?
C.A. – Eu deixei minha mãe quando fui embora da Europa, com 15 anos. Ela ficou na Suíça, em Neuchâtel. Ela nasceu em Neuchâtel e eu também. Então ela… Não sei mais em que ano, mas ela imigrou para o Brasil, porque se casou com uma pessoa que ela conheceu ainda na Hungria, que veio para o Brasil e ela veio junto. E eu, em 1955, decidi vir visitá-la… E fiquei aqui. Minha primeira vista do Brasil foi o Rio de Janeiro, eu vim de navio.
Brasileiros – Você gostou?
C.A. – Gostei muito daqui, eu me senti muito em casa. E fiquei aqui, até hoje.
Brasileiros – Você não tem filhos.
C.A. – Não. Meus filhos são os yanomami.
Brasileiros – Seus filhos são os yanomani… (risos). E qual é a relação que você tem hoje com os yanomani?
C.A. – Eu deixei a comissão, a CCPY, em 2000. No começo do ano, o trabalho dela foi repassado para o Instituto Socioambiental (ISA). Antes, a comissão se chamou Comissão Pró-Yanomani, depois que o governo brasileiro reconheceu o território deles, que foi uma campanha que eu levei em frente como coordenadora da comissão.
Brasileiros – Hoje o que você faz da sua vida?
C.A. – A princípio, estou revisitando todo o meu acervo, que é muito grande.
Brasileiros – E qual é a sensação?
C.A. – É curioso.
Brasileiros – Por quê?
C.A. – É uma espécie de trabalho ar-queológico. Tem coisas obviamente das quais me lembro perfeitamente e tem outras coisas que descubro. Mas vamos dizer que eu tenho isso organizado hoje por ano, por tema, dentro dos temas me lembro, mas depois… Até hoje eu não revi, por exemplo – são negativos -, todos os negativos.
Brasileiros – Você não os digitalizou?
C.A. – Não. Infelizmente. É muito caro e ainda não consegui uma maneira de financiar esse trabalho. Uma coisa que eu gostaria muito de fazer, mas por enquanto não consegui. Você perguntou o que estou fazendo, estou revisitando o meu trabalho e com isso estou produzindo livros, exposições, inclusive também fora do Brasil. E estou continuando também de certa maneira a divulgar essa questão dos yanomami. Eu tenho amigos muito bons entre eles, como eu falei, considero-os meus filhos (risos).
Brasileiros – E você os vê com que frequência?
C.A. – Olha, no ano passado eu estive lá, justamente quando se discutiu repassar a organização…
Brasileiros – Como foi a viagem?
C.A. – Eu não fui até as aldeias.
Brasileiros – Você foi até onde?
C.A. – Fui até a capital de Roraima, Boa Vista.
|
Brasileiros – Você foi na época da confusão, ou melhor da desintrusão, lá na Raposa Serra do Sol?
C.A. – Bom, já havia 30 anos que isso estava sendo discutido, mas não foi quando o Lula aceitou demarcar o território. Eu fui um pouco antes.
Brasileiros – Voltando ao livro Marcados, como você chegou nessa metáfora da marcação? Como aconteceu? Porque na realidade ela é uma metáfora complexa, ela vai e volta, e você participa dela. Na sua infância, na Hungria, no começo do seu trabalho com os índios e agora com a edição do livro.
C.A. – É isso. Não sei. De repente, me dei conta que meu pai foi marcado…
Brasileiros – E seu namorado…
C.A. – É… Eram todos judeus…
Brasileiros – Foi o seu primeiro namorado, você com 13 anos, ele com 15, não é isso?
C.A. – Eu me lembro perfeitamente de todo aquele episódio. Para mim foi, assim, vamos dizer, uma revelação, estou falando de quando eu tinha 13 anos, de ter uma atração por um rapaz…
Brasileiros – Um namoro fugaz, uma coisa que faz o coração bater forte.
C.A. – Isso mesmo…
Brasileiros – E aí vem a tristeza…
C.A. – Sim, eu tenho uma medalha até hoje, a medalha que usava com a foto dele…
Brasileiros – Por que o livro não tem foto na capa?
C.A. – Tem uma foto com tarja preta. Uma foto “marcada”. Na verdade, essa pessoa, essa menina está aqui na primeira foto, é essa, de número 79. A gente preferiu deixar um pouco sem ver o rosto dela. É pra marcar mesmo.
Brasileiros – Fica só a estrela, aquela que os nazistas colocavam nos “marcados”. Ou a que a sociedade colocou nos índios. Fica só a marca, só…
C.A. – Sim, só isso. As fotos do livro com os números para as fichas. Eu ainda tenho essas fichas antigas, que já não se usa mais…
Brasileiros – Veio o computador…
C.A. – É exatamente. Sem dúvida, olhando isso… fiz uma certa ligação, não?… Olhando essas fichas, vamos dizer fichas de saúde… Qual o sentido justamente de ter tentado um trabalho de salvar e já me vem logo na cabeça que tem outros que eu quis salvar também, que era muito forte, eu quis mesmo, mas não consegui…
Brasileiros – Agora, você acha que a salvação é possível?
C.A. – (longo suspiro) Olha, se você me pergunta, não sei o que você chama de salvação, mas eu acho que… Eu vejo o que está acontecendo aqui, também é uma metáfora… Sim, no momento você pode como qualquer médico, como qualquer pessoa bem-intencionada, você pode tirar pessoas da condenação da morte… ou pelo menos tentar…. (suspiro), mas…
Brasileiros – Mas em relação à marcação, há salvação em relação à marcação?
C.A. – …Eu acho que a marcação lá foi um método de…
Brasileiros – …Digo a metáfora, não aquilo, aquilo foi uma marcação para a salvação, aquilo que vocês fizeram foi a marcação para a salvação, para a tentativa de salvação. Eu falo da metáfora da marcação para a segregação. A marcação como segregação… Estamos falando de uma marcação que tem dois sentidos, um da salvação, que foi a que vocês fizeram, ou seja, vamos marcar aqui quem foi e quem não foi vacinado…
C.A. – …E outros foram marcados para morrer…
Brasileiros – Em 1944, vários foram marcados para morrer. Hoje na Itália, primeiro mundo, eles estão “marcando” imigrantes. Eles têm ônibus marcados para imigrantes, eles têm lugares como Siracusa, se não me engano, que são lugares para receber imigrantes e, de preferência, deportar ou prender. Os principais suspeitos de tudo o que de errado acontece por lá são os ciganos, os imigrantes.
C.A. – Os ciganos?
Brasileiros – Os imigrantes são marcados como suspeitos. Quando eu pergunto se há salvação em relação a essa marcação… Eu, por exemplo – que não interessa porque não sou o entrevistado -, acho que não há salvação, mas que o importante é que há de se lutar, há de se lutar contra as marcações, contra os preconceitos, contra as perseguições…
C.A. – É isso mesmo. Eu também acho a mesma coisa. Acho que salvar é uma coisa meio utópica, mas…
Brasileiros – …Que vale a luta, é uma utopia que vale ser lutada.
C.A. – Sim, não tem dúvida, sim. Para mim (suspiro) …Olha, se por causa, não da marcação, mas por toda essa luta de manter os yanomami em vida, não sei, outros também, valeu a pena viver. Eu acho. Eu sou um ser humano consciente, sempre vou tentar lutar pela dignidade da pessoa, pela vida da pessoa. É o que realmente na minha vida tem sentido. Mas não temos controle sobre isso.
Brasileiros – Não temos controle sobre tudo isso, nós temos a obrigação de lutar contra o que a gente acha que está errado…
C.A. – Exatamente. Mas controle, não temos. Como esses marcados yanomami, olha quando fizemos esse trabalho a esperança era poder implantar um plano de saúde que funcionasse. Hoje, os yanomami se encontram de novo numa situação extremamente precária, os garimpeiros que são também os inimigos desses povos por causa do ouro estão lá de novo ocupando a terra deles, a malária voltando, por enquanto não tem uma assistência de saúde digna para eles viverem. O Lula foi a Roraima e foi apresentado para ele um programa de uma secretaria especial de saúde para os povos indígenas. Mas uma secretaria em que os próprios índios tenham voz, porque nos últimos anos quem tomou conta da questão de saúde deles foi o governo de Roraima e foi um desastre total. Então tem David Kopenawa Yanomami que apresentou um plano para o Lula. O David é muito bom.
Brasileiros – E o que disse o Lula?
C.A. – Pelo que eu entendo, ele falou que vai implantar; agora quanto tempo isso vai levar, porque também não é uma coisa tão simples, não sei, mas a nossa esperança é que ele consiga isso. É que se consiga essa autonomia, enfim, onde o índio possa ter o mesmo papel que qualquer um tem hoje, não ser discriminado. Roraima é um Estado que não ajuda muito.
|
Deixe um comentário