Yes, nós temos Tiger

Rogério Bernardo vive no Parque Florestal, próximo de Parelheiros, bairro do extremo da zona Sul de São Paulo, onde a pobreza se esconde do resto da cidade em meio a estradas de terra e ocupações irregulares próximas à Represa de Guarapiranga. Foi justamente ali que ele teve aulas de golfe com os melhores jogadores do planeta.

Com Jim Furyk, atual número dois do mundo, aprendeu que um campeão precisa ter coragem para desenvolver um estilo próprio de swing, aquele movimento que os golfistas fazem para dar a tacada. O terceiro do ranking mundial, Phil Mickelson, ensinou-o a deixar a bola colada à bandeira em grande parte das jogadas.
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Já Tiger Woods, o número um do mundo, também emprestou seu apelido a Bernardo. O maior golfista da atualidade nasceu Eldrick Woods. O “Tiger” é uma homenagem de seu pai, Earl, a um coronel vietnamita chamado Vuong Dang Tiger Phong, que lhe salvou a vida no Vietnã.

Aos 27 anos, nosso Tiger é o número dois do ranking amador brasileiro. Ocupou a primeira posição por mais de dois meses e foi o primeiro negro a alcançar o posto, algo bastante significativo em se tratando de um esporte que conserva a fama de elitista no País.

Bernardo gosta do apelido, mas sabe que está a milhares de tacadas de distância de seu homônimo norte-americano, o esportista mais bem pago do mundo – já ganhou mais de meio bilhão de dólares em torneios e em contratos de publicidade. “Ele nasceu em berço de ouro”, diz Bernardo. O berço de ouro ao qual Bernardo se refere se trata de uma típica família de classe média norte-americana (o pai de Woods era militar aposentado). Para quem tem uma renda familiar de apenas R$ 300, como é o caso de Bernardo e de sua mulher, Priscila, o berço de Tiger Woods era mesmo dos mais reluzentes.

Rogério Bernardo começou no golfe no Guarapiranga Golf & Country Club, um dos três campos de golfe que ficam na capital paulista. Era caddie, ou carregador de tacos, tarefa exercida por milhares de jovens brasileiros que não encontram perspectiva melhor na vida. Descobriu a profissão depois que a pequena fábrica de autopeças em que trabalhava faliu. Foi paixão à primeira vista pelo golfe.

De terça a domingo, carregava bolsas de golfe para os sócios, depois de enfrentar uma hora de caminhada para chegar ao clube. Tudo o que ganhava ia para a mãe, dona Terezinha. Às segundas-feiras, o campo era liberado para que os caddies pudessem jogar. Como não tinha tacos, Bernardo os improvisava ou emprestava dos amigos. Valia até bater na bola com pedaços de madeira.

Certa vez, jogou quatro partidas, ou 72 buracos, em apenas um dia. Não parava nem para comer. “A fome de golfe era maior”, conta. Um ano depois, ele venceu o Aberto da Cidade de São Paulo, válido para o ranking brasileiro, e começou a ser visto como um jogador excepcional.

Rogério Bernardo é totalmente autodidata. Os valiosos ensinamentos que recebeu de Woods, Furyk, Mickelson e outros jogadores da Professional Golf Association (PGA) em sua casa de dois cômodos foram arranjados por Teodoro Sato, ex-presidente do clube e um dos grandes incentivadores de sua carreira. Sato gravava torneios de golfe em fitas de vídeo e as entregava ao Tiger brasileiro, que assistia a tudo com os tacos a postos. “Eu copiava os movimentos na sala até aprender”, conta.

Outra diferença entre Woods e Bernardo é que o primeiro é profissional e, por conta disso, pode receber prêmios em dinheiro. Já o nosso Tiger é amador e, por isso, fica proibido de receber qualquer tipo de patrocínio em dinheiro. Apoio ele pode ter vários: sócios do clube costumam se cotizar para financiar parte das viagens que faz para disputar os torneios válidos para os rankings paulista e brasileiro (as despesas de passagem e hospedagem são custeadas pelas federações e pela Confederação Brasileira de Golfe), e ele recebe também roupas de golfe da Puma. Admiradores também o auxiliam na compra de luvas, bolinhas e tacos. E isso é tudo.

Os R$ 300 do orçamento familiar vêm da mulher, Priscila, que é caddie há oito anos. “É duro ter que viver com menos. Às vezes fico brava, pensando que eu estou aqui trabalhando e o Rogério está viajando para jogar golfe. Mas é o sonho dele. E gosto muito quando ele volta para casa com um troféu”, diz ela, que conhece bem as agruras e alegrias de sua profissão, já que seus pais e irmãos trabalharam como caddies. Priscila evita trabalhar para o marido. Primeiro, porque ele não gosta do olhar de repreensão que ela dispara quando ele erra alguma tacada. “E depois, como ele não me paga, a família iria à falência”, diz ela.

O futuro de Bernardo é incerto. Ele pensava em jogar como amador por mais dois anos, pois seu sonho é representar o País na Copa do Mundo de Golfe, que será disputada no segundo semestre de 2009 na Alemanha. Mas não sabe se o orçamento familiar vai resistir até lá. Além disso, ele não é mais nenhuma criança, e o tempo voa bem mais rápido que sua bola. “Se tiver uma boa proposta de patrocínio, talvez me profissionalize no ano que vem”, diz. O problema é que o golfe profissional brasileiro não possui um calendário fixo, os prêmios não são lá grande coisa e tentar a sorte no exterior não é para qualquer bolso. A única certeza de Bernardo é seu desejo de terminar o ensino fundamental – está na 8ª série – e, no futuro, chegar à faculdade de Educação Física, necessária caso algum dia queira dar aulas de golfe.

Rogério é profundamente agradecido ao golfe. A vida continua dura, a moradia ainda é simples e falta dinheiro para comprar material escolar e comida. No entanto, sua visão de mundo está mudando radicalmente. “Já viajei para vários países. Conheço cada vez mais pessoas interessantes e estou vendo boas possibilidades futuras”, afirma. Mas o mais importante foi o encontro com um estilo de vida divertido e saudável. “Se não fosse esse meu amor pelo golfe, estaria ou viciado em drogas ou morto, ou gastando minha saúde numa fábrica de tijolos que tem lá perto de casa”, completa, enquanto arruma o estiloso cinto da Puma e sonha com o distante dia em que seus professores Tiger Woods, Phil Mickelson e Jim Furyk possam ver de perto o que seu pupilo mais dedicado aprendeu depois de tantas e tantas aulas.

Golfe em terra desolada
por Marco Frenete

Em Japeri, crianças e adultos descobrem o significado do orgulho e da dignidade praticando um jogo centenário
De repente, o inesperado: um campo de golfe em um dos municípios mais pobres da Baixada Fluminense. É o Japeri Golf Links, um paraíso verde fundado por carregadores de tacos do restrito Gávea Golf & Country Club, em São Conrado (RJ). Anos atrás, eles conseguiram a desapropriação de parte de uma fazenda. Hoje o local abriga um campo de nove buracos, construído com a ajuda de empresas e golfistas mais abastados, e uma escola de golfe para crianças de 9 a 15 anos – tudo com tarifas de poucos reais e uma real política de inclusão. “As vagas são disputadíssimas. Só não atendemos mais pessoas por falta de recursos”, diz Vicky White, presidente da Federação de Golfe do Estado do Rio de Janeiro e também da Associação Golfe Público de Japeri, nome oficial do campo.

Levar um esporte que no Brasil ainda é de elite para uma terra desolada parece uma aberração ideológico-social. Mas quem pisa naquele lugar sente que está em algo muito especial. Claro, é um golfe marcado pela pobreza. Os tacos, fruto de doações, são obsoletos; e a sede se resume a um galpão. Mas nesse espaço austero reina a alegria. Ali convivem indivíduos focados no crescimento pessoal. “Você sabe, pobre não tem sonho. O sonho é acordar e ir trabalhar no que aparecer. Mas aqui é diferente; me sinto à vontade e feliz. É como se fosse minha casa”, diz Herpídio Pires, um dos professores da Escolinha de Golfe de Japeri.

Na Escolinha, as crianças se divertem, mas também se concentram de um modo encantador. É tocante vê-las fazendo trejeitos de profissionais. “Bom dia, tio, quer disputar alguns buracos comigo?”, pergunta um menino impecavelmente vestido e com uma postura orgulhosa de atleta. É o Anderson; ele tem 10 anos e é um dos alunos mais aplicados. Na primeira tacada que erro, ouço o conselho de outro menino: “Olha, tio, é assim que você deve fazer”. Fico impressionado com seu movimento seguro e natural, ao mesmo tempo gracioso e eficiente. Mas daí descubro que isso não é novidade. É o Davidson Rosa, um grande talento de 8 anos, mais conhecido como Janjão. Ele já é “famoso”, com direito a matérias nos jornais cariocas. “Gosto muito de jogar golfe. Acho o swing muito bonito. Mas gosto também do golfe porque aqui ninguém briga. Todo mundo se respeita”, explica Janjão. “O golfe molda a personalidade e reforça as qualidades do bom caráter, como respeito, dignidade e cordialidade. Essas crianças estão aprendendo a ser pessoas mais completas”, explica Vicky.

Por conta dos desafios técnicos e mentais, os golfistas dizem que esse jogo é um espelho da vida. Para os orgulhosos meninos de Japeri, o golfe é exatamente o contrário da vida que o Estado brasileiro lhes reserva.


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