Yes, they have Carnival

Na descida da rua Great Western, dezenas de metros antes da comissão julgadora, o carioca Henrique da Silva, 39 anos, fundador-diretor e carnavalesco da Escola de Samba Paraíso, abre os braços fazendo com que os integrantes da escola parem a marcha. Eles estão prestes a começar o desfile no Carnaval de Notting Hill 2008, festa que acontece anualmente no tradicional bairro londrino. O carnavalesco confere uma a uma as alas, orienta os cerca de 400 integrantes da escola, que este ano escolheu o tema Amazônia para enfeitar seus carros alegóricos e fantasias, e aguarda o grande momento de entrar na “avenida”.

Nascido e criado no morro da Mangueira, Henrique entrou para o mundo do samba muito cedo, com apenas 8 anos de idade. Adotado por uma tia, aprendeu com ela vários estilos de danças, como maculelê, maracatu, samba-reggae e mestre-sala, além da arte da costura – desde colocar a linha na agulha até criar e desenvolver figurinos. Quando chegou a Londres, em 1990, foi nos palcos que teve seu primeiro reconhecimento internacional, como dançarino. Depois, passou a coreógrafo, quando chegou a ensinar Mick Jagger a sambar. Hoje, ele é o grande criador da Paraíso. Sua jornada começa assim que um desfile termina. Antes do Natal passado, já havia encomendado, no Rio de Janeiro, todo o material necessário para compor as novas peças. Num trabalho de formiga, cada amigo que vai ao Brasil traz uma mala recheada de plumas, confetes, arames e celofanes. “Eu adoraria ter uma empresa aérea como patrocinadora. Não queria dinheiro nenhum, somente fretes para trazer o material que precisamos, pois é muito mais barato comprar no Brasil do que na Inglaterra”, diz.
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A Escola Paraíso é um dos maiores grupos que participam do carnaval londrino. No total são 80 grupos, em sua maioria caribenhos, principalmente de Trinidad & Tobago e Jamaica. Nada mais natural, já que foram as comunidades desses países que deram início ao evento, em 1965. Passados mais de 40 anos, a celebração, hoje, atrai mais de um milhão de espectadores e é considerada uma das maiores festas de rua de todo o continente europeu. Mas nem sempre foi tudo festa. No início dos anos 1960, havia um grande número de imigrantes vivendo em Londres que sofria, na pele, a discriminação racial. Para integrar esses imigrantes ucranianos, espanhóis, portugueses, irlandeses, caribenhos e africanos que ali residiam, foi criado um evento com o objetivo de mostrar as diversidades cultural e étnica à sociedade londrina. As precursoras desse movimento popular, cada uma a sua maneira, foram Rhaune Laslett e Claudia Jones. Por ser filha de imigrantes, a enfermeira e assistente social Rhaune, moradora de Notting Hill, sempre entendeu e defendeu a causa dos tantos estrangeiros que buscavam a capital inglesa para recomeçar a vida. Ela organizou, juntamente com o centro comunitário do bairro e a polícia, a realização de uma semana de eventos que culminava num desfile pelas ruas londrinas na última segunda-feira de agosto, feriado no Reino Unido. “A história deste carnaval é independente e interligada ao mesmo tempo”, explica Sue McAlpine, do grupo de História do Centro Comunitário de Kensington e Chelsea. Mas as lutas sociais nas quais o carnaval é atrelado são oriundas das festas organizadas nos anos 1950, pela líder comunitária Claudia Jones, dentro das casas de imigrantes trinitinos e jamaicanos. Nascida em Trinidad & Tobago, Claudia era jornalista, ativista política, comunista, defensora severa da liberdade de expressão dos negros nos Estados Unidos e Inglaterra. E mesmo sem nunca ter participado de nenhum desfile, ela ainda hoje é reconhecida como a “Mãe do Carnaval de Notting Hill” . Infelizmente, ela não pôde ver o resultado de seu trabalho – morreu em dezembro de 1964, oito meses antes do primeiro desfile. Mas seu legado de combate à discriminação racial ganhou as ruas graças à Rhaune. As duas nunca se conheceram. A partir de 1976, com um público que já ultrapassava os cem mil e predominantemente afro-caribenho, o carnaval de Notting Hill passou por momentos difíceis, com vários protestos raciais exacerbados. Problemas e brigas com a Polícia Metropolitana, greves, passeatas e barricadas se misturando aos foliões eram comuns naqueles tempos. Cogitou-se até a extinção da festa. Porém, figuras importantes, como o próprio príncipe Charles, apareceram como defensores ferrenhos do evento.

A decisão parece ter sido acertada. O carnaval de Notting Hill não pára de crescer e, atualmente, é totalmente voltado para a diversão, o entretenimento e a expressão artística e cultural de vários grupos de imigrantes, que fazem de Londres uma das cidades mais cosmopolitas do mundo. E é, justamente, esse multiculturalismo que define o evento, num caldeirão de som, batuque, ritmo, indumentária, instrumentos, melodias, tradição e etnias. Pesquisas divulgadas em 2003 revelaram que o evento contribui com cerca de 93 milhões de libras para a economia da capital inglesa. O atual prefeito de Londres, Boris Johnson, afirmou que o carnaval atualmente é inimitável e atrai não só londrinos, mas pessoas de todos os lugares do país e do mundo.

Hora do show

Os repiques e os tamborins estão prestes a eclodir. E os olhos dos carnavalescos se voltam, temporariamente, para os juízes. Para a escolha da melhor escola, são levadas em conta seis modalidades básicas – Máscaras, Steelband (bandas de tambores), Calipso e Soca (ritmos caribenhos), Sistema de Som e Samba. Além disso, os grupos que participam do desfile também são diferenciados pelo tamanho, em pequeno, médio e grande. Analisando desse ângulo, pode ser considerada injusta a idéia de fazer grupos tão diversificados competirem entre si. Por esse motivo, muitos brasileiros continuam torcendo o nariz para a festa, pois não consideram o desfile um “carnaval” propriamente dito – para os padrões verde-amarelo. A festa ainda carrega um quê do Caribe. “Há 15 anos, os caribenhos não aceitavam muito a participação brasileira no carnaval, caçoavam de nossas plumas, lantejoulas e paetês. Mas agora eles já estão se adaptando e usam fantasias coloridas como as nossas”, lembra Henrique. “O que, na minha opinião, torna a festa muito mais bonita.”

É hora do show. Por um breve instante, Henrique lembra-se do espetáculo de 2004, quando a Escola Paraíso conquistou o título de Campeão Geral do Carnaval de Notting Hill, algo inédito para um grupo não-caribenho. “Fui acordado com os gritos de ‘somos campeões’”, relembra. Ele, então, acena para os seus companheiros, e o desfile 2008 tem início. Exatamente como havia planejado, a escola progride em frente aos jurados às 13 horas do dia 25 de agosto – uma segunda-feira nublada, mas sem chuva. Henrique corre cinco metros à frente, agacha, puxa o gatilho e explode um canhão de confetes, colorindo ainda mais o céu e as ruas do bairro. Com uma voz áspera, de quem não dorme há dois dias, ajuda a berrar o samba-enredo “Nessa magia vou te conquistar/ Vou tentar te seduzir/ Deixa o meu samba te levar/ Hoje o Paraíso é aqui.” Mas a rouquidão de Henrique torna-se insignificante misturada às outras tantas vozes afinadas e de sotaques puxados, que cantam em um português perfeito. “O carnaval brasileiro tem mais esse diferencial. Nós somos os únicos que abraçamos e damos as boas-vindas a qualquer pessoa que queira participar. Pode ser amarelo, vermelho, verde ou azul. Os caribenhos querem a festa só para eles, nós começamos essa mudança. Nas escolas de samba de Londres você encontra mais estrangeiro participando do que brasileiros. São italianos, espanhóis, irlandeses, portugueses, orientais”, comemora.

Mais ou menos até a metade do percurso, o desfile prossegue normalmente, porém, a certa altura, onde não há mais grades de proteção, o caos toma conta. A multidão não se contenta apenas em apreciar o espetáculo e entra, literalmente, no samba. É hora de voltar à quadra do centro comunitário. Missão cumprida. Henrique, finalmente, senta relaxadamente para comer uma boa feijoada brasileira. Obrigação, somente a de desmontar e guardar os carros alegóricos. Esta noite ele vai dormir sem interrupções, um sono pesado e, se tudo continuar como o planejado, será despertado pela manhã com os mesmos gritos de quatro anos atrás: “Somos campeões, somos campeões…”


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